- Katekyo Hitman Reborn® e seus personagens pertencem a Amano Akira;
- Essa é uma fanfic yaoi, ou seja, contém relacionamento homossexual entre os personagens. Se você não gosta ou sente-se ofendido com esse tipo de conteúdo sugiro que vá ser feliz lendo shoujo.


Parte I

Ele gostava do frio.

A brisa gelada que tocava sua pele branca, formando uma película rosada por onde passava. A sensação agradável de sentir-se quente sob várias camadas de roupas, embora a temperatura estivesse extremamente baixa...

Entretanto, se ele pudesse definir qual sua estação favorita, seria definitivamente a primavera. O inverno era sedutor, aconchegante e misterioso. Todavia, a primavera tinha o mesmo calor e nostalgia de um abraço apertado de um amante ou um casto beijo trocado na soleira da porta após o anoitecer. Enquanto o inverno parecia dizer: "Eu quero me envolver no seu corpo", a primavera simplesmente sussurrava um baixo: "Venha, vamos passear de mãos dadas", que combinava muito mais com a personalidade do homem deitado na gigantesca cama de casal.

As cortinas escuras moveram-se novamente e Alaudi piscou.

A janela não estava totalmente aberta, mas a pequenina fresta fora capaz de permitir que o inverno entrasse com força dentro do cômodo. O Guardião da Nuvem acordara com os braços gelados, e, assim que notou que não conseguiria voltar a dormir, seu corpo arrastou-se para dentro dos cobertores, procurando uma maneira de se esquentar. Eu me esqueci de fechar a janela, o louro rolou para o outro lado da cama, tremendo ao perceber que aquela área estava fria. Seu rosto afundou-se ao travesseiro e ele respirou fundo, sentindo cada fibra de seu corpo acordar por completo. O Inspetor de Polícia adorava aquele cheiro. Era uma mistura de jasmim e algum perfume amadeirado, misturado com shampoo de baunilha. Alaudi não notou que sorria até suas mãos apertarem o travesseiro e seu corpo abraçá-lo com possessividade. Eu sinto falta dele. Eu sinto tanta falta dele. Os olhos azuis se fecharam e a única pessoa presente no quarto voltou a suspirar. Aquela era a terceira manhã em que ele acordava sozinho. O terceiro dia que marcaria a ausência de seu amante. Mais três dias... Em três dias eu o verei novamente.

Ivan Cavallone havia deixado a Itália a trabalho. Aquele era o único motivo que faria aquele homem abandonar o conforto de sua mansão, e infelizmente o Guardião da Nuvem não poderia fazer nada a respeito. Não é como se fosse a primeira vez que isso acontece. Eu já deveria ter me acostumado. Já faz cinco anos... O louro retirou-se de dentro dos cobertores, sentando-se na cama e coçando os cabelos bagunçados. Seus olhos fitaram o quarto, reconhecendo cada detalhe, cada móvel, cada pedacinho daquele lugar. Essa casa se tornou tão minha que não existe um pedaço que eu não conheça. O Inspetor de Polícia virou o rosto, encarando o lugar vago ao seu lado direito. Aquele local pertencia ao dono da casa, que não retornaria da França até o final da semana. Nesses cinco anos ele viajou mais vezes do que posso contar, mas ultimamente a distância tem se tornado mais insuportável. Os olhos azuis se abaixaram e Alaudi espreguiçou-se longamente. O relógio da cômoda marcava pouco mais de 7h da manhã, e, apesar de cedo, ele sabia que precisaria estar de pé. Eu preciso estar bem acordado quando ela resolver despertar.

Arrastando-se para fora da cama, o louro agarrou um dos cobertores e enrolou-se totalmente, seguindo até o banheiro da suíte com passos rápidos.

A banheira levou um tempo considerável para encher-se, mas o banho do Guardião da Nuvem foi breve. A vantagem do inverno (e também de se estar sozinho) era que não havia motivos reais para tomar banhos demorados. O Inspetor de Polícia dedicou alguns minutos aos dentes e aos cabelos, retornando ao quarto com o mesmo cobertor em suas costas. Sua troca de roupas se limitou às primeiras peças que surgiram em seu campo de visão e meia hora após ter aberto os olhos Alaudi deixava o quarto.

O Guardião da Nuvem lançou um longo olhar, encarando o corredor vazio. Havia cerca de oito portas no andar, mas apenas três quartos ocupados. A última porta, do outro lado do corredor, pertencia ao primogênito e herdeiro da Família. Francesco viajou com Ivan. Há seis meses ele passou a acompanhar o pai em suas viagens, mesmo eu tendo sido contra. O louro fechou os olhos momentaneamente, tentando não se lembrar daquele terrível dia. Quando o Chefe dos Cavallone comunicou que passaria a levar o filho, o Inspetor de Polícia foi totalmente contra a ideia. Francis tem apenas dez anos; é uma criança. Crianças devem brincar, correr, cair e chorar. Não frequentar jantares chatos e conviver com adultos mesquinhos. A discussão daquela noite foi tão acalorada que Alaudi deixou a mansão tarde da noite e seguiu para sua casa, em Roma. Os dois não se falaram por duas semanas, e aquele tempo teria se tornado muito maior se no 16º dia o próprio garoto de cabelos castanhos e olhos cor de mel não tivesse aparecido na porta de sua casa. Os dois sentaram e conversaram e o pequenino Francesco disse que seu pai não tinha culpa, e que havia partido dele a iniciativa. Ele disse coisas que jamais pensei que ouviria de uma criança, o Guardião da Nuvem sentiu o rosto corar com aquela lembrança.

"Se eu aprender rápido o trabalho, isso significava que papà pode ficar em casa, e você ficaria feliz, não? Se papà pudesse passar mais tempo ao seu lado, Alaudi!"

O louro parou de andar, passando a mão na nuca e esboçando um tímido meio sorriso. Depois daquela conversa foi impossível continuar distante do moreno, mas o Inspetor de Polícia não deu o braço a torcer, logo, partiu de Ivan a iniciativa para uma reconciliação. Uma semana depois, o Chefe dos Cavallone embarcou para a Espanha com o filho e aquele foi o começo dos dias solitários de Alaudi.

O pensamento foi afastado momentaneamente. Os olhos do Guardião da Nuvem pularam duas portas e pousaram no pedaço de madeira branco diante de seus olhos. A porta era alta e possuía um letreiro em madeira escura, formando um charmoso "C". Naquele momento o louro se permitiu um sorriso mais largo, imaginando que o motivo pelo qual a casa estava em silêncio era porque o monstrinho que residia naquele quarto estava dormindo. Por pouco tempo...

Os passos do Inspetor de Polícia foram abafados pelo tapete vermelho que forrava o corredor e a longa escadaria que levava ao hall. Durante os degraus iniciais, Alaudi permitiu-se imaginar como seria aquele dia e como passaria seu tempo até o anoitecer. Algumas ideias interessantes chegaram a cruzar a superfície de sua mente, mas elas foram totalmente afastadas quando a porta de entrada se abriu. O louro estava na metade do caminho, em uma posição em que não poderia dar meia volta e refazer o trajeto. A expressão em seu rosto tornou-se pesada, suas sobrancelhas se juntaram e seus lábios se crisparam em uma dura linha. Alaudi era Inspetor de Polícia há mais dez anos, e durante aquele tempo conhecera inúmeros tipos de pessoas. Por esse motivo ele evitava contato; por conhecer bem demais a natureza humana e simplesmente não achar necessário perder tempo com pessoas que não tinham absolutamente nada a oferecer. Entretanto, eram raros aqueles que conseguiam fazer brotar em seu peito um sentimento tão negativo, como a pessoa que caminhava diante de seus olhos. Nem mesmo Giotto, Chefe dos Vongola, o fazia sentir tanta raiva e inimizade.

Mario entrou no hall, fechou a porta e ergueu os olhos.

Daquela distância o louro não conseguiu ver sua expressão, mas assumiu que o homem sorria. Aquele pensamento fez seus dedos apertarem a madeira do corrimão, arrependido por ter acordado tão cedo. Não importa a hora, esse homem infelizmente não irá desaparecer da minha vida. O Inspetor de Polícia sabia bem desse detalhe, e não importasse quanto quisesse que aquela pessoa desaparecesse, ele sabia que o ruivo não se afastaria. Eu esperei... durante esses cinco anos eu esperei por um deslize. Alaudi voltou ao seu trajeto, mas colocando menos entusiasmo em seus passos, descendo cada degrau como se fosse um martírio. Eu esperei que esse homem cometesse o menor dos erros para tirá-lo da minha vida, mas nada...

O louro mordeu o lábio inferior. Era impossível ver o Braço Direito dos Cavallone sem se lembrar de seu amigo de infância e também colega de trabalho. O motivo principal para aquela inimizade absoluta se chamava Giulio e provavelmente estava ocupado na sede de Polícia, assumindo provisoriamente o lugar do Inspetor Chefe. O moreno e Mario eram amantes há cinco anos, basicamente o mesmo tempo que ele e Ivan. Porém, as similaridades acabavam ai. O ruivo era o pior tipo de pessoa existente no mundo, a escória da escória. O lixo do lixo. A fama do Braço Direito era tão conhecida e falada, que Alaudi acreditou cegamente que seria uma questão de tempo até que aquele relacionamento acabasse. Eu esperei... a cada desentendimento entre eles eu comemorava internamente e torcia para que aquela fosse a gota d'água. Eu estava confiante que aquele homem trairia Giulio em uma questão de dias, mas nada... nada aconteceu. O louro terminou de descer as escadas, cerrando os dentes ao ver que sua companhia havia se dado ao trabalho de caminhar até ele. Ele não traiu, as brigas entre eles foram menos frequentes do que as minhas com Ivan e no final eu tenho que aturá-lo todas as vezes que venho aqui.

"Bom dia, Alaudi."

A voz de Mario soou rouca, como sempre. Aquela pessoa mudara muito pouco naqueles cinco anos, e o Guardião da Nuvem arriscaria dizer que as alterações foram físicas, pois a personalidade insuportável e ruim continuava a mesma. O ruivo havia deixado os cabelos crescerem, e agora os usava geralmente presos em um rabo de cavalo. As sardas continuavam a pintar boa parte de seu nariz e bochechas, e, não importasse de que ângulo olhasse, o Inspetor de Polícia não via nenhuma mudança realmente relevante.

"Bom dia." A resposta de Alaudi soou baixa e entre os dentes. Não havia pior maneira de começar um dia do que ver aquela pessoa.

"Aqui..." Mario abriu os botões do sobretudo negro que vestia, retirando um envelope de tamanho médio. "Pediram para entregar."

Se o humor do louro já estava ruim, ao encarar aquele envelope a coisa ficou realmente séria. Os olhos azuis se apertaram e o Guardião da Nuvem mordeu mentalmente aquela pessoa até a morte. O ruivo esboçava um triunfante meio sorriso, expressão parecida havia sido mostrada há anos, quando o Inspetor de Polícia chegou à casa de seu amigo e foi atendido por um descomposto homem, que praticamente o enxotou da soleira. Ele veio da casa de Giulio. Aquela realização fez o estômago de Alaudi dar voltas. Às vezes ele conseguia esquecer a realidade, a dura e triste realidade, de que seu amigo estava sendo usado por aquele homem, mas eram em momentos como aquele que a negação se mostrava totalmente insignificante.

Não houve agradecimento. O louro não se sentia inclinado a abrir a boca novamente, pois sabia muito bem que acabaria dizendo o que não devia, e, infelizmente, ele estava preso àquela pessoa até que Ivan retornasse. Giuseppe acompanhava Francesco, então era de Mario a responsabilidade por cuidar da casa. Ter a companhia do ruivo não era inédito para o Guardião da Nuvem. Desde que o Chefe da Família decidira levar o filho em suas viagens, o Braço Direito permanecia na mansão, cuidando dos assuntos pendentes. A função do Inspetor de Polícia, porém, era vigiar o último membro da Família Cavallone, que não podia em hipótese alguma ser deixado sozinho. E espero que ela continue dormindo por um bom tempo...

Alaudi segurou o envelope e passou por Mario como se ele nem sequer estivesse ali. Seu estômago pedia um pouco de atenção, um mimo que uma boa torrada com geleia poderia oferecer, mas o caminho do louro foi outro. Seus pés cruzaram o hall e ele virou à direita, seguindo até o escritório de Ivan e finalmente soltando um longo e necessário suspiro. Naquele espaço ele sabia que não seria incomodado e poderia colocar seus pensamentos em ordem. O envelope foi pousado sobre a mesa de madeira clara, e intimamente o Guardião da Nuvem sabia do que se tratava. Há algumas semanas eles estavam investigando a entrada clandestina de produtos estrangeiros, e Giulio havia conseguido informações valiosas sobre o assunto. Alaudi sabia que seu amigo não se daria ao trabalho de lhe enviar qualquer coisa, então o que quer que estivesse dentro daquele envelope era relevante e necessitava de atenção. O único problema era que o Inspetor de Polícia não se sentia muito atento naqueles últimos dias.

Entrar no escritório não havia sido uma boa escolha e o louro soube disso após os minutos iniciais. O silêncio e solitude que dominavam aquele cômodo o deixaram incomodado, e, não importasse para onde olhasse, ele sabia que não veria Ivan saindo detrás de alguma estante, abraçando-o por trás e tentando seduzi-lo com palavras tolas e toques muito íntimos. Seus olhos não veriam o carro negro cruzar o jardim e estacionar em frente ao chafariz em forma de dois cavalos alados, e seus ouvidos não capturariam a doce, mas máscula voz do moreno, convidando-o para horas ardentes sobre a larga cama do quarto. Esta casa é grande demais quando ele não está presente. O Guardião da Nuvem se permitiu uma segunda olhada pelo escritório. Não havia nada naquele lugar que não o fizesse lembrar-se do Chefe dos Cavallone. Da escolha das cortinas até os títulos dos livros... tudo era Ivan. Todavia, infelizmente, seu amante não estava ali.

O envelope entregue por Mario continha meia dúzia de folhas e o Inspetor de Polícia sentiu certo orgulho de Giulio. Após o primeiro momento de saudade, Alaudi caminhou até uma das poltronas e sentou-se. O intuito de ocupar a cadeira do moreno passou por sua mente, mas ele se viu corando com o pensamento de sentar-se ali. A inusitada ideia foi rapidamente afastada, e o louro acomodou-se em uma confortável poltrona, lendo o relatório de seu Braço Direito e sorrindo satisfeito. Giulio é definitivamente um dos meus melhores homens. Seus relatórios são objetivos e sucintos, porém, nenhuma informação passa despercebida. O Guardião da Nuvem lembrou-se com carinho de seu amigo. Desde que Ivan viajou ele não deixara a mansão, então os contatos feitos eram através de correspondência ou... Mario... O Inspetor de Polícia bagunçou a cabeça, tentando afastar aquele pensamento nem um pouco convidativo. Os papéis foram guardados dentro do envelope e o estômago de Alaudi roncou. Ele havia passado mais tempo do que imaginava no escritório, entretanto, por mais fome que sentisse, o louro havia prometido que não tomaria café da manhã sozinho.

"ALAUDI!"

A porta do escritório foi aberta com violência, batendo do outro lado e fazendo com que o Guardião da Nuvem arregalasse os olhos por puro reflexo. Suas sobrancelhas se juntaram, mas ele não teve tempo de indagar o que estava acontecendo. O motivo de todo aquele alarde entrou no escritório com passos rápidos, cortando o curto espaço e jogando-se sobre o colo do Inspetor de Polícia. Os olhos azuis se abaixaram e a única coisa que Alaudi viu foi um mar de fios ruivos, muito ruivos.

"Alaudi!" Dois grandes olhos castanhos ergueram-se para ele. Eles emolduravam um rosto extremamente belo e pintado por sardas. A dona daquela face era uma garotinha de cinco anos completos, que batia um pouco acima de seus joelhos e que naquela manhã vestia um pijama de inverno coberto por grandes desenhos de sóis. "Bom dia!"

"Bom dia, Catarina." Os lábios do louro se repuxaram em um meio sorriso e foi impossível para o Guardião da Nuvem não tocar aqueles fios de cabelo. Eles estavam desarrumados e pareciam uma verdadeira bagunça, mas eram macios e cheiravam a morangos. "Você acordou cedo esta manhã."

"Eu não consegui mais dormir. Meu nariz estava me incomodando." A filha de Ivan passou as costas das mãos sobre o nariz. "Nee, nee, Alaudi, eu estou com fome."

"Eu estava apenas te esperando." O Inspetor de Polícia deixou seus dedos correrem através dos cabelos da pequena. Apesar de bagunçados, os fios não estavam embaraçados. "Por que ainda não penteou os cabelos?"

"Eu nunca mais vou pentear os cabelos." Catarina desceu do colo de Alaudi, pisando no tapete. "Eu decidi ser selvagem!"

"Selvagem...?" O louro juntou as sobrancelhas. Aonde foi que ela ouviu sobre isso?

"Vamos tomar café, Alaudi!"

A garotinha correu até a porta, fazendo sinal para que o Guardião da Nuvem a acompanhasse. O Inspetor de Polícia suspirou, segurando o envelope em suas mãos e seguindo sua companhia. Catarina o esperava do lado de fora, esticando a mãozinha para que ambos seguissem juntos pelo hall. O humor de Alaudi tornou-se excelente naquele exato momento. A pequena tinha esse efeito sobre ele, fazendo-o esquecer das coisas ruins e apenas se focando nas alegrias da vida.

O caminho até a sala de jantar foi feito entre comentários bobos e animados por parte de Catarina. A garota relatava um sonho que tivera com florestas e gigantes. Alaudi ouvia a tudo, mas sem dizer uma palavra. Ela fala por nós dois. Catarina basicamente fala por todos nessa casa. Em cinco anos a filha de Ivan se tornaria um verdadeiro poço de curiosidade. Não havia nada que ela não perguntasse, da menor e mais irrelevante informação até as mais estranhas e indesejáveis perguntas. Eu jamais me esquecerei do dia em que ela perguntou, durante o almoço, na frente de todo mundo, por que eu dormia no mesmo quarto que Ivan. O louro sentiu as bochechas corarem ao se recordar daquela lembrança. Aquilo havia acontecido há quase um ano, mas até o dial atual o Guardião da Nuvem tinha medo de ser surpreendido por algum comentário semelhante. Ivan riu e engasgou com o pão, Francesco e Mario gargalharam, o pobre Giuseppe fingiu derrubar algo no chão e tudo o que fiz foi encarar aquele pequeno-adulto, sem saber o que dizer. Após aquele almoço, o Chefe dos Cavallone teve uma séria conversa com os filhos e foi a primeira vez que Ivan disse a alguém sobre eles. Francesco deu de ombros, dizendo que já sabia, e Catarina apenas balançou a cabeça e disse que entendia a situação, porque sabia que Mario também dormia no mesmo quarto de Giulio. Aquele insolente, ensinando esse tipo de coisa para uma garota tão pura!

A sala de jantar estava arrumada para o café da manhã quando os dois entraram.

A garota ruiva correu até seu lugar, do lado esquerdo e em frente à Alaudi. O lugar do louro era do lado direito de Ivan e foi ali que ele se sentou. As empregadas que estavam no local fizeram uma polida reverência antes de se retirarem e o Guardião da Nuvem suspirou satisfeito. A mesa estava forrada por pães, bolos e frutas, além de chás, café e sucos. A primeira coisa que Catarina pegou foi uma generosa fatia de mamão, colocando-a delicadamente sobre seu prato. Os olhos azuis do Inspetor de Polícia aprovaram aquela escolha, mas ele mesmo optou por uma fumegante xícara de café e um pedaço de bolo. Ela cuida da alimentação e não perde a oportunidade de lembrar aos demais sobre a necessidade de comer frutas e legumes. Aquele hábito Alaudi sabia que fora herdado de Giuseppe. O Braço Direito de Francesco era uma pessoa extremamente correta e consciente, e não era segredo que Catarina caia de amores pelo jovem rapaz. Um homem, Alaudi. Giuseppe não é mais um menino. O café tocou seus lábios e o louro sentiu o líquido descer quente e amargo por sua garganta. Lembrar-se do antigo Giuseppe era nostálgico, pois o fazia recordar-se de tudo o que acontecera naquela época. O Braço Direito de Francesco agora era um homem de 21 anos, extremamente belo e responsável. Seus cabelos longos foram substituídos por um corte abaixo da orelha e seu trabalho dobrou desde que Francesco decidiu acompanhar o pai em suas viagens. Até ontem Giuseppe era um jovem inexperiente que aceitava tudo. Hoje ele se impõe e não é estranho vê-lo discordar do próprio Chefe. Ivan disse que Giuseppe será capaz de colocar Francesco na linha, e eu acredito.

O mamão desaparecera do prato de Catarina, sendo substituído por uma fatia de pão com geléia. O Guardião da Nuvem a serviu com um pouco de chá, e os dois continuaram a comer em silêncio. Desde a primeira viagem do moreno, a garota ruiva fez o Inspetor de Polícia prometer que não a deixaria tomar café da manhã sozinha. Como jamais conseguiria negar algo àquela criatura adorável, Alaudi, enquanto estivesse na mansão servindo de babá, esperaria pacientemente a dona da casa descer para compartilharem aquele momento. Sua espera, porém, não era longa. Catarina tinha hábitos peculiares, como dormir cedo e acordar cedo. Ela era geralmente a primeira a levantar, surpreendendo a todos por estar totalmente acordada quando os demais se arrastavam para o café da manhã. Ela é diferente de Francesco. A primeira vez que visitei esta casa o pequeno se escondeu entre as pernas do pai, tímido e corado. Catarina nunca é tímida, sempre dizendo o que passa por sua mente, independente se aquilo é ou não permitido. Uma parte de Alaudi admirava aquela qualidade. Ele também gostaria de conseguir transmitir tudo o que sentia, especialmente com relação a Ivan...

Recordar-se do moreno fez com que o último gole de café não descesse tão saboroso. Os olhos azuis encararam a cadeira ao lado, na ponta da mesa, sentindo um estranho incômodo ao vê-la vazia. Era estranho não poder compartilhar uma refeição com seu amante, e a cada dia ele sentia como se a saudade o consumisse pouco a pouco. A atenção do louro foi para sua companhia e por um momento o Guardião da Nuvem ficou surpreso. Catarina encarava a cadeira de Ivan e havia algo diferente na maneira como seus olhos castanhos brilhavam.

"Saudades do seu pai?" A voz do Inspetor de Polícia soou baixa. Em seis meses, aquela foi a primeira vez que a garota demonstrou qualquer coisa com relação à ausência de Ivan.

"Talvez..." Catarina voltou a encarar seu pedaço de pão. "Eles voltam logo, né?"

"Mais três dias." Alaudi sentiu o coração apertado. Diante de seus olhos estava alguém que compartilhava do seu nível de solidão e aquilo era reconfortante.

"Hm..."

A pequena ruiva deu um gole em seu chá, e a conversa terminou, pelo menos no que dizia respeito ao Chefe dos Cavallone. Pois, segundos depois, Catarina iniciou uma conversa mais animada, dizendo que gostaria de brincar na neve durante o dia. O inverno daquele ano estava sendo rigoroso, e parte da propriedade estava coberta por uma grossa camada branca. O louro concordou com a ideia, pensando que não havia nada demais em um pouco de diversão fora daquelas paredes, mas avisou que só permitiria se a garota se agasalhasse bem. Com a aprovação para suas brincadeiras, a pequenina terminou seu café com um sorriso e dez minutos depois não havia nenhum pingo de tristeza em seu olhar. Eu queria conseguir esquecer tão rápido. Eu queria não pensar.

Os dois deixaram a sala de jantar lado a lado. Catarina falava sobre o boneco de neve que construiria e as mil ideias que tinha para fantasiá-lo. O Guardião da Nuvem ouvia a tudo, anotando mentalmente o que precisaria levar, como cachecol, e uma cartola. Eu tenho certeza que Ivan não irá se importar... eu acho... A visão de passar aquele dia na companhia da pequena garota de cabelos ruivos havia salvado o dia do Inspetor de Polícia, ou pelo menos era o que ele gostaria de acreditar...

Alaudi sentiu um desagradável déjà vu ao pisar no hall e ver Mario adentrar a mansão. O Braço Direito do Chefe dos Cavallone estava enterrado em seu sobretudo e seus cabelos vermelhos estavam pintados por flocos de neve. A voz de Catarina tornou-se um fio e a próxima coisa que o louro viu foi a garota correr até Mario, rondando-o e abraçando suas longas pernas.

"Bambina, o que faz tão cedo fora da cama?" O Braço Direito tirou uma das mãos dos bolsos, tocando os cabelos de sua pequena companhia. "E que cabelo é esse? Onde estão as empregadas? Como foi que te deixaram descer dessa maneira?"

"Elas não deixaram, eu desci!" Catarina parecia orgulhosa por estar completamente despenteada. "E eu nunca mais vou pentear o cabelo, Mario. A partir de hoje eu viverei selvagem!"

"Oh!" O homem fingiu surpresa, erguendo os olhos. O Guardião da Nuvem cruzou os braços e virou o rosto, mostrando que não tinha relação com aquela decisão. "Mas isso é realmente uma pena, não? Pobre Giuseppe!"

Quando o nome do Braço Direito de Francesco chegou aos ouvidos da garota, foi como se o teto desabasse ali, no meio do hall. Catarina endireitou-se e juntou as sobrancelhas, tornando-se o mais mortal que uma criança de cinco anos poderia aparentar.

"O que você quer dizer?" A desconfiança da menina era quase palpável.

"Sabe, Bambina, Giuseppe é um homem muito simples." O Inspetor de Polícia revirou os olhos. Ele sabia que o que quer que saísse dos lábios daquela insuportável pessoa não passaria de mentiras. "Mas ele adora mulheres que sabem se vestir e estão bem penteadas. Sim, sim."

"Oh..."

Catarina mordeu o lábio inferior, olhando para os lados e passando as mãos instintivamente pelos cabelos. Alaudi permaneceu no mesmo lugar, estático e esperando aquela mentira surtir efeito. A garota ruiva despediu-se de Mario com um aceno, aproximando-se do louro apenas para avisar que pegaria um casaco antes de saírem para brincar na neve. O Guardião da Nuvem disse que esperaria, e então Catarina subiu as escadas como se sua vida dependesse daquela caminhada. Ao chegar ao topo, a última coisa que o Inspetor de Polícia ouviu foi a garota chamar as empregadas.

O Braço Direito de Ivan abriu um largo sorriso antes de cruzar o hall e sumir em alguma parte da casa. Alaudi colocou as mãos nos bolsos, imaginando se não seria mais sábio subir e pegar um cachecol. Aquela dúvida o importunou por alguns segundos, até o louro decidir retornar ao quarto de Ivan. Havia uma infinidade de roupas de inverno, e o Guardião da Nuvem pegou o cachecol mais fofo e as luvas mais quentes. A cartola... O Inspetor de Polícia sorriu consigo mesmo ao encontrar o acessório, na parte de cima. E, ao sair do quarto, quase ao mesmo tempo, Catarina deixou seus aposentos. A garota ruiva estava enrolada em um grosso sobretudo, mas, ao contrário de anteriormente, seus cabelos estavam penteados e presos em uma bela trança. Os dois se encontraram no topo da escada e Catarina corou, descendo as escadas na frente, e apenas dizendo que o cabelo atrapalharia sua brincadeira. Alaudi tentou não rir, não pela situação, mas sim porque jamais assumiria que Mario havia feito algo útil. Não, não ele. Nunca!

x

A propriedade dos Cavallone estava coberta por uma grossa camada de neve. Nem mesmo os dois cavalos alados haviam escapado aquele destino. Não havia água jorrando de suas bocas, mas sim um arco estranho e transparente, congelado. O jardim, vistoso e verde na primavera, agora não passava de um ponto cinza. A paisagem havia se transformado em preto e branco, como se não existissem outras cores no mundo. O louro encolheu-se em seu cachecol, tentando juntar forças suficientes para aproximar-se de sua companhia. Catarina havia corrido assim que deixou a mansão, agitando os bracinhos e pulando até que a neve cobrisse seus joelhos.

O local escolhido para o início da empreitada ficava embaixo de uma gigantesca macieira. O Guardião da Nuvem engoliu o frio e juntou-se a garotinha ruiva e os dois começaram a construção do boneco. O começo foi penoso e literalmente congelante, mas quando a base do boneco foi feita tornou-se impossível não esquecer um pouco o frio e deixar-se perder naquela interessante brincadeira durante horas.

A manhã chegou ao fim e com ela a construção do boneco. Ele havia ficado pronto no exato momento em que Mario surgiu, avisando sobre o almoço. Catarina o puxou pela mão, levando-o até sua obra de arte. A garota falou com certo orgulho sobre o trabalho, citando o nome de Alaudi em todas às vezes. O louro permaneceu em silêncio, encarando o outro lado e decidindo que já havia passado frio suficiente. Catarina ficou levemente relutante em retornar, mas no final a fome falou mais alto e os três voltaram para a mansão.

O almoço foi quente. Deliciosamente e necessariamente quente.

O Guardião da Nuvem fez uma nota mental para agradecer ao cozinheiro pela escolha do prato: uma rica e encorpada sopa de legumes. O caldo desceu cálido pela garganta do Inspetor de Polícia, aquecendo-o por inteiro e fazendo-o esquecer as horas que passou com neve até os joelhos. Sua companhia comia em silêncio, provavelmente tão satisfeita quanto ele por sair do frio. A sobremesa foi uma torta de chocolate, mas dessa vez Catarina declinou seu pedaço. Alaudi havia dado apenas uma mordida em sua torta quando algo na maneira como a garota passou a mão na testa o incomodou. Ela é hiperativa, mas tornou-se quieta de repente. A realização de que Catarina encarava a cadeira vazia de Ivan fez seu peito doer, entendendo o que estava acontecendo.

"Catarina." O louro chamou a atenção da garota. Os grandes olhos castanhos pousaram sobre ele no mesmo instante. "Você acordou muito cedo esta manhã, então o que acha de dormir um pouco à tarde? Podemos acender a lareira do escritório e eu posso contar uma história."

"Uma história?" A garota ruiva abriu um largo sorriso. "Qualquer uma? Posso escolher?"

"Sim..." O Guardião da Nuvem tinha uma leve desconfiança sobre qual seria a natureza da escolha.

"Eu quero ouvir uma história sobre os Vongola!"

"V-Vongola?" A voz do Inspetor de Polícia falhou. Ele estava pronto para compartilhar alguma bobagem sobre Ivan, mas não esperava por aquilo.

"Sim! Da última vez que visitei a mansão dos Vongola, Giotto me contou várias histórias! Foi tão incrível, Alaudi!" Os olhos de Catarina brilhavam. "Ele me contou sobre a viagem a um lugar chamado Japão. E como conheceu Ugetsu! Oh, Alaudi, Ugetsu é tão engraçado! Ele sempre fala sobre lugares bonitos e árvores cor de rosa e chás durante à tarde! Ah! Alaudi, Alaudi! Você sabia que Ugetsu também dorme no quarto de G.? Como você e papà! E ––"

"Eu entendi!" Alaudi ergueu a mão, ele se sentia cansado depois de ouvir tudo aquilo sem uma única pausa. A realização de que aquela garotinha sabia muito mais do que deveria o assustava... muito. "Eu contarei uma história sobre os Vongola, mas apenas me prometa que não mencionará nada sobre isso com Giotto, está bem?"

"Eu prometo!"

Quando o almoço terminou, o louro sentia-se exausto, como se houvesse trabalhado durante vários dias sem nenhum descanso. Os dois seguiram para o escritório e o Guardião da Nuvem acendeu a lareira, acomodando-se no sofá mais largo. Catarina lhe fez companhia, sentando-se ao lado, mas mantendo as costas sobre o ombro do Inspetor de Polícia. A garotinha adorava ouvir histórias, mas somente aquelas que envolviam pessoas que ela conhecia. Todas as vezes que Ivan tentou ler alguma coisa retirada de um livro, Catarina não parecia atenta ou interessada. Todavia, o moreno só precisava começar com "Uma vez, quando eu era..." ou "Você sabia que Giotto..." que a atenção da garota era totalmente conquistada.

Naquela tarde não seria diferente.

Alaudi começou exatamente como o Chefe dos Cavallone costumava iniciar suas histórias. Embora não lhe agradasse a ideia de perder tempo falando dos Vongola, ele não se importaria de engolir o orgulho se isso significasse fazer aquela pequena pessoa feliz.

"Você sabia que Giotto, uma vez, perdeu-se em..."

A história havia sido tola e ele somente sabia daquele fato por ter participado diretamente. Apesar de não fazer parte daquela Família (não importasse quantas vezes ele precisasse lembrar!), aquele fora um trabalho oficial da Polícia, então o louro não teve alternativa além de participar. Muitas coisas aconteceram na missão, mas a parte narrada limitou-se apenas ao Chefe dos Vongola perdendo-se na floresta e reaparecendo dois dias depois como se nada tivesse acontecido. O Guardião da Nuvem fez parte da equipe de busca, e a vontade de morder aquele homem, quando ele saiu de dentro da floresta rindo e todo sujo, foi descomunal.

Catarina ouviu a tudo com muita atenção. Ela riu dos momentos bobos e fez milhões de questões sobre o paradeiro de Giotto, mas que infelizmente não foram respondidas. Entretanto, como mágica, quando a história terminou a garota de cabelos ruivos simplesmente dormiu, como se o que a tivesse mantido acordada fosse somente sua gigantesca curiosidade. O Inspetor de Polícia sorriu aliviado, levantando-se devagar e deitando Catarina no sofá. Sua cabeça fora colocada por cima de uma almofada e Alaudi retirou o sobretudo e a cobriu. A lareira havia aquecido o escritório, então aquela peça de roupa acabaria se tornando desnecessária. Agora eu posso trabalhar um pouco. O louro sentou-se na poltrona ao lado e segurou o envelope pardo que Giulio havia enviado e que estivera guardado dentro do sobretudo. Intimamente, ele sabia que Catarina dormiria durante a tarde inteira então seria preciso utilizar sabiamente aquele tempo livre. Seus olhos azuis encararam por um momento a cadeira de Ivan, mas a tentação de se sentar ali não o abateu. Mais três dias...

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O Guardião da Nuvem abriu os olhos no momento em que o primeiro toque acertou a madeira escura da porta do quarto. Aqueles anos na Polícia o ensinaram a ter um sono seletivo. Ele conseguia distinguir certos barulhos, ainda mais quando eles soavam pesados e insistentes à sua porta. O Inspetor ficou em pé no mesmo instante, arrastando-se para fora da cama e não sentindo o frio. Seu coração batia rápido, descompassado e havia um nó em sua garganta. Ele sabia que era noite. A cortina estava fechada pela metade, permitindo que uma parte do céu fosse visto. Alaudi havia deixado aquela fresta propositalmente visível, para que a claridade do dia o acordasse. Entretanto, ao abrir os olhos e encarar o céu escuro, o louro teve um péssimo pressentimento.

Nunca, em cinco anos, ele fora interrompido naquele quarto.

Nunca, em todo aquele tempo, nada o fizera acordar no meio da noite, de sobressalto, tropeçando no tapete e chegado à porta em uma velocidade absurda.

E nunca, em toda a sua vida, o Guardião da Nuvem esteve tão certo de que alguma coisa estava errada. A porta foi aberta e, ao encarar a empregada pálida e trêmula do outro lado, o Inspetor de Polícia sentiu seu chão simplesmente desaparecer. Ele sabia. Ele sabia que algo havia acontecido e o rosto que brotou em sua mente o fez sair do quarto e cruzar o corredor em uma rápida corrida, entrando no próximo quarto de maneira abrupta e deselegante.

Havia quatro empregadas ao redor da cama e dois subordinados do lado de fora.

Catarina estava deitada do lado esquerdo, como era seu costume, mas imóvel. Alaudi sentiu quando seus lábios se entreabriram e um nome foi sussurrado baixo, estrangeiro, improvável. O subordinado que estava ao seu lado desapareceu no mesmo instante e foi com muita força de vontade que o louro arrastou-se até a beirada da cama. Seu corpo sentou-se devagar e seus dedos tocaram a pálida e pequenina mão que estava sobre o cobertor. Quente... ela está quente.

"Chame o médico. Leve o carro e volte com o médico." A voz do Guardião da Nuvem saiu mecânica. "Traga uma vasilha com água fria e alguns panos para compressa." As empregadas se moveram no mesmo instante, porém, antes que uma delas se afastasse o Inspetor de Polícia a segurou pelo pulso com mais força que o necessário. Seus dedos tremiam. "Conte-me o que houve, mulher."

A jovem moça narrou em segundos como foi acordada por um dos subordinados, em pânico, dizendo que, ao fazer a ronda na casa, havia encontrado a garotinha sentada em uma das cadeiras da sala de jantar, totalmente desacordada e febril. Ela havia sido levada até o quarto e a próxima coisa que a empregada fez foi chamar Alaudi. A história foi contada rápida e a moça pediu licença para ajudar as demais com os preparativos. Os dedos soltaram o pulso devagar, mas aquela não havia sido uma boa ideia. Quando todos deixaram o cômodo, o louro olhou ao seu redor, em uma mistura de pânico e impotência. Seu coração batia rápido e sua mente funcionava em uma velocidade absurda, tentando juntar partes, encontrar buracos que explicassem o que pudesse ter acontecido.

"Eu não consegui mais dormir. Meu nariz estava me incomodando."

O Guardião da Nuvem tocou a testa febril de Catarina e depois seu peito. Ele sentiu o chiado e a maneira como aquela criança tinha dificuldades em respirar. Seus olhos se arregalaram e ele ficou em pé ao ouvir alguém entrar no quarto. Duas empregadas trouxeram a vasilha com água e umedeceram um pedaço de flanela, colocando-o sobre a testa da garota.

"Ela foi encontrado sentada na cadeira de Ivan?" A voz do Inspetor de Polícia soou alta e séria, exatamente a mesma voz usada quando ele precisava solucionar um caso.

"S-Sim..." A empregada que arrumava a vasilha com água respondeu hesitante.

E, como uma peça de dominó que cai e com ela derruba todas as demais, os acontecimentos fizeram sentido.

Catarina estava doente, provavelmente há alguns dias, mas simplesmente não disse nada ou até mesmo não se importou. A garota era naturalmente agitada, a ponto de, às vezes, ser preciso dosar aquela quantidade excessiva de energia. Todavia, esta manhã houve uma pista e Alaudi jamais se perdoaria por ter negligenciado aquele simples comentário sobre o nariz. A cadeira. Ela não estava olhando a cadeira por sentir saudades. Ela provavelmente não estava se sentindo bem e queria a presença de Ivan. A realização de que Catarina havia procurado o pai, provavelmente delirante, fez seu coração tornar-se absurdamente apertado e foi impossível permanecer naquele cômodo.

O ar se tornou quente, abafado, impossível de respirar. Suas mãos tocaram o apoio da escada e foi preciso um longo suspiro para que o louro conseguisse se colocar em pé novamente. Seu corpo tremia, o mundo girava e o Guardião da Nuvem se sentia completamente perdido, sem saber o que fazer. Inúmeras imagens ruins corriam através de sua mente e intimamente ele temia que algo pudesse acontecer a Catarina. O que eu direi a Ivan? Aquele pensamento o fez apertar a madeira com força. Seus joelhos tremeram. O Inspetor de Polícia nunca havia se sentido tão incapaz quanto naquele exato momento. O mínimo pensamento de que ele era responsável por aquilo foi suficiente para inundá-lo com um mórbido pessimismo.

Por alguns minutos Alaudi permaneceu ali, apenas respirando e tentando se acalmar. Seus pés o levaram novamente até o quarto e ele reassumiu seu lugar na beirada da cama. Foi através de suas mãos que o pano foi umedecido novamente e repousado na testa febril da garota de cabelos ruivos. Catarina não se movia. Sua respiração era fraca e baixa e daquele ângulo era parecia uma delicada boneca. Seus cabelos estavam escovados e disciplinados, provavelmente havia sido dedicado um tempo especial a eles antes de dormir. Ela deve ter ficado impressionada com a história sobre Giuseppe. Daqui para frente ela jamais deixará de pentear os cabelos. Aquele pensamento o fez engolir seco e foi impossível não sentir um nó em sua garganta. Abra os olhos, por favor.

O louro permaneceu sentado naquele local por um tempo que pareceu longo demais. As empregadas entravam e saiam, e em determinado momento sua paciência começou a se esvair, esperando pela ajuda que não chegava. Quando uma mão pesada pousou em seu ombro direito, o Guardião da Nuvem virou-se, sério e irritado, porém, pela primeira vez na vida aquele rosto não lhe trouxe raiva ou indignação. Desprezo ou antipatia. Era pura esperança.

Mario ajoelhou-se ao lado da cama, tomando o pulso de Catarina e olhando o relógio. Seu corpo colocou-se de pé e por puro instinto o Inspetor de Polícia fez o mesmo. O ruivo o levou até a porta, segurando-o pelo braço e naquele momento toda a angústia que Alaudi sentia simplesmente encontrou uma válvula de escape.

"Eu não sei o que fazer." Foi a única coisa que deixou seus lábios, dita por uma voz baixa. Era impossível. Ele jamais teria assumido algo assim para aquele homem.

"Fique aqui." Mario respondeu sério. Somente fora do quarto Alaudi pôde encarar aquela pessoa direito. Os cabelos ruivos estavam soltos, batendo um palmo acima dos cotovelos. O Braço Direito de Ivan ainda vestia a roupa social, apesar de tarde da noite. "Não o deixe entrar no quarto."

Aquela última parte não fora dita para o louro.

O Guardião da Nuvem virou o rosto e viu quando o médico da Família passou por ele, entrando no quarto com Mario. A porta fechou-se e o Inspetor de Polícia deu um passo à frente, instintivamente. Porém, antes que pudesse tocar a maçaneta, uma mão grande e pesada segurou seu pulso, fazendo-o virar. Alaudi tentou puxar a própria mão, não entendendo porque tentavam impedi-lo de prosseguir. Era sua responsabilidade, não? Era sua culpa que Catarina havia piorado. Ele a havia deixado brincar a manhã inteira, afundada na neve, tomando friagem desnecessária. Fora ele quem não viu os sinais e se alguma coisa acontecesse àquela garota sua vida estava arruinada.

"Alaudi!"

A voz soou alta e foi seguida por uma forte chacoalhada que o fez morder sua própria língua.

Os olhos azuis se abriram e a face do homem à sua frente tornou-se clara. Ele conhecia aquele rosto sério, as sobrancelhas levemente grossas e negras, os olhos verdes e profundos. Aquela voz era escutada todos os dias, na sede de Polícia, geralmente acompanhada por uma polida educação. O louro piscou, sentindo-se fraco, totalmente derrotado. Giulio o segurou antes que caísse, fazendo-o sentar-se ao chão, recostado à parede. Naquele momento o Guardião da Nuvem sentiu como se houvesse perdido uma batalha, a primeira, e a sensação não era agradável.

"Mario disse que ela ficará bem." O moreno abaixou-se ao seu lado, apoiando um dos joelhos no chão.

"Ele não sabe disso." O Inspetor de Polícia apoiou a testa aos seus joelhos flexionados. Era difícil respirar, pensar ou simplesmente existir.

"Ele disse que o irmão costumava ficar doente com frequência. Ele sabe o que está fazendo."

Alaudi ergueu o rosto, agradecendo mentalmente por aquelas palavras, mesmo que elas fossem falsas. Ele não se sentia menos culpado, mas era reconfortante ter um rosto amigo em meio à confusão. O Vice-Inspetor pareceu notar, pousando uma mão no ombro direito de seu amigo e Chefe, apertando-a devagar, mostrando-se presente.

"Desculpe por atrapalhar seu encontro." O louro tentou pensar em outra coisa. Há dias ele não conversava diretamente com Giulio e naquele momento ele precisava de qualquer coisa que o distraísse. Qualquer coisa.

"Não estávamos em um encontro." O moreno tornou-se sério. Seus olhos verdes encararam a porta fechada e sua expressão ganhou linhas mais duras. "Nós estávamos discutindo quando o empregado chegou e disse que você chamava por Mario."

Eu fiz isso. O louro juntou as sobrancelhas. Ele sequer lembrava que, ao entrar no quarto, o primeiro nome que deixou seus lábios foi justamente o do ruivo, a pessoa que ele menos gostava e confiava nesse mundo. Meu corpo simplesmente se moveu. Ele foi a primeira pessoa que apareceu na minha mente ao pensar em procurar ajuda. Patético!

"Eu devo estar fora de mim." O Guardião da Nuvem passou os dedos pelos cabelos. Suas mãos haviam parado de tremer e seu corpo já não parecia fraco. "Mas por que discutiam? Diga que decidiu dar um basta nessa bobagem e eu prometo que a primeira coisa que farei ao retornar ao escritório é promovê-lo. Você pode ter um andar somente seu."

O moreno riu baixo, um riso sem graça e falso que desapareceu no instante seguinte, como se nunca houvesse realmente existido. Seus olhos se tornaram pesados e, quando seus lábios se entreabriram, a porta do quarto roubou-lhe as palavras.

O médico saiu e o Inspetor de Polícia ficou em pé no mesmo instante. O homem que zelava pela "saúde" da Família Cavallone morava na propriedade e fora responsável por trazer Francesco ao mundo. Era um homem com cerca de 40 anos, cabelos louros e pele clara. Usava sempre óculos redondos por cima dos olhos azuis e possuía um sorriso calmo, tranquilo. Quando visitava a casa sempre trazia consigo o filho mais novo, que era da idade do herdeiro dos Cavallone. Os dois eram bons amigos e costumavam brincar juntos sempre que possível. Naquela noite, entretanto, o garoto não acompanhara o pai, mas o médico ainda possuía seu sorriso calmo.

"A garota acordou." O homem de nome Ottavio segurou a maleta entre seus dedos. "Não aconteceu nada demais. Ela apenas perdeu os sentidos por causa da febre. O resfriado é um pouco mais forte do que o esperado, mas nada que horas de descanso e muito líquido não resolvam."

A cada palavra Alaudi sentia como se houvesse uma faca em seu peito que girava e girava. Quando o médico se despediu com um menear de cabeça, o louro passou a mão na nuca, encarando a porta aberta e sentindo toda a angústia retornar. Ele falhara. Ele não fora capaz de proteger aquilo que era importante e no final mostrou-se totalmente irrelevante e impotente. O que eu fiz durante esses cinco anos? A figura de Mario surgiu à porta. Seus cabelos haviam sido presos no rabo de cavalo e ele não possuía o sorriso sádico e cínico de sempre. Os olhos verdes encararam o Guardião da Nuvem, mas eles enxergavam além... atrás... Ele vê somente Giulio.

"Ela está chamando pelo pai." O ruivo parou em frente ao Inspetor de Polícia. O homem era alguns centímetros mais alto.

Alaudi não fez ou disse nada. Suas mãos se fecharam em forma de punho e ele engoliu seco. Eu sei. Eu sei que ela chamou por Ivan durante a noite. Catarina deve ter ficado assustada, sentindo-se sozinha e desamparada. E eu não pude fazer nada.

"Eu disse que ela está chamando pelo pai!" A voz de Mario soou um pouco mais alta e petulante.

"Eu ouvi o que você disse." O louro sentiu o rosto tornar-se quente. Ele não precisava que alguém o lembrasse de que, no final, sua função naquele lugar era somente esquentar a cama do dono da casa. "Ivan está em outro país, eu não posso fazer nada! Ele só vol––"

A mão que o puxou continha mais força do que o necessário, mas também gentileza.

O Guardião da Nuvem arregalou os olhos ao ver que havia sido puxado pelo ruivo. Os dois se encararam de perto, o mais próximo que ele já havia chegado daquele homem. Os olhos verdes, claros e límpidos, as sardas que pintavam o nariz e parte das bochechas... Muito perto...

"Vá fazer o seu trabalho, Alaudi." Mario o empurrou na direção da porta e coçou a nuca. "Ela está chamando pelo outro pai."

A porta fechou-se e a última coisa que o Inspetor de Polícia viu foi os cabelos ruivos do Braço Direito de Ivan. O barulho daquele ato pareceu acordá-lo, e Alaudi virou-se na direção da cama. Catarina estava deitada, mas seu corpo havia se inclinado um pouco. Quando notou que o louro a olhava a garota abriu um sorriso fraco e o chamou com a mão. Naquele momento todos os medos que o Guardião da Nuvem sentia se dissiparam. Ele sabia o que fazer. Ele sabia o seu papel.

"Como você está?" O Inspetor de Polícia aproximou-se da cama. Seu corpo não tremia e sua voz soou baixa e gentil.

"Bem." A resposta saiu rouca. A voz da pequenina era apenas um fio.

"Precisa de algo? Quer comer alguma coisa?"

Catarina balançou a cabeça em negativo e piscou longamente. Alaudi permitiu que seus dedos tocassem aquela face, sentindo seu peito tornar-se aquecido ao notar que a pele não estava tão quente.

"Você precisa descansar. Eu ficarei aqui durante a noite, então durma tranquila."

A garotinha de cabelos ruivos encarou o louro por um momento, batendo com a mão direita sobre o lugar vago na larga cama. O Guardião da Nuvem sentiu seus olhos se arregalarem e seu coração voltou a bater mais rápido, mas não de medo, surpresa. Catarina era simplesmente impossível. Desde que chegou àquela mansão não houve um momento de sossego ou tranquilidade. Apesar de sua pouca idade, a garota era estranhamente independente e geniosa. A filha de Ivan não gostava de ser mimada ou favorecida. Aos três anos pediu ao pai que a deixasse dormir sozinha, e todas as vezes que o Chefe dos Cavallone tentava oferecer algum tipo de atenção especial, como um abraço apertado ou um beijo, Catarina fugia, rindo pelos corredores e dizendo que não era criança.

O Inspetor de Polícia levantou-se e deu a volta na cama. Somente naquele momento ele se deu conta de que vestia um pijama largo, duas vezes maior que o seu número. Eu sai para o corredor e encarei os subordinados enquanto vestia as roupas de Ivan. Que desagradável. Alaudi deitou-se e no mesmo instante Catarina virou-se e esboçou um sorriso contido, cansado. O louro apoiou a cabeça no travesseiro, tocando aquele rosto pálido. A pele era macia, até mesmo nos locais salpicados por sardas. A garotinha ruiva fechou os olhos e se arrastou até onde o Guardião da Nuvem estava, afundando o rosto em seu peito e abraçando-o. O Inspetor de Polícia puxou a coberta, mantendo-a aquecida. Aquele era um momento raro, ele sabia. Eu sinto muito. Alaudi podia ouvir a respiração chiada que vinha do peito da garota. Eu sinto muito por não ter sido um bom pai.

Catarina dormiu em segundos. Seu corpo relaxou, mas suas mãos permaneceram agarradas ao pijama do louro. Naquele resto de noite o Guardião da Nuvem não pegou no sono. Seus olhos permaneceram abertos e ele passou todo o tempo atento a qualquer mudança na pessoinha entre seus braços. Mentalmente o Inspetor de Polícia pensava em como tudo havia mudado em cinco anos. Ele jamais achou que um dia viveria aquele tipo de situação, que perderia o sono por causa de um filho doente. O cansaço o abateu no final da manhã, mas Alaudi não se rendeu. Seus olhos não se fechariam ou perderiam para o sono, pois, naquela noite, o louro fez uma promessa a si mesmo. Não por Ivan. Não por ele, mas por sua família.

Continua...