Sinopse: Duas pessoas de origem diferentes: um proprietário de terras e uma cigana. De um casamento arranjado, nasce um amor arrebatador, capaz de quebrar barreiras e exterminar as diferenças sociais. Basta se entregar a esse amor. Fanfic baseada no livro de Lynne Hayworth
Aviso: Todos os personagens pertencem a JK (menos Mick e Célia, e Mercury, que são de Lynne) e o texto, a Lynne. Eu apenas modifiquei e transformei-a numa fic H/G. Enjoy it!
Capítulo I
Londres, 1763.
Ginny Weasley mordeu o lábio e analisou a própria imagem no pedaço de espelho pendurado na parede da cervejaria. Seis séculos de fumaça haviam enegrecido o reboco e a madeira que revestiam o ambiente miserável. O nevoeiro que penetrava pela janela aberta era responsável pelo aspecto fantasmagórico. A Taverna da Sereia, freqüentada por marinheiros locais e estrangeiros, era um local excelente para o exercício de suas fraudes. O estabelecimento ficava a poucos metros das águas lamacentas e malcheirosas do Tamisa onde flutuavam, ancorados, pequenos barcos, brigues e navios de guerra.
Ginny suspirou e fitou o próprio reflexo no espelho. Afligia-se com a própria situação. Mas quando pensava em fazer uma escolha entre a prostituição e a gatunagem, a segunda opção era sempre a preferida.
Ergueu o queixo, desafiadora. Não podia negar. Era uma ladra. Nos últimos dez anos, o fato melancólico e sombrio lhe acenara com as muralhas da prisão. Durante esse tempo, os rigores da sobrevivência tinham sido muito mais importantes do que seus sonhos de respeitabilidade. Não duvidada de que acabara nas galés, mas tinha um motivo crucial para justificar seus atos. Sua determinação em não seguir os passos da mãe. Aquela vida fora um caminho destinado à ruína. Tão certo quanto o Tamisa desaguava no mar.
De repente, como que saído das profundezas do inferno, o padrasto de Ginny assomou às suas costas. Ela franziu as sobrancelhas ao ver a aparência asquerosa refletida na superfície ondulada do vidro espelhado. Nem chegou a verbalizar uma praga em idioma romani.¹ Anthony Dolohov deu um passo à frente e agarrou-a pela cintura. Ele cheirava a urina cediça, dentes estragados e cerveja barata.
- Não há mais tempo para ataviar-se, princesa. Trate de ocupar logo essa cadeira e agradeça ao demônio por seu pai cigano ter lhe deixado como herança alguns truques e esse rosto bonito. Embora, sem a minha sábia orientação, jamais teria aproveitado alguns desses atributos.
Dolohov virou-se, segurou o xale escarlate, um presente que Mick esmolara de uma alcoviteira, e com ele cobriu a mesa velha no centro do quarto.
Ginny amarrou um lenço desbotado nos cabelos ruivos e ondulados. Não adiantaria argumentar. Discordar de Dolohov lhe valeria alguns tapas dados com a mão calosa e imunda. Ou pior. A ameaça de forçá-la a ir para as ruas como uma... Oh, Deus! Meretriz! Ginny estremeceu, apesar do calor que fazia no recinto de teto baixo, naquele anoitecer do começo de junho. Dolohov, alma amaldiçoada que haveria arder nas chamas do inferno, forçara a mãe de Ginny a ganhar dinheiro nas ruas. O destino dela fora uma morte precoce devido a maus tratos e à fome. Ginny não deixaria que o ogro fizesse o mesmo com ela ou com Mick, seu irmão.
Dolohov saiu do quarto e arrastou-se escada abaixo. Ouvia-se o lamento de uma rabeca e o som desafinado de uma canção lasciva. Os primeiros fregueses da noite já haviam chegado. Um casal de amantes chegados há pouco ao país e ansiosos por conhecer as emoções dos quarteirões populares de Londres. Dolohov lhe dissera que o sujeito estava bêbado e a moça, ansiosa para conhecer a própria sorte vaticinada pela famosa madame Zora. A cartomante era mais conhecida como Ginny Weasley entre os fanfarrões, os vadios, os ladrões e as prostitutas dos cortiços londrinos.
Mick saiu detrás das cortinas comidas pela traças que cobria a parede dos fundos. Era o seu esconderijo. Ele ergueu as sobrancelhas e brindou-a com um sorriso que mostrava uma falha nos dentes.
- É só mais uma vez. Ginny. E nós precisamos de dinheiro, não é?
- Claro que sim. - Ginny sentou-se e segurou as cartas de tarô de sua avó. Fora o último presente que recebera de seu pai, Arthur. Ginny embaralhou as cartas e fechou os olhos. Se o pai estivesse vivo, ela nunca teria descido tão baixo. E se não fosse pela vilania de Dolohov, não estaria ali naquela noite.
Naqueles dez anos após a morte do pai, Ginny poupara todos os vinténs. Moedas preciosas ganhas dançando nas ruas, servindo cerveja nas tabernas e prevendo o futuro para os incautos possuidores de mais dinheiro do que juízo. Gastara somente em comida extra para o irmão raquítico. A pequena sacola de couro crescera mês a mês, ano após ano.
Ginny abriu os olhos, espremeu a carta entre os dedos e olhou ao redor. Jurara tirar Mick daquele lugar infecto. Afastá-lo das doenças, dos ratos, das ruas imundas. Para longe dos criminosos e dos batedores de carteiras ansiosos para recrutar para suas fileiras pérfidas um rapazinho esperto como Mick. Acima de tudo, jurara escapar das garras de Dolohov, daquela espelunca vizinha de estrebaria, levando junto o irmão.
Ginny suspirou. Na semana passada, ao voltar para casa, encontrara Dolohov mais bêbado do que o costume. E debaixo da tábua sob o catre, a preciosa bolsa... vazia.
Dolohov negara tudo e dera-lhe uma surra pela ousadia de esconder dinheiro dele. A bebedeira de conhaque francês que se prolongou por vários dias era a prova de que o dinheiro de Ginny se evaporara junto com seus sonhos.
- Não temos escolha, Ginny. - Mick falou, com sua voz estridente. - Ou vou juntar-me à gangue dos Black Jack ou lesamos os tolos ou roubamos. - Tirou as cartas da mão de Ginny e espalhou-as da mesa. - Depressa, eles estão chegando.
Mick apagou as velas e deixou acesa apenas a lamparina de óleo de baleia. Escondeu-se detrás da cortina. A chama lançava sombras misteriosas sobre a minúscula bola de cristal, e Ginny sorriu.
Um jovem alto entrou. Trajava um gibão de couro e calções rústicos. Piscou, desorientado pela fantasmagoria. A moça vinha atrás, de olhar arregalado no rosto pálido.
Ginny sacudiu os cabelos longos que lhe chegavam à cintura e virou-se para a luz dar brilho aos brincos de ouro falso que a todos enganavam.
- Bem-vindos, sejam - Ginny cumprimentou-os com voz maviosa. - Por favor, fechem a porta.
Ginny estreitou os olhos negros e sorriu enigmaticamente. Era um truque para intimidar. Apontou duas cadeiras próximas ao esconderijo de Mick.
- Sentem-se e digam-me. Por que vieram procurar madame Zora?
O casal entreolhou-se, nervoso.
- Uma questão os preocupa, não é mesmo? - Ginny acentuou o sotaque romani e o olhar mediativo, pegou a bola de cristal rodou-a entre os dedos. Voltou-se para a consulente. - É bastante grave, suponho. Seu belo rosto é expressivo, senhora, mas começaremos com sua palma.
A moça corou e estendeu a mão. Ginny tomou-a, analisou as linhas e arregalou os olhos.
- Ah, senhora, vejo muita grandeza em seu futuro. - Ginny inclinou-se para frente e continuou, com voz rouca. - Estou vendo muita sorte em sua palma... muita sorte. A senhora se lembrará por toda sua vida de que madame Zora lhe disser esta noite. - Soltou a mão da outra e recostou-se na cadeira.
- O que madame está vendo?
- Poderei dizer-lhe mais por uma coroa.
- Pague a ela, Simas. - A moça cutucou o namorado.
O rapaz, a contragosto, enfiou a mão no bolso do colete e atirou na mesa a moeda de prata que valia cinco xelins. Ginny guardou-a rapidamente e, de viés, mirou a cortina. A obscuridade era favorável às habilidades de Mick. Os ingênuos não perceberiam o logro.
Ginny alisou a saia listrada de amarelo e vermelho e ergueu as cartas. Reconheceu na estranha a pronúncia de Yorkshire, local de origem de sua mãe.
- Os senhores vieram de longe. Do norte. - Percebeu os sorrisos, os olhares atônitos e o abdômen dilatado da jovem sob o capote. Embaralhou as cartas com a prática adquirida ao longo dos anos. - O trajeto é longo e os senhores têm muita coisa em jogo. Um porvir frutífero. - acentuou a última palavra.
A cortina ondulou levemente, e a ponta da bota enlameada de Mick veio para a frente.. Estava na hora de avançar na encenação. Ginny estendeu o baralho na direção da rapariga.
- As cartas revelam tudo, senhora. Corte, por favor.
A cliente obedeceu. Ginny passou a bola de cristal por cima da chama azul da lamparina e começou a cantarolar uma melodia cigana, com estudada expressão corporal. Simas quedou-se boquiaberto. Nem percebeu a mão miúda de Mick que se insinuava em seu bolso.
- Ah! - Ginny lamentou-se.
Os gestos encenados continuaram até Mick voltar para trás da cortina e cessar a ondulação do tecido roto. A operação fora completada com sucesso. Ginny sacudiu o baralho sobre a cabeça. Ela odiava roubar e enganar pessoas. Mas não havia alternativa. Era preciso tirar Mick perto de Dolohov e sair de Londres. Não poderia falhar. Mick confiava nela.
Lucy pôs três cartas sobre a mesa. A Roda da Sorte, o Cavaleiro da Espada e o Sol.
- Uma grande mudança à espera, senhora. E um grande sofrimento. - Ginny fitou o casal com olhar penetrante e depois piscou para a jovem. - Um homem foi o causador disso... como sempre. Mas o desfecho será promissor!
- Que tipo de desfecho? - a moça perguntou.
- Impossível dizer. - Ginny recolheu o baralho com presteza. - As cartas guardam seus segredos. - Os tolos deviam ser despachados com urgência.
- Mas eu quero saber! - a moça apertou a barriga. - Simas, pague mais...
- Por favor, senhora! Não é uma questão de dinheiro... - Ginny sentiu o sangue congelas nas veias.
Simas enfiou a mão na algibeira... vazia. Ele pareceu confuso e franziu o cenho.
Ginny ficou em pé.
- Por favor, desculpem-me...
- Espere aí! - Simas ficou de pé, furioso. - Minha carteira desapareceu. A senhora roubou-me!
- Ladra! - a moça gritou com voz esganiçada. - Ladra! Ajudem-nos! Fomos roubados!
Ginny disparou em direção da porta. Queria afastar o casal de Mick. Tarde demais. O estalajadeiro entrou.
- O que está acontecendo aqui dentro?
Simas sacudiu Ginny pelo braço.
- Essa cigana roubou meu dinheiro!
- O senhor está enganado! Por acaso não olhava para minhas mãos o tempo inteiro?
Um som de tecido rasgado interrompeu o protesto. Mick saiu de trás da cortina e expôs-se ao perigo que Ginny sempre tentara afastar dele.
- Pare com isso! - Mick deu um pontapé na canela de Simas. - Não ouse tocar em minha irmã!
O taberneiro segurou Mick pelo braço fino e empurrou-o rumo à escada.
- Não quero nenhum truque de ciganos ladrões em minha hospedaria. Terá de enfrentar Newgate, meu rapaz.
Os fregueses da taverna acorreram, recendendo fumaça e gim barato, ansiosos por diversão.
- Ladrões! Ladrões! - gritavam. - A árvore de Tyburn para eles!
- Eles trabalham juntos! - A voz de Dolohov era inconfundível. - Procurem no bolso do fedelho!
Ginny desanimou. Não adiantava lutar.
O magistrado bateu o martelo, e Ginny adiantou-se. A corte de Old Bailey era como Dolohov descrevera. E ele era um freqüentador antigo do local. As janelas estreitas e imundas deixavam entrar pouca luz e nenhum ar fresco. Insetos zumbiam. Pessoas tossiam e cochichavam e se mexiam sem parar. Ginny estremeceu de nojo. O cheiro de suor e de mau hálito infectava o ar. Provavelmente ela também exalava aquele odor, depois de uma semana na prisão imunda de Newgate.
Ela e Mick tinham sido trancafiados no labirinto subterrâneo de celas fétidas, ao lado de assassinos, devedores, ladrões, prostitutas e salteadores. Pasma, constatara que os ali confinados andavam para todos os lados, brigavam, namoravam e faziam sexo nos cantos escuros das paredes de pedra.
A beleza exótica de Ginny atraiu logo os olhares cobiçosos masculinos. Temerosa, passara a primeira noite em Newgate abraçada com Mick. Um pouco antes, ela dera seus brincos de ouro falso ao carcereiro, em troca de um pedaço de pão amanhecido e de um caneco de água malcheirosa para Mick. Como objeto de valor, só lhe restava o baralho de tarô. Nunca pensara em separar-se do mesmo. Mas, em Newgate, comida, roupa e proteção eram comprados. Sem nada para barganhar, ficaria à mercê de um bando de homens grosseiros e lascivos.
A autoridade tornou a bater o martelo e os circunstantes ficaram em silêncio. Ginny endireitou as costas, segurou a mão de Mick e aproximou-se do juiz com a cabeça erguida. Perguntou-se a si mesma se a sorte não a abandonaria. Seu pai lhe dissera que os ciganos eram muito afortunados. Na primeira manhã em Newgate, ela começara a acreditar naquilo.
- San to Rom? Acorde, doce menina. Tacho Rat?
Ginny sentou-se, espantada. Quem estaria falando romani em Newgate?
Era o homem mais horrível que já vira. A pele escura e marcada pela varíola brilhava sob a luz da tocha. Um dos olhos era negro e amendoado com os dela. O outro, coberto por uma crosta amarela. Os cabelos rebeldes eram negros, assim como a barba longa. Uma gola de ouro verdadeiro balançava em cada orelha.
- Mandi Rom. - Ginny sussurrou. - Eu sou cigana.
O gigante riu, mostrando os dentes pontiagudos. Levantou-a e depois abaixou-se para sacudir Mick.
- Levante-se, pralo. Está na hora de comer. - Fez uma mesura diante de Ginny. - Sou Kingsley, conhecido pelos gorgios como o Egípcio.
O homenzarrão piscou e levou-os até uma cela bem maior com palha fresca no catre, uma mesa de carvalho, cadeiras, veras de cera de abelha e...
- Um frango assado! - Ginny não conteve o grito.
Kingsley riu e estendeu uma coxa.
- Coma, é chavo. Vejo que está bokhalo... faminto. - Notou o ar espantado de Mick. - Ele não é tacho rat?
- Não. Mick e eu somos irmãos apenas por parte de mãe. Ele tem oito anos e se chama Malachy Weasley Dolohov e eu sou Ginny, isto é, Ginevra. Meus pais morreram.
Assim começara a amizade. Sob a proteção de Kingsley, nenhum homem ousara tocar um dedo na parente do Egípcio, com receio de perder a vida.
- Essa é uma questão de honra romani - Kingsley dissera na noite anterior do julgamento. - Esses jakals não enxergam que a senhora é uma grande dama. Não se preocupe, eu a ajudarei.
Kingsley explicara o que ela deveria fazer para evitar a forca. Roubar uma bolsa com cinco libras era considerado um crime sem perdão.
Ginny matou discretamente um piolho do braço e desejou que o entendimento de Kingsley com os carcereiros resultasse pelo menos num banho. Apesar de sentir-se muito suja, encarou o magistrado com orgulho. O homem de peruca e longas vestes negras a fitava do alto.
- Meirinho, qual é o crime cometidos por estes dois?
Um homemzinho, com cara de rato e vestido de fraque, precipitou-se para frente.
- Roubo, excelência. Cinco libras surrupiadas em uma taverna. - O homúnculo fitou com desprezo a roupa rasgada e colorida de Ginny. - Foi durante uma encenação de leitura de sorte cigana. Prova evidente de que os dois são desonestos e batedores de carteira.
O magistrado estreitou os olhos de lince por trás dos óculos de armação de ouro.
- O que a senhora tem a dizer diante dessa acusação.
- Houve um mal-entendido, milorde..
- Não diga asneiras, senhora. - O juiz leu a folha que estava à sua frente. - Aqui diz que o menino foi apanhado com a carteira no bolso. Há também uma testemunha. Meirinho, onde está ela? - Ele perscrutou a platéia lotada.
Ginny gelou. Se Dolohov soltasse a verborragia irlandesa, Mick e ela estariam perdidos.
- Parece que não está presente, excelência.
O magistrado voltou a se sentar-se na poltrona de espaldar alto.
- Não importa. A senhora foi acusada de roubo. Todos sabem que os ciganos usam de inúmeras artimanhas para roubar. Por isso, os dois terão de retornar a Newgate até que sejam feito os preparativos para a execução do patíbulo de Tyburn.
- Milorde, espere! - Ginny gritou, com um sorriso ingênuo e o olhar estreitado. - A justiça inglesa não é a mais famosa do mundo?
- Sim, senhora - O juiz não escondeu a paciência. - Por isso mesmo eu a estou sentenciando...
- Nosso parlamento sempre justo e nosso amado rei não protegem os cidadãos que têm o privilégio de servir a igreja da Inglaterra?
- Ora - O juiz revirou os olhos. - A senhora pretende reivindicar o beneplácito do clero?
- Pretendo, meritíssimo. - A expressão de penitência não poderia ser mais convincente. - Pelas leis inglesas, os seguidores da Igreja não podem ser punidos pela forca. Meu irmão e eu queremos a chance de provar que fomos educados segundos os ritos da Igreja e por isso estamos sob sua proteção.
Ginny sabia que nem os presentes nem o juiz esperavam um discurso coerente de uma cigana originária oriunda das entranhas do distrito mais perigoso de Londres.
- A senhora não fala como uma cigana nem como uma...
Ginny sorriu. Felizmente sua mãe fora uma mulher culta e seu pai, um excelente ator.
- Milorde, repito que fui educada dentro das normas da igreja da Inglaterra. Minha mãe, que Deus a tenha, era filha do vigário de St. Boltoph, perto de York. - Ela omitiu o fato que o avô se tornara um ferrenho pregador metodista.
O juiz tirou os óculos, abaixou a cabeça, coçou a base no nariz e suspirou. Ginny pensou ter notado um leve sorriso.
- Meirinho, traga a Bíblia. - Fitou Ginny com olhar faiscante. - Estou farto de ouvir os larápios dizer que sabem ler e repetir alguns versículos decorados para dar a impressão de que foram instruídos segundos princípios religiosos. Asseguro-lhe que essas artimanhas não funcionam na minha corte. - Entregou-lhe o grande livro encadernado em couro. - Abra-o, ao acaso, e leia uma passagem.
Ginny refletiu, abriu a Bíblia em uma das passagens dos Salmos e leu um trecho em voz baixa e clara. Depois levantou a cabeça.
- Devo continuar, milorde?
O magistrado apoiou-se em um dos cotovelos.
- Por favor.
Ginny retornou a tarefa e a assembléia começou a agitar-se. Uns cutucavam outros, admirados. O juiz recorreu novamente ao martelo para acalmar os ânimos.
- É o suficiente. - A autoridade sentenciou e virou a cabeça de lado, deslocando a peruca. - Diga-me, o menino também sabe ler:
- Sim, milorde.
Ginny cochichou no ouvido de Mick e entregou-lhe o livro sagrado. O menino folheou algumas páginas e, enrubescido, leu um trecho devagar, mas sem cometer erros. A platéia aplaudiu, delirante, e pediu a absolvição dos irmãos.
- Silêncio! - O juiz tornou a fazer o uso do martelo e esperou que a multidão se calasse. - Muito bem, a senhora provou que sabe ler. Isso não a absolverá do crime, mas lhe dá o direito à comutação da pena. A senhora terá o braço marcado com o estigma de ladra. Depois será levada para uma colônia americana e vendida em regime de contrato de servidão, ou seja, servirá de escrava durante sete anos.
A batida do martelo selou a sentença.
Exausta, Ginny pendeu a cabeça para frente, embalada pelo balanço do navio. Acordou instantes depois, assustada.
Como se permitira cochilar, com Mick tão doente? Encostou a palma na testa dele. A temperatura continuava alta. Encostou-se na parte interna do casco do Eillen Snape e abraçou os joelhos. Oh, Senhor, aquilo não podia estar acontecendo. Seu dever era proteger Mick. Não deveria deixá-lo morrer. E mais uma dezena de condenados sucumbiram àquela febre terrível que assolara o navio. Depois de gritos de delírio, a vítima morria em menos de uma semana.
Uma vez ao dia, o terceiro imediato abria a escotilha e atirava a escada de corta para dentro do porão pútrido do barco. Dois marinheiros o seguiam com balde e colherão. Serviam aos degredados, sopa de ervilhas carunchadas ou mingau rançoso. Era quando aproveitavam para levar embora os defuntos. Ginny pensava que os mortos eram jogados ao mar, com um mínimo de serviço fúnebre.
- Não seja tola - Lalau Shunpike, um ladrão de cavalos irlandês, fez pouco da singeleza dela. - Eles os atiram aos tubarões, sem uma palavra de oração!
Ginny mirou a tênue que se insinuava pela escotilha. Quando Mick ficara doente, os companheiros haviam-no levado ao canto mais escuro do porão, perto dos baldes usados como latrinas. O cheiro de fezes, urina, vômito que se misturavam ao de alcatrão e de óleo de baleia era insuportável. Ginny sentia o gosto de bílis toda vez que inalava o ar. Além de passar o tempo inteiro afastando hordas de moscas que refestelavam nas fezes e depois vinham pousar nela e em Mick.
Nem mesmo ousava esconder a cabeça entre as mãos. Estavam sujas demais. Os marinheiros forneciam aos condenados três canecas de água fétida por dia. O suficiente para mantê-los vivos, não limpos. Esse era um dos motivos por que a febre corria solta pelo navio.
- Olá, Ginny? Como vai passando Malachy? - Lalau Shunpike chegou com o andar gingado de quem passara muito tempo no navio. Um mês inteiro.
Ginny tirou uma mecha dos cabelos ensebados olhos, incapaz de sorrir para Lalau, apesar de ele se mostrar tão bondoso. O novo amigo dissera que alguém com um nome tão bonito como Malachy merecia respeito. Mick dera boas risadas com Lalau, até que a febre o derrubara.
Lalau ofereceu a própria caneca de água para Ginny.
- Beba. Quem cuidará de Mick se a senhora ficar doente?
- Se me permite, prefiro oferecê-la a Mick. - Ginny molhou os lábios ressequidos do irmão.
Mick murmurou algo e virou a cabeça. O garoto apresentava olheiras escuras e uma das faces estava com uma ferida infeccionada. Cortesia de um rato.
- Preciso fazer alguma coisa. O senhor me ajudará com os marinheiros trouxerem comida? Talvez se eu implorar...
- Jesus, Maria, José! Em que mundo de fantasia a senhora está vivendo? Esses sujeitos não importam com nenhuma de nós. Para eles, somos a escória. Não se incomodarão com nada, nem mesmo com um menino que está morrendo de febre. - Lalau abaixou-se perto de Ginny. - Só há uma coisa que a senhora pode fazer, como eu já lhe disse...
- Cale essa boca. Nunca farei isso! - Jamais aceitaria a sugestão de entregar-se aos marinheiros, em troca de remédios e comida.
- Não seja tão melindrosa. A sua tão prezada virgindade é a única maneira de salvar Malachy.
Ginny olhou para o rosto cinzento do irmão, abriu a escotilha e apressou-se rumo aos marinheiros.
Continua...
Nota: Como já disse, a fic é uma adaptação de um livro. Não é plágio. Seria se eu o reescrevesse e publicasse. Mas como fic não há fins lucrativos... Quem leu o livro aqui? Digam o que acharam. Eu amei.
Até a próxima. Juh
