Insane
Parte I
Porque a Misericórdia tem um coração humano, A Piedade, um rosto humano, E o Amor, a forma humana do divino, E a Paz, o aspecto humano.
- WILLIAM BLAKE, Cantos de Inocência, A Imagem Divina.
A Crueldade tem um Coração Humano e a Inveja, um Rosto Humano,
O Terror, a Forma Humana do Divino e o Segredo, o Aspecto
Humano.
Aspecto Humano é um Metal forjado,
Forma Humana, uma Forja acesa,
Rosto Humano, uma Fornalha fechada, Coração Humano, a sua Garganta sequiosa.
- WILLIAM BLAKE, Cantos de Experiência, Uma Imagem Divina.
A chuva caía incessante nesse mês de fevereiro. Era para eu já ter me acostumado, mas pedir isso era demais. Os invernos iam e vinham cada um com mais força do que seu antecessor, fazendo-me passar horas a fio perto da lareira, que raramente emanava o calor necessário para me aquecer. Apesar de detestar essa estação, que me prendia dentro daquela casa fria feita em pedra rústica, era somente nela que podia fitar deliberadamente o fogo que tanto me fascinava. Aquelas cores tão vivas que me aqueciam, o som da madeira crepitando em seu timbre único, a baforada quente em meu rosto.
Tremi embaixo de minha manta de pele fina graças à brisa congelante que insistia em entrar pelo vão da porta. E foi somente nesse momento que notei a figura de minha mãe, com seu rosto generoso, parada à porta da cozinha, segurando um velho castiçal onde uma vela quase inexistente queimava.
- Vai ficar aí o inverno todo? – ela perguntou, num tom risonho.
- Tenho frio e esse é o único lugar da casa onde posso me aquecer. – respondi, dando de ombros, vendo-a pousar o castiçal sobre a mesa, não muito longe de mim. – Odeio o inverno.
Minha mãe apenas sorriu enquanto prendia algumas mechas de cabelos, ruivos e pálidos, que haviam se soltado de sua touca. Sabia que sorria por ter me queixado pela enésima vez desde que o primeiro floco de neve cortou o céu cinzento.
- Ninguém gosta, querida. – ela me respondeu, pela enésima vez, enquanto voltava para a cozinha. Quando voltou, trazia um prato com um pão fresco de aveia, manteiga e vinho. Colocou a comida na mesa e olhou para mim. – O dia acaba mais cedo e o dinheiro que seu pai e irmãos ganham são reduzidos quase que pela metade.
- Não sei como eles conseguem trabalhar na lamaceira lá de fora. – comentei, sem real interesse. Quando o frio chegava, parecia que meu corpo estacava, deixando de mostrar vontade em realizar algo, ou de se importar com algo.
- Não importa como ele conseguem, e sim que ele têm que conseguir. – minha mãe retrucou, e pude notar o pesar enrustido em sua voz, – Mas agora venha me ajudar. Seu pai e irmãos não tardarão a chegar.
Soltei um leve suspiro e me levantei da cadeira, já sentindo o calor do fogo me abandonar. Caminhei, sem muita vontade, até a cozinha pequena, onde uma velha chaleira com um pouco de leite tentava se aquecer num fogo quase extinto.
- Mamãe, está acabando a lenha da cozinha. – disse, quando constatei que não havia mais madeira alguma perto da porta.
- Era sobre isso que queria falar com você hoje cedo, mas acabei esquecendo. – mamãe apareceu, limpando as mãos no avental preso à sua cintura. – Você irá lá no bosque para pegar algumas madeiras. Já está mais do que na hora de você aprender a cortar lenha. Já não estou mais agüentando fazer tudo sozinha.
-Você fala como se eu não a ajudasse em casa, mamãe. – retruquei, levemente irritada pelo fato de ter que começar a cortar lenha, um trabalho que desde de pequena causava-me calafrios, já que nunca esqueci o dia em que um homem no mercado no centro da vila, num momento de distração, acertara o machado no seu tornozelo. Até hoje ele era manco.
- Não estou falando isso, Ginny. – retrucou mamãe, com a voz suave. – Só estou dizendo que estou ficando velha para fazer certas coisas. Quando corto lenha, minhas costas depois parecem que vão se partir ao meio. – senti uma fisgada de pena no coração.
- Tudo bem, mamãe. Eu vou até o bosque mais tarde. – disse por fim, suspirando longamente e virando meu rosto para a chaleira. – Mas gostaria que algum dos meninos fosse comigo.
- Vou falar com o Bill, tenho certeza que ele irá com você. – disse ela, antes de sair novamente da cozinha, deixando-me suspirando solitária naquele espaço pequeno, mas, ao mesmo tempo, desolador.
Ao entardecer, enquanto estava perdida novamente em meus devaneios junto à lareira, escutei o barulho da porta da frente sendo aberta e várias cabeças, com os cabelos tão vermelhos quanto o meu, entraram. Todos batiam os pés e esfregavam as mãos, tentando espantar o frio que fazia atrás deles e a neve levemente acumulada em seus sapatos. Apertei o xale de lã junto ao meu corpo quando senti a brisa fria entrar e balançar levemente meus cabelos.
Com um leve sorriso, vi a entrada de minha mãe na sala, com uma leve sombra de preocupação na face. Como todas as vezes, abraçou cada um de seus seis filhos com sua costumeira urgência, deixando o marido por último e aproveitando para perguntar-lhe como foi o dia.
- Como sempre, querida. – respondeu Arthur, com uma voz cansada, e não disse mais nada, como sempre.
Bill, meu irmão favorito, aproximou-se e afagou meus cabelos com suas mãos duras, graças ao trabalho, não deixando de sorrir. Para mim, Bill era o mais bonito de todos, e o mais compreensivo. Era meu amigo. Não contava tudo o que acontecia comigo, assim como ele também não me contava sobre seus piores demônios, mas nos entendíamos perfeitamente.
- Vai ter que ir comigo no bosque. – informei, fingindo petulância. – Mamãe quer que eu aprenda a cortar lenha. – fiz uma careta de desagrado.
- Virando mocinha. – ele brincou comigo, sabia que ele não ia deixar passar essa. – Podemos ir depois que eu chegar, amanhã.
Dei de ombros e voltei a fitar a lareira e seu fogo; Bill afagou meus cabelos pela última vez, antes de se afastar. Instantes mais tarde, me perdi naquele brilho. A baderna que os gêmeos faziam, todos rindo das brincadeiras deles não foram o bastante para me tirarem daquele torpor.
As nuances tão vivas me prendiam como sempre, e começava a ver coisas nas chamas dançantes e na madeira queimada. Primeiro, vi na madeira a face de um cavalo, onde sua crina era feita de chamas. Depois, parecia que um rosto estava se formando nas chamas e isso me intrigou, fazendo com que me levantasse e me aproximasse da lareira. Mas, na hora que fui prestar mais atenção àqueles traços, mamãe tocou meu ombro, chamando-me para a realidade fria daquela casa. Estava na hora do jantar.
- Bill, estou morrendo de frio aqui. – resmunguei, pela terceira vez, enquanto tentava esquentar minhas mãos, esfregando uma na outra. Olhei ao meu redor e a única coisa que podia ver era aquele bosque, sempre tão vivo em minha memória, com a aparência morta do inverno. Neve em quase todo o lugar.
- Ginny, pare de reclamar. – ele me respondeu, sorrindo levemente enquanto pegava mais uma pequena tora de madeira jogada no chão. – Você nem está fazendo nada, como eu tinha previsto que não faria. – Bill levantou-se e me lembrou do quão alto era. Sua respiração estava acelerada. – Você sabia que, se eu viesse, acabaria fazendo o trabalho para você, não é?
O que podia dizer? Por vezes Bill me conhecia demais. Suspirei e sorri levemente. Nem adiantaria mentir para ele, ainda mais quando ele me olhava daquele jeito de quem descobriria qualquer mentira que eu contasse. Bill definitivamente me conhecia demais.
- Posso ver você fazendo e aprenderei do mesmo jeito. – disse em minha defesa, enquanto erguia meu rosto, mostrando minha superioridade.
- Duvido muito. – Bill me respondeu, cético. – No dia que for cortar lenha para a mãe, irá acabar como o coxo do centro da vila. – E ele sabia que só de pensar naquilo, estremecia.
- Então encontrarei alguém que faça por mim. – tentei a ressalva, mas Bill apenas riu de mim. Estava derrotada. – Tudo bem, da próxima vez, prometo que farei tudo sozinha.
- Quero só ver. – e ele se abaixou para pegar mais uma tora e juntar com as outras. – Vai ter que aprender a escolher as certas, menos úmidas e apodrecidas graças à neve. Vou cobrar.
- Tudo bem, Bill. – caminhei até a pequena elevação à minha frente e meus pés afundaram-se na turfa. Quando olhei para baixo, vi um pequeno riacho, o mesmo que Bill acabara de pular. A água era transparente e de onde estava pude perceber o quão fria era.
Ergui meus olhos e olhei ao meu redor. A turfa rasteira arrastava-se até os minha visão podia alcançar. Para minha alegria, bem ao longe, vi algumas moitas que possuíam alguma cor, a cor alaranjada de sua morte. Enfim uma cor em meio ao branco e ao marrom de tudo.
E foi então que eu vi, não tão longe quanto a moita, um vulto se movendo em meio às árvores adormecidas. Apertei os olhos para conseguir ver melhor, e foi nessa hora que o vulto pareceu estar se aproximando. Meu coração disparou de medo. Sempre tive receios dos fantasmas e demônios que o padre Banff insistia em dizer que existiam. O vulto estava cada vez mais próximo. Olhei ansiosa para Bill, mas ele parecia entretido demais no que estava fazendo. Ao olhar novamente para o vulto, ele tinha parado. Longe, mas próximo o bastante para distinguir seus traços.
Eram finos, harmoniosos, realmente bonitos. Contra a escuridão, que cada vez vinha com mais rapidez, sua pele alva destacava-se na escuridão. Olhei mais uma vez para Bill e, quando tornei a encará-lo, ele permanecia ali, parado, olhando para mim, correspondendo ao meu olhar assustado, mas, ao mesmo tempo, curioso. Dei um passo à frente, mas logo retornei ao sentir o fim da elevação sob meus pés.
Depois não soube precisar quanto tempo ficamos um olhando para o outro; o contato visual só foi quebrado quando Bill me chamou para irmos embora. A noite já tinha caído e as estrelas estavam veladas. Ao voltar meu olhar para o homem, vi que ele mexia os lábios e prestei atenção nestes. Ele começou a ir embora, ainda olhando para mim, e sumiu nas sombras da noite.
- O que foi, Ginny? – perguntou–me Bill, quando estávamos voltando, percebendo meu estranho silêncio.
- Nada. É o frio. – sorri levemente e voltei a pensar na última imagem que tive daquele homem. Os lábios… formavam uma palavra.
Formavam Ginevra…
Formavam o meu nome.
Nunca poderia dizer, nem agora, nem em nenhum outro momento da minha vida, o que Tom Riddle tinha de tão especial, ou encantador, ou a real razão do poder que ele exercia sobre mim. Os olhos negros sempre me olhavam com interesse e, ao mesmo tempo, com uma distancia glacial. Olhares, que, no meu caso, diziam tudo e um pouco mais; nos dele, apenas a sombra do que poderia transparecer.
Não era a primeira vez que vinha ao centro da vila para tentar encontrá-lo, e, pelo jeito que as coisas iam, seria mais uma tentativa em vão. Ainda me perguntava se aquilo fora apenas um produto da minha imaginação, mas queria acreditar que não, que ele era real. Procurei em cada esquina, mas nada da figura alta e marcante que vi nos bosques, movimentando seus lábios e murmurando um nome. Meu nome.
Mamãe já não estava mais ao meu lado e não liguei. Olhei para meus pés e para neve que me rondava, já não tão branca como deveria ser. Um suspiro, e a fumaça característica escapou pelos meus lábios. Pude ouvir passos lentos e precisos vindo em minha direção e, quando ergui meus olhos, encontrei aquele que tanto procurava. Estava parado a uma curta distância de mim. Sua roupa era toda preta, e isso lhe caía bem, contrastando com sua pele pálida. As mãos para trás, os olhos sérios, um quase sorriso.
Não soube se deveria me aproximar, afinal de contas, não o conhecia, não era certo. Enquanto pensava, ele se aproximou e uma sensação estranha tomou conta de mim. Senti o nervosismo que ele provocava em mim. Respirei fundo quando parou e curvou-se solenemente, oferecendo a sua mão, olhando fundo em meus olhos. Pensei por um momento, mas foi inútil, me conhecia o suficiente para saber que não conseguiria recusar.
Ao tocar naquela mão fina e bem feita, senti um arrepio. Era fria como gelo, mas não rígida como tal. Ele parecia ter notado minha reação e dirigiu-me um meio sorriso, enquanto aproximava minha mão dos seus lábios rosados, e, quando estes me tocaram, eram quentes, assim como o hálito dele.
- Senhorita. – ele murmurou, e escutei a sua voz grave e melodiosa. A voz que me perseguiria em muitos sonhos.
Tive vontade de perguntar o porquê dele ter me observado enquanto estava no bosque, mas achei melhor não. Permaneci calada e notei que ele ainda não tinha largado minha mão, e, para meu espanto, mesmo em contato com aquela mão tão fria, não a sentia gelar. Ele também não parecia disposto a falar, apenas continuava a me olhar e pude perceber o quanto aquelas orbes negras poderiam capturar quem as encarasse por muito tempo numa ameaça muda que assustava e, ao mesmo tempo, acalentava.
- Ginevra! – ouvi a voz de mamãe ao longe e estreitei levemente meus olhos, desejando que fosse apenas o vento, mas o chamado se repetiu. Ele apenas sorriu.
- Nos bosques, amanhã, antes do entardecer. – disse ele, com a voz perto de meu ouvido, quase forçando um toque entre nossos corpos. – Estarei esperando.
Passou por mim, deixando para trás um cheiro de canela muito marcante, que impregnou em mim. Fechou os olhos momentaneamente e, quando os abri, encontrei minha mãe parada, com algumas sacolas nas mãos. Caminhei até ela e percebi seu olhar de censura.
- Quem era ele, Ginevra? – ela me perguntou, levemente irritada.
- Não sei, apenas um homem que me ajudou antes que eu tropeçasse. – respondi, não me importando em estar mentindo para minha mãe. Ela me analisou por um tempo, mas depois deve ter pensado que nunca mentiria para ela. Pobre coitada.
Durante todo o caminho de volta, aquele homem, que aparentava ter seus vinte anos, esteve presente em minha mente. O jeito como se movimentava, seu olhar peculiar, seu modo de sorrir que me pareceu ser sempre irônico. Tudo nele era intrigante. Tudo nele me fascinou de um modo diferente. Não sei explicar.
Ao passar pelo bosque, não pude deixar de pensar no convite feito pelo estranho. Era tão tentador quanto proibido. Era algo que não poderia evitar por mais que tentasse. Já estava envolvida demais.
Não me importei com o frio que sentia enquanto atravessava o bosque, pisando sobre os galhos secos, que se quebravam com estalidos particularmente altos. O sol já começava a se pôr, e, ao virar meu rosto para o oeste, vi que o crepúsculo, ao longe, começa a transformar ainda mais as árvores secas do inverno em uma simples memória do que elas foram na primavera.
Avistei o riacho gélido e respirei fundo, olhando em volta, em busca dele. Mas não o encontrei. Pensei, por um momento, que deveria voltar, e meu coração não sabia se se sentia decepcionado ou aliviado por não encontrar o estranho.
Um barulho ecoou por todos os cantos e me virei rapidamente, apenas encontrando a escuridão que cada vez aproximava-se mais de mim. Estremeci, determinada a ir embora daquele lugar, quando vi um vulto surgir daquela escuridão. Andava com um porte altivo, o rosto velado pela escuridão. Mas sabia que era ele.
Quando ele chegou mais perto, pude ver sua pele pálida e seus olhos negros, que me olhavam daquele modo diferente, um modo que me fazia querer me aproximar mais. Mas quem se aproximou foi ele, curvando-se cortesmente quando estava perto.
- O que você quer? – perguntei, sem rodeios. Ele me intrigava de um modo desconhecido por mim, e isso me assustava. – Qual é seu nome? Por que me segue?
Tentei ver alguma reação diante de minhas palavras e minha atitude um tanto rude, mas não, o rosto dele permanecia o mesmo, escondendo qualquer sentimento que pudesse ter. Um leve sorriso, os olhos brilhantes, o corpo alto e magro, o cabelo quase tocado os olhos. Ele era maravilhoso.
- Quantas perguntas, Ginevra. – e aquela intimidade me incomodou. Olhei-o com censura.
- Não lhe conheço para tratar-me com intimidade. – tentei ser ríspida. Achei que deveria parecer dura, rebelde, como fiz com todos os outros, mas parecia que estava desarmada diante daqueles olhos. Parecia que eles queriam entrar dentro dos meus e descobrir todos os meus segredos.
- Então, por que veio? – ele não disse aquilo de um jeito rude, mas, mesmo assim, me atingiu. Ele estava esperando pela minha resposta, que ainda não tinha formulado, tamanho meu desconcerto.
- Qual é o seu nome? – disse, por fim, constrangida com o silêncio que havia caído sobre nós, onde nem mesmo os ventos do norte pareciam ulular.
- Tom Riddle. Perdoe-me não ter me apresentado antes. – ele disse aquilo de uma forma tão convincente que acreditei nas suas desculpas. – Espero que não faça mau julgamento de mim, senhorita.
- Só se me disser porquê me vigiou no bosque há dias atrás e porque veio até mim ontem, no mercado. – continuei com a minha pose firme e distante, não sabendo a real razão de sentir aquela necessidade. Ele me parecia tão terno e educado, mas, debilmente, queria impressionar-lhe com aquela força que todos dizem que nós, Weasley's, temos.
- Alguém já lhe disse o quão bela é? – e aquilo me desarmou por completo. Senti meu rosto arder e sabia que o sorriso dele era conseqüência da minha reação. – Não deveria se envergonhar. Isso não é pecado.
- Obrigada.
- Não diga "obrigada". – um leve meneio da cabeça de Tom bastou para revelar seu desgosto como um vidro lançado contra a árvore morta.
- Eu apenas digo o que é verdade. – tentei explicar. – O senhor preferia que eu dissesse "fico satisfeita por você me achar bonita"? Seria um pouco mais elegante, mas igualmente verdadeiro.
Pela primeira vez vi algo naqueles olhos indecifráveis; talvez um pingo de admiração pela ousadia das minhas palavras. Devo admitir que aquilo foi um tanto estranho para mim, nunca tinha pensado com tanta rapidez, e, para minha surpresa, não me arrependi do que disse.
- Como sabia meu nome, senhor? – tornei a perguntar. A timidez que geralmente me acompanhava com as pessoas estranhas parecia ter se extinguido. – Naquele dia, no bosque.
Ele parecia procurar por uma resposta, talvez a certa para me dizer naquele momento, porém, não tão verdadeira. Tom aproximou-se alguns passos, o bastante para que o cheiro de canela chegasse até mim, sobrepujando o cheiro etéreo da turfa.
- Já tinha lhe visto no centro antes. E nos bosques. – os lábios vivos curvados num sorriso, os olhos sérios, me analisando. – O que posso dizer em minha defesa, minha dama? Desde a primeira vez que a vi, não pude deixar de lhe olhar.
Comecei a me sentir incomodada com tudo aquilo, mas não de modo negativo. Perguntava-me o que aquele homem viu de tão bonito em mim, apenas mais uma na multidão, como sempre pensei. Talvez meus cabelos ruivos chamassem um pouco de atenção, mas nada mais que isso.
- Não acredita em mim, não é? – aquilo me espantou e me perguntei se ele era capaz de ler pensamentos. – Pelo menos a modéstia é sincera.
Balbuciei algumas palavras, mas elas não sairiam. Olhei ao meu redor, a noite cobrindo tudo. A lua nova lançando seu brilho prateado e etéreo na terra.
- O que você quer de mim, senhor Riddle? – disse, por fim. Não sabia o que pensar direito, aqueles olhos me deixava confusa. E a idéia de ele estar procurando uma esposa passou pela minha mente, e isso não me agradava.
- Queria sua amizade, senhorita Ginevra. – ele insistia em me chamar por aquele nome que detestava. – Queria apenas ser seu amigo.
- E devo acreditar que o senhor quer somente isso? – ri, debochada. Não era tola e queria que ele percebesse isso.
- Só estou sendo sincero, minha dama. – o tom de sua voz era baixo e ele abaixou os olhos, levemente. – Peço que acredite nas minhas sinceras intenções. Não seria capaz de fazer algo ruim a você. Admiro-a demais para isso.
Foi, então, a minha vez de analisá-lo. Ou ele realmente era sincero com aquelas palavras ou mentia muito bem. Quis acreditar que era tudo verdadeiro, ansiava por conhecer pessoas, a única pessoa que me escutava era Bill, mas já estava cansada disso. Tudo tão previsível.
- Preciso ir. – disse, sem saber exatamente o que dizer diante daquele pedido, diante dele. Comecei a caminhar para voltar e, quando passei por ele, sua mão fria e gentil segurou firmemente meu pulso. Ele olhou nos meus olhos e eu percebi a diferença de altura entre nós.
- Pense com carinho, Ginevra. – a voz era baixa. – O que peço é tão pouco.
- E quem me garante que não subirá o preço daqui um tempo?
- Eu não seria capaz de fazer algo ruim a você. – o rosto dele aproximou-se do meu. Um vento frio soprou, bagunçando meus cabelos. – Até, minha dama-da-noite.
E durante todo aquele mês, Tom Ridlle povoou meus pensamentos. Enquanto ajudava mamãe com a casa, enquanto fiava, era o rosto pálido dele que eu via. Quando o vento lá fora ululava docemente, era o murmúrio dele que eu ouvia.
Ansiava por vê-lo. Por ouvir meu nome, que nunca gostara, sair daqueles lábios. Por vezes, ia ao mercado, na esperança de encontrá-lo, mas era em vão. Passeava pelos bosques estéreis, sempre alerta a tudo ao meu redor. Mas Tom nunca apareceu. E acreditei que nunca mais o veria.
O mês de fevereiro já estava encontrando o seu fim, e com ele, se dava o fraco e tímido início da primavera. Em alguns momentos, presenciei a neve começando a derreter e deixando mostrar o tapete do bosque: cinzento e fraco.
Meu coração estava começando a ficar mais leve depois de tanto tempo. Parecia que aquele fim de inverno estava levando consigo o torpor que eu entrara desde que Tom entrara na minha vida, e me senti feliz.
Numa tarde como qualquer outra, estava sentada numa clareira no coração do bosque. Apoiada numa das árvores, fazia desenhos na neve já quase inexistente ao meu lado. Um vento frio continuava a soprar, mas, por breves momentos, podia sentir a força da vida que a primavera tentava fazer voltar.
Sempre gostei de presenciar as mudanças das estações, sempre apreciei o momento em que as folhas douradas e secas caíam das abóbadas das árvores; a flor, que com muito custo conseguia florescer; o calor beijar a minha face. Mas gostava mais ainda do fim do inverno.
Peguei um punhado daquela neve e segurei em minha mão, sentindo-a ficar dormente a cada segundo. Olhei para meu punho e pequenas gotas de água escorriam. O toque gélido já feria minha pele, mas agüentei.
A mudança.
Era isso que mais me fascinava. Era por isso que era o fim do inverno que mais gostava; a estação mais drástica de todas. O gelo, duro e mortal, transformando-se em água, tão volúvel e inconstante.
E então, você apareceu ao longe, como todas as outras vezes, sempre tão distante de mim. Não pude negar que no mesmo instante meu coração começou a bater mais forte e minha respiração acelerou, mas por um instante hesitei.
Você, Tom Riddle, era tão estranho, mas assustadora familiar para mim. Nos poucos momentos em que fiquei perto de você, nada era normal. Você me assustava, eu temia, mas eu ansiava por mais.
A dor tornou-se insuportável e fui forçada a largar o que restara do gelo, absorvendo a dor e a dormência em minha mão. Olhei novamente à frente. Você parecia se aproximar e o vento soprou, trazendo o forte cheiro de chuva. Não me movi.
Você veio até mim, trazendo junto o seu cheiro de canela, tão forte e tão seu. Nenhuma palavra foi dita, não era preciso. Quando nossos olhares se encontravam, você tentava olhar dentro de mim e conseguiu, por diversas vezes.
Não conseguia ser esse enigma que você é, Tom. Queria ser desvendada por você, queria que você soubesse meus segredos, mas não conseguia ver essa vontade em você, que, mesmo estando tão perto, permanecia glacialmente distante.
E então a chuva veio, no começo tímida, depois raivosa. Você ofereceu sua mão esguia.
- Eu moro aqui perto. Venha comigo. – pude lembrar do tom da sua voz, distante, que achava ter esquecido.
E eu aceitei. Como não poderia aceitar?
Você não largou minha mão enquanto impunha um ritmo rápido para mais dentro do bosque. Não senti medo, mesmo sabendo que aquilo era extremamente errado. Não era penas errado, era insano.
Insano…
Foi então que vi a pequena casa onde, provavelmente, Tom passava a maior parte do seu tempo. Lembrei-me de que, quando era menor, havia passado dos limites em que estava acostumada a ficar dentro dos bosques e vira essa casa, mas sempre imaginei que fora apenas produto minha imaginação infantil e fértil.
Entrei rapidamente na pequena casa e olhei ao redor. Não era grande, mas perfeita para quem morava sozinho. No canto esquerdo, mais ao fundo, havia uma grande cama de casal feita de palha limpa e fresca; havia lençóis e cobertores, assim como peles. Por todos os cantos havia livros. Alguns mais velhos, como os que estavam sobre a pequena mesa de madeira, perto da pequena cozinha. Velas iluminavam todo o lugar, principalmente na parte onde parecia ser o local de leitura.
Senti a presença dele atrás de mim, e quando me virei, Tom me olhava. Passou por mim e foi até o pequeno fogão, colocando água para esquentar. Tremi e ele pareceu ter notado. Chamou-me até a mesa e pediu para eu sentasse ali, mais perto do fogo do fogão.
Tom olhou para mim e, por um momento, vi um fulgor vermelho naqueles olhos tão negros. Prendi a respiração por um momento, mas depois imaginei que era apenas o reflexo das chamas.
- Não creio que você não tivesse sentido o cheiro de chuva, Ginevra. – ele disse, puxando a cadeira do lado oposto e sentando-se, cruzando as mãos finas sobre o colo.
- Sim, eu senti. – respondi, começando a sentir o calor do fogo penetrar minhas roupas úmidas e aquecendo meu corpo. – Mas acho que estava distraída demais para pensar em voltar para casa.
- Distraída segurando a neve que queimou suas mãos? – e ele indicou minha pele levemente avermelhada. – Ginevra…
- Não me chame assim. – interrompi, levemente irritada. – Não gosto desse nome. Ninguém me chama assim.
- Mais um motivo para chamá-la assim. – ele parecia se divertir. - Sabia que seu nome é uma alusão ao nome céltico Gwinever, tecelã, mas isso não vem ao caso. Creio que você conhece a história do rei Arthur. Creio que você conhece a esposa dele, Guinevere, e a sua famosa beleza. – os olhos deles se estreitaram ligeiramente e passou levemente o indicador no queixo, como se pensasse. – Acho que isso que isso é adequado a você.
- Linda história, mas continuo não gostando do nome. – respondi, sentindo um calor anormal diante do olhar dele. – Não sei porque você insiste em dizer essas coisas para mim.
Tom permaneceu em silencio, mas um quase imperceptível sorriso curvou seus lábios, um sorriso que tomei como zombeteiro. Senti-me uma criança mimada que, quando reclama de algo, apenas recebe um sorriso de desdém como recompensa pela sua geniosidade. Senti-me uma tola diante de seus olhos agudos e sua expressão que parecia desvendar aquilo que tentava esconder.
- Ginevra, quando irá aceitar que a vejo como uma das mais belas coisas que já vi? – e ele suspirou.
Não conseguir responder àquilo. Senti meu rosto queimar e abaixei a face, tentando esconder meu constrangimento. Mas sentia os olhos deles ainda sobre mim; sabia que não poderia esconder nada dele.
- Por que você sumiu? – perguntei com a voz baixa, tímida.
- Estava fazendo uma pesquisa. Precisava ter algumas certezas e isso ocupou muito o meu tempo. – respondeu com o mesmo tom sóbrio de sempre.
- Você ficou aqui todo esse tempo? – não pude frear a minha curiosidade. – Sozinho?
Ele deu de ombros e afirmou levemente com a cabeça, como se realmente não importasse. Olhei novamente ao redor, ainda impressionada pela quantidade de livros que ali existiam. Tom era mais instruído que eu imaginara. Provavelmente lera centenas de livros, enquanto eu apenas li o Evangelho.
- Você já leu todos esses livros?
- Não todos, mas grande parte. – foi naquele momento que percebi que você não era muito de palavras, e isso me fez mais insegura; tinha medo de falar alguma tolice e você rir de mim. – Se quiser ler algum, sinta-se à vontade.
Olhei nos olhos dele e sorri com a gentileza, mas ele não correspondeu ao meu sorriso, apenas continuou me olhando e, daquela vez, não me senti incomodada com aquilo. Os olhos e os olhares de Tom faziam com que me sentisse diferente, de uma forma agradável e ao mesmo tempo estranha.
- Você irá sumir novamente? – perguntei, depois de um tempo indefinível.
- Você quer que eu suma, Ginevra?
O silêncio tornou-se ensurdecedor.
- Não, eu não quero, Tom.
Palavras impensadas num momento inoportuno. Certa vez mamãe disse que a maior arma que temos é o poder das palavras, mas tinha acreditado naquilo, realmente. Não tinha idéia do que aquela resposta poderia resultar num futuro próximo. Eu apenas queria Tom perto de mim. E esse foi meu grande erro.
Bom, essa é a primeira parte da minha primeira Tom/Ginny. Essa fic foi escrita (desesperadamente) para o VIII Challenge Tom/Ginny do fórum 3Vassouras. Queria agradecer (novamente) a Jana por betar maravilhosamente a fic e por me aturar no msn ontem, já que cantei toda a fic para ela; a Sweet por não ter desistido de mim; Agata pela ajuda. Todas que me ajudaram, essa fic está aqui por você! E o resultado não saiu, torçam por mim!
Não tardarei em postar as segunda parte, ok?
Reviews são mais que bem vindos
Até! Beijos!
