"Itsuki " Ele chamou, tímido.
Podiam estar ali há bem poucos minutos; para Sensui, um minuto significava uma eternidade inteira de divagações. Mas não um minuto qualquer – não. Apenas os que – como aquele – incluíam um certo youkai de cabelos verdes e estranhos maneirismos assistindo à novela, esparramado em seu sofá e – como se isso tudo já não fosse humano o suficiente – abraçado a um travesseiro.
"Sim? " O outro respondia, quase que por um reflexo involuntário, sem nunca desgrudar os olhos da TV.
O detetive espiritual hesitou, como que ponderando o que diria, a seguir; mesmo que nem uma eternidade pudesse tê-lo feito formular uma questão de cunho menos desconcertante. No final, não importava qual palavra escolhesse, todo o conjunto se encarregaria de condená-lo, de qualquer forma – assim, ele indagou, com toda a espontaneidade de que pôde se servir:
"Que tipo de monstro você é? "
Mas o arrependimento foi imediato, quando, por um leve movimento de cabeça, seus olhares se cruzaram; e ele obteve, ao invés de uma resposta igualmente simples e casual, um semblante limpo – incógnito. O youkai, que estivera até o presente momento com toda a atenção absorvida pela novela de televisão, moveu só os olhos – de um dourado hipnótico, e que parece vasculhar a alma de quem quer que se atrevesse a fita-lo – para achar os de Shinobu, onde o efeito desse olhar tem ainda mais força.
E era só em momentos como esse, entre um minuto e outro, de um comportamento atípico – porém, não menos estranho – que Shinobu não precisava se esforçar – muito – para lembrar a si mesmo desse fato óbvio e irrefutável: Itsuki era um youkai. Não importava que agisse feito um humano, parecesse um humano, tivesse hábitos de um ser humano – ele era um monstro. "Um Yaminade ", para se ser mais exato – ou foi o que ele revelou, depois de um longo período de silêncio.
Sensui, que não ousava esperar por uma resposta mais afável, ficou desnorteado.
Assim uma nova pergunta irrompeu, antes que o detetive espiritual pudesse meditar sobre a decência de tê-la refreado:
"Um o que? " Foi simplesmente inevitável – como o foi para Itsuki, ver esse misto de curiosidade e confusão tomar conta do rosto quase sempre tão severo do outro, e rir; um riso efêmero, anasalado, que se dissolvia em seus lábios para dar forma a um sorriso enigmático.
Shinobu não sabia se o admirava, ou o odiava, por isso; por fazê-lo se sentir feito um idiota, em sua presença. Embora o ódio fosse um sentimento bem pouco conhecido, por ele; e embora, até por esse parco conhecimento, no fundo, soubesse que alguém tão atraente, tão magnético, quanto Itsuki, não merecia ser odiado. Então só o que lhe restava, era permitir-se admirá-lo; em sua beleza, sua estranheza, tudo. Porque Itsuki era uma pessoa estranha – aliás, um ser estranho; que não era um demônio, nem uma pessoa – por mais que a aparência e os maneirismos em muito enganassem. Era diferente de qualquer coisa que Shinobu já tivesse visto, e era a mais contraditória, sem dúvida.
Contudo, se lhe fosse permitido escolher, desde o início, preferiria tê-lo odiado; pois, só assim, ele se veria livre daquela tormenta, que zunia em sua cabeça com verdades que ele tentava a todo custo ignorar, em qualquer canto mais inóspito e obscuro da mente; a vozinha muda da razão – aquela que dizia que, talvez, alguns demônios pudessem ser tão humanos quanto Itsuki, ou ele mesmo; e, às vezes, parecia sentir verdadeiro prazer em zombar de seu mais completo desespero – por ter matado tantos. Que poderiam ser tão humanos quanto Itsuki. Poderiam não ser monstros.
Absorto nessas linhas tortuosas de pensamento, o rapaz custou a perceber quando, pelos ombros, duas mãos sombrias o agarraram, puxando-o para um abraço mais frio que o da morte; e Shinobu foi arrastado para um universo de escuridão. O universo de Itsuki.
"Itsuki " Ele moveu os lábios, em um sussurro; sentia-se dominado por uma impressão de vazio, como se a própria consciência fosse engolida por um buraco negro, impedindo-o de raciocinar. Não era de tudo uma sensação ruim. Era até agradável.
Era como se todos os seus problemas se dissipassem, com a luz; todos os receios, as preocupações, fossem sugados por esse fenômeno sobrenatural; deixando-o a sós com o sentimento que, ironicamente, em qualquer outra circunstância, teria desencadeado essas mesmas conturbadas reflexões; e que, na véspera, o impediu de executar outro monstro.
Nesse breu absoluto, o detetive espiritual não soube precisar o momento certo em que as mãos abandonaram os seus ombros, para cobrirem-lhe os olhos; talvez nem tivesse se atentado para esse detalhe, até ouvir a voz melódica de Itsuki:
"Bem-vindo " O youkai começou, suavemente. "Ao meu território. " E as mãos se afastaram de seu rosto, apenas para que Sensui pudesse enxerga-lo, no meio de todo aquele nada, que ele chamava de território.
Seus olhos permaneceram fitos nos do youkai, em uma mirada longa e tensa – mais pelo receio de ter que abaixá-los e acabar não encontrando o chão sob os pés, do que pela admiração, dessa vez.
Do outro lado, o de cabelos verdes parecia rir, internamente – embora essa lhe fosse a máscara mais usual; de um flerte espontâneo, um galanteio intrínseco; e, portanto, não servisse como prova concreta de seu suposto divertimento.
"Ser um Yaminade significa ter mãos sombrias " Ele explicou, evocando esses membros independentes, de aspecto surreal e monstruoso, como que para ilustrar as palavras. "E ter mãos sombrias significa ter o poder para manipular atalhos interdimensionais, entre outras coisas. "
Em algum ponto, onde manter o contato visual teria se tornado insustentável para Shinobu, este se manifestou:
"Então " O moreno riu, querendo abafar o nervosismo, já muito evidente; e Itsuki ergueu ligeiramente os supercílios, no que o rapaz abaixou os olhos, determinado – tendo que suspender o ar nos pulmões, antes de continuar: " a teoria das cordas é verdadeira... "
Os lábios do Yaminade se entreabriram, inconscientemente, em um quase imperceptível ar de incredulidade. Mas não durou, até ter cedido para uma expressão cheia de um humor afetado, ímpar; culminando em uma risada que, de tão melodiosa, teria parecido ensaiada – uma que remontava perfeitamente aquela ocasião; quando haviam se encontrado, pela primeira vez.
"Teoria... do quê? " Ele deixou escapar, retórico, ainda nesse arrebatamento.
O mais novo sentiu as faces esquentarem.
"Esqueça " Shinobu atalhou, incomodado; observando um ou outro objeto trafegar, aleatoriamente, abaixo de si; reparando em como todo aquele bizarro intermúndio fazia jus ao seu dono.
Um silêncio ainda mais aterrador que toda a treva naquele buraco-negro se fez; e o detetive espiritual temia que seus batimentos pudessem ser ouvidos, de tão altos.
"Você é um ser humano bem incomum " O outro comentou, de repente.
"E você é –" Sensui já ia rebater, erguendo o rosto em um ímpeto, mas se calou; perdendo-se outra vez no brilho indecifrável daqueles orbes.
"Um monstro. " Itsuki completou, com a vaga sombra de um sorriso a perpassar-lhe os lábios; e não podia estar mais satisfeito.
"Diferente " Corrigiu, estremecendo sob o efeito perverso de sua beleza: a silhueta pálida, muito acentuada pela escuridão; o rosto andrógino – delicado e, ao mesmo tempo, imponente – emoldurado por aquelas madeixas de cor exótica, cujas pontas, repicadas aqui e ali, estendiam-se até o início do peito; o busto altivo, escultural.
"Está tudo bem " A voz, profunda, soou fantasmagórica; e Sensui viu-o oscilar, como a luz artificial de uma lâmpada; iridescente, surreal; prestes a se extinguir. "Se é nisso em que você quer acreditar " Ouviu, enfim, como que entoado de muito, muito perto; parecendo retumbar de seu próprio subconsciente.
E ele desapareceu.
"Itsuki! " O detetive espiritual gritou, assombrado. "Não me deixe aqui " Ele implorou, procurando-o, com os olhos. "Não me deixe aqui " Seu apelo foi morrendo nos lábios, tornando-se quase inaudível; emudecido.
E a escuridão o embalou, novamente, em seus braços; mas ele não se sentiu vazio.
Nem solitário.
Ao invés disso, sentiu-se confortado; como que envolvido em um abraço real.
"Itsuki... " Ele balbuciou.
As cores de seu próprio mundo voltaram aos seus olhos, dando-lhe a sensação de acordar, depois de um longo sonho. Mas então veio a imagem de Itsuki, e ele percebeu que esse estranho estado de sonolência havia apenas começado.
N/A: Oi minna-san! Espero que tenham apreciado a leitura, até aqui. Essa fic surgiu com a proposta de explorar esse impacto inicial que dá abertura às mudanças psicológicas do Sensui. Na minha opinião, a aparição do Itsuki foi um choque ainda mais drástico do que o evento com o BBC, em si ( é óbvio que esse foi o estopim, mas o que eu acredito que mais impactou foi esse primeiro momento – tenho meus argumentos, se estiverem interessados /e não, não é uma visão romântica, mas uma análise imparcial). A princípio, seria uma one-shot; mas como acabou crescendo além do esperado, será dividida em dois pequenos caps.
Bom, eu acho que já falei demais (não gosto de notas grandes); como sempre, qualquer dúvida, crítica, qualquer coisa, a autora está aí pra isso, meus droogies.
Beijinhos no coração~
