Nathalia reiniciou a leitura do parágrafo pela quinta vez. Encarava o texto à sua frente, tentando concentrar-se nas falas grifadas cuidadosamente há alguns minutos. A chuva batia na janela do espaçoso quarto de seu novo apartamento, num ritmo constante e pacífico, ainda que insuficiente para acalmar seus pensamentos. Passara os últimos dois dias assim, incapaz de manter o foco em qualquer atividade sem que seus pensamentos fossem desviados para os acontecimentos das últimas semanas.
Ela era uma atriz experiente, com diversos trabalhos em seu currículo, cada um com um desafio maior, com uma personagem diferente. Estava acostumada com as nuances da profissão, o ego de alguns colegas, as dificuldades ao lidar com a fama. Estava habituada a contracenar com atores que eram considerados galãs no país inteiro, e beijá-los nunca havia sido um problema.
Nathalia custava a entender, então, o porque de sua apreensão crescente nas últimas semanas, toda vez que ela e Thiago precisavam dividir uma cena romântica. Não era seu primeiro trabalho com ele, considerava um excelente parceiro de cena, e sempre como se a parceria dos dois fosse natural. Precisava admitir que as vezes, até parecia natural demais. Mas considerava normal precisarem de quase nenhum ensaio para chegar à cena perfeita e os elogios dos diretores e do público quanto a cumplicidade que demonstravam em cena.
Porém, nas últimas semanas as coisas pareciam um pouco diferentes. Seus personagens viviam um momento delicado na trama, com confrontos a cada vez que se encontravam, muitos deles seguidos por beijos tórridos. Era um tipo de cena comum para seus personagens, e Nathalia já conhecia Thiago o suficiente para que tivessem cumplicidade em cenas assim. Sabia como era beijá-lo em cena, por isso não foi difícil perceber quando o beijo tornou-se um pouco menos técnico e profissional. Foram poucos segundos da primeira vez, uma caricia de línguas que não costumavam estar ali.
E foi apenas natural que esse episódios se repetissem nas cenas e ensaios seguintes, sem que nenhum dos dois falasse sobre isso. Jurava a si mesma que não permitiria, mas quando percebia, aquele toque estava ali, breve, porém cada vez mais frequente. Aos poucos os toques dele em sua cintura ou pescoço também pareciam ter um novo significado, uma intensidade que não era habitual.
E Nathalia sabia que deveriam parar com isso. Thiago era casado, mesmo que os comentários de bastidores fossem de que o relacionamento estava em crise, e ela estava namorando. Não era aceitável o que acontecia, mas, por mais que pensasse sobre isso, não encontrava nenhuma maneira de abordar o assunto. Sequer sabia se era proposital, ou se Thiago estava apenas variando sua técnica.
O que sabia, de fato, era que a cada toque sentia-se mais arrepiada, e pegava-se ansiosa a cada roteiro recebido, sem saber se desejava ler uma cena envolvendo beijo ou não. E talvez fosse esse o motivo de não conseguir concentrar-se nas cenas recebidas há dois dias, já que a sequencia que tentava decorar agora envolvia Darcy e Elisabeta em um escritório, após uma briga importante, seguida de uma sequências de beijos e carícias
Nathalia respirou fundo, tentando concentrar-se novamente. A cada nova tentativa de ler, via sua mente fugir para as gravações que seriam realizadas no dia seguinte, dispersando para os beijos roubados e pelas mãos dele na cintura dela. Tentava evitar os pensamentos e voltar seu foco às palavras, quando seu celular vibrou ao seu lado.
Thiago: Lendo as cenas de amanhã...
Nathalia encarou a tela do celular, sem saber o que responder. Apesar dos pequenos momentos, nunca havia conversado com Thiago sobre isso. Os dois fingiam que nada acontecia após cada gravação.
Thiago: Não to conseguindo visualizar muito bem essa sequência. O que acha?
Ela respirou aliviada. Podiam não conversar sobre o acontecido, mas era rotina entre eles discutir as cenas, os sentimentos de seus personagens.
Nathalia: Oi! Tudo bem?
Nathalia: To lendo também. Acho que segue o mesmo contexto das outras.
N: Elisa incomodada com a aproximação de Darcy e Ludmila
T: Tudo certo, você?
T: E Darcy tentando fazê-la admitir o que sente, entendi...
N: Mas a última cena deixou tudo no ar
T: Pensei no Darcy estar mais derrotado nessa cena
T: Quando ele diz "Até quando você vai negar, Elisabeta?", pareceu mais coerente o tom de derrota
N: Você tem razão
N: Elisa também parece cansada das brigas
T: Como você acha que querem o beijo? Mais lento?
Nathalia pensou no que dizer. Já havia pensado em todas as possibilidades em relação a cena.
N: No último, Darcy iniciou, de forma abrupta. Pensei em propor que seja Elisa dessa vez.
T: Não foi abrupta hehe
T: Foi firme.
N: hahaha
N: É a mesma coisa...
T: Não. Eu quis demonstrar a minha vontade de beijar.
Ela não pode deixar de notar que Thiago não falou sobre seu personagem. Poderia ser só uma maneira de se expressar, mas ele sempre falava sobre Darcy e as vontades de Darcy. Pensou no que responder, sentindo que a conversa estava entrando em território perigoso.
T: É a sua vez agora
N: De Elisa
T: Claro
T: A vontade de Elisa ;)
T: Acho que ELISA poderia iniciar o beijo de forma mais lenta dessa vez, talvez segurando os cabelos de DARCY, enquanto ele a prensa na escrivaninha
Nathalia segurou a respiração, sentindo um arrepio tomar conta de si. Não sabia o que estava acontecendo, apenas sentia enorme vontade de continuar a conversa, mesmo sabendo que não deveria.
N: hm...
N: Não é uma ideia ruim
T: Quando Elisabeta estiver sem ar, Darcy pode puxar os cabelos dela para trás e beijar o pescoço
N: Eu não sei se o diretor deixaria
T: Podemos testar pra ver o que ele acha
T: Ele me disse que nossas últimas cenas estão perfeitas hehe
N: Você está se empenhando bastante
Era uma péssima ideia continuar com essa conversa. Era uma péssima ideia continuar com esses momentos roubados.
T: Você é uma parceira muito bacana
T: Muito disposta
N: Fiquei em dúvida se era proposital...
T: Você pensou que pudesse não ser?
N: Nova técnica, não sei
T: hahaha
T: Se você me visse agora...
Nathalia temeu perguntar, e temeu a resposta. As coisas estavam ficando perigosamente claras, e ao mesmo tempo o calor em seu corpo a obrigava a seguir a conversa, a seguir a provocação.
N: Veria o que?
T: Nath, Nath...
T: Meu casamento tá um inferno, briguei com a Vanessa de novo e to dormindo em um hotel
T: Devia estar pensando em pedir desculpas, mas to aqui maluco pensando no Darcy beijando a Elisabeta
N: Pelo menos você tá num hotel
N: Pedro tá aqui assistindo televisão
N: E eu já tava aqui pensando nessa cena antes de você falar
T: Porra, Nath
T: Eu to pensando muita merda com essa cena
N: Tá muito errado
T: Eu sei
T: Eu sei
T: Você sabe que eu não sou assim
N: Eu sei
N: Eu também não
N: Mas a gente tá fazendo nosso trabalho, né?
T: Eu não to bem certo que o que eu to fazendo agora é trabalho
N: Você não tá ajudando...
- Amor, cê tá dormindo? – Pedro perguntou da sala, fazendo Nathalia bloquear a tela do celular.
- Quase. – ela respondeu, quase sem voz, ao ver a tela piscar com 'Thiago enviou uma imagem'.
- Ah, beleza. Eu vou terminar de ver esse filme aqui.
- Tá. Vou fechar a porta então, tá? – perguntou, já levantando-se.
- Beleza. – o namorado respondeu.
Nathalia fechou a porta, encostando-se nela. Segurou a respiração ao desbloquear a tela e retornar à conversa. Ao abrir a imagem, deu de cara com a mão de Thiago segurando o contorno de seu membro, por cima da boxer branca. Embaixo, uma mensagem que dizia "espero que isso ajude. Até amanhã."
