Weird
FAN FICTION
ESCRITA POR: Bellefleur X (bellefleur_x@hotmail.com)
DISCLAIMER: Os personagens desta estória pertencem a seus
criadores. (Embora eu creia que, no caso específico de X-
Files, os criadores é que passaram a pertencer a seus
personagens!)
CATEGORIA: Shipper (ma non troppo)
CLASSIFICAÇÃO: Censura livre (aqui não tem nada que não se
veja igual ou pior na novela das 6)
SPOILER: Mais uma pós-Réquiem.
SINOPSE: Após cinco anos de separação, Scully reencontra
Mulder numa estranha situação. Como ela deve proceder para
tê-lo de volta?
ADVERTÊNCIA: Essa fic não é recomendada para diabéticos e
pacientes em dieta de restrição de açúcares. Sorry, eu
detesto essas coisas melosas, mas não pude evitá-las. Deve
ser meu lado Janete Clair aflorando.
AGRADECIMENTO ESPECIAL: À Graça, pelas idéias que me deu
inicialmente e pela paciência de ler e opinar sobre essa
coisinha melosa.
NOTA: Feedbacks (positivos ou negativos) são essenciais para
determinar a continuação dessa estória. Ou não...
Weird
Sacramento, CA
11/08/2005 – 11:20 AM
A confusão de estridentes sirenes e luzes piscando era
enlouquecedora. Bombeiros moviam-se apressados, desenrolando
as pesadas mangueiras e apontando seus fortes jatos para a
casa em chamas. Outros, saindo da casa com as crianças
resgatadas nos braços, dirigiam-se rapidamente aos
paramédicos e ambulâncias que também congestionavam o local.
Policiais isolavam a área das dezenas de curiosos que se
apinhavam nas proximidades, querendo saber mais detalhes
sobre o incêndio. Pudera! Incêndios são sempre situações
angustiantes. Imagine, então, um incêndio em um jardim de
infância! Felizmente, segundo as informações dadas pela
polícia à TV local, todas as crianças já haviam sido
retiradas com vida da casa.
Subitamente, um homem magro, encurvado, sujo rompeu o
isolamento sem que os policiais pudessem impedi-lo e penetrou
no inferno em chamas em que se transformara a casa. A
multidão que assistia à cena ficou atônita!
- Louco! - disseram alguns.
- Suicida. - ecoaram outros.
Dentro da casa, o homem, alheio às chamas, procurava por
algo. Ia andando de cômodo em cômodo com passos firmes. Nesse
momento, não era mais o mendigo encurvado que entrara ali,
mas um gigante, forte e destemido. Sentia como se uma mão
invisível o conduzisse por entre as labaredas altas com um
propósito que ele desconhecia. Ainda. De repente, por entre o
rugir do fogo e os estalidos característicos que precedem o
colapso das construções em chamas, ouviu o débil choro de uma
criança. O ruído não era mais do que um murmúrio, mas o homem
seguiu decidido em sua direção. E, então, a viu. Encolhida em
um canto, trêmula e assustada, estava uma menina de cerca de
quatro anos. Ao perceber a proximidade do homem, ela ergueu a
pequenina cabeça coroada de cabelos ruivos e, depois de um
breve exame com seus olhinhos cinzentos, se atirou em seus
braços. Ele a aninhou contra seu peito com todo cuidado e
iniciou seu caminho para fora, protegendo-a do fogo com seu
corpo. Ao redor deles, as chamas consumiam os brinquedos
transformando os ursinhos de pelúcia em bolas ardentes e os
rostos sorridentes dos palhacinhos em grotescas faces
deformadas de monstros. Pedaços do teto começavam a ruir, mas
ele marchava com firmeza por entre o caos, conduzindo seu
precioso tesouro para a segurança do exterior.
11:55 AM
- FBI. – disse Scully, apresentando com as mãos trêmulas a
insígnia a um dos policiais responsáveis pelo isolamento da
área do incêndio. Sua face estava turva pelo medo. Esforçava-
se para manter a aparência fria e profissional que sempre a
caracterizara, mas era quase impossível.
Andava com passos incertos por entre o tumulto de homens e
mangueiras e macas, procurando por ela, examinando
sobressaltada cada rostinho de criança que via pelo caminho.
Apenas uma olhada na direção da casa em chamas foi suficiente
para que quase desfalecesse de terror. Amy Scully, sua filha
estava naquela casa onde, até aquela manhã, funcionara um
limpo e organizado jardim de infância. Por que fora trazê-la
consigo naquela investigação? Por que não a havia deixado com
a avó como inicialmente planejara fazer?
Washington DC
08/12/2004 – 11:28 AM
Scully fora chamada com urgência ao jardim de infância de
Amy. A menina tinha febre alta e chorava sem parar. Scully
levou a filha às pressas ao pediatra, mas, ao examiná-la,
cerca de meia hora mais tarde, o médico constatou que a febre
havia passado sem deixar vestígios. Aparentemente, Amy
voltara a ser a criança saudável que sempre fora. Receitou-
lhe um antitérmico, caso a febre voltasse, e um exame de
sangue. No dia seguinte e por todos os subseqüentes desde
então, o quadro voltou a se repetir, iniciando-se sempre em
torno de 11:30 AM e indo embora sem necessidade de medicação
alguma cerca de meia hora depois. Infindáveis consultas
médicas e intermináveis exames não conseguiram revelar nada
de errado com a saúde da menina. No entanto, a febre sempre
aparecia e desaparecia à mesma hora com a precisão de um
relógio suíço. De resto, Amy continuava sendo a garotinha
esperta e alegre de sempre.
O diagnóstico final dos especialistas foi de um tipo de
distúrbio de origem psicossomática e o tratamento prescrito,
o acompanhamento psicológico. Como aconteceria com qualquer
mãe, o coração de Scully não se satisfez com aquele
diagnóstico vago e impreciso. Entretanto, sua mente racional
e científica, aliada à sua formação médica e às suas
experiências profissionais passadas, foram forçados a aceitar
o parecer dos médicos e proceder com o tratamento. Assim,
desde então Amy vinha freqüentando o consultório de uma
terapeuta infantil sem, no entanto, apresentar nenhuma
melhora.
Washington DC
26/07/2005 – 2:36 AM
Scully foi acordada pelo som do choro convulsivo da filha no
quarto ao lado. Correndo até lá, a encontrou sentada na cama.
Acreditando tratar-se de sonambulismo, tentou despertá-la
gentilmente, mas Amy tinha a pele fria e os olhos arregalados
e não reagia a estímulos externos. Era como se estivesse em
transe, presa em algum pesadelo assustador. Abraçou a menina
com ternura, tentando acalmá-la com palavras suaves, e assim
ficou até que ambas adormeceram.
Sacramento, CA
11/08/2005 – 12:59 AM
Scully parecia hipnotizada pelas chamas que ainda consumiam a
casa, estava imersa nas recordações dos acontecimentos que a
fizeram trazer a filha consigo naquela investigação. Desde
aquela primeira noite, havia duas semanas, quando Amy a
acordara com seu pranto, o evento vinha se repetindo noite
após noite. Somente envolvida pelo abraço da mãe é que a
menina se acalmava. E acabavam ambas por adormecer assim,
abraçadas.
Sentia a filha carente como nunca. Desde seu nascimento,
Scully esforçava-se por suprir todas as necessidades afetivas
que a menina pudesse ter pela ausência do pai em sua criação.
Scully tentava ser, ao mesmo tempo, mãe e pai de Amy,
alternando seu próprio modo de ser e pensar com o modo como
imaginava que Mulder se comportaria em cada situação.
Racional e passional, fria e apaixonada, cética e fervorosa,
ela procurava mostrar à filha todas as diferentes nuances do
mundo.
Quando Skinner a designara para aquele caso na Califórnia,
foi por um triz que não pedira para que ele mandasse outro
agente em seu lugar. Porém algo, no fundo de sua alma, a fez
desistir de pedir o afastamento. Algo que não saberia
definir, uma daquelas intuições inexplicáveis que aprendera
com o parceiro desaparecido a não desprezar. Como não lhe
pareceu correto deixar a filha na casa de sua mãe naquele
estado tão carente em que se encontrava, resolveu levá-la
consigo. Por indicação de uma amiga que já morara na cidade,
conseguiu deixar Amy durante os dias em que estivesse ali no
jardim de infância que agora ardia como os fossos do inferno.
Um telefonema da polícia recebido em seu celular avisando-a
do incêndio a fez correr para o local.
O esbarrão de um bombeiro a despertou do transe em que se
encontrava. Recomeçou a vagar a esmo por entre as ambulâncias
e paramédicos sem encontrar a filha. Decidiu abordar um
policial que, aparentemente, estava coordenando as operações
de resgate.
- Procuro por Amy Scully. – disse ela, mostrando a insígnia
ao policial.
- Ali. – respondeu ele, depois de examinar uma planilha em
uma prancheta. E apontou na direção de uma das ambulâncias.
Com o coração como que apertado por tenazes de gelo, ela
dirigiu-se com passos trôpegos na direção indicada. Uma
criança com a cabeça enfaixada jazia dentro da ambulância.
Usava uma máscara de oxigênio que cobria quase todo o seu
rosto. Scully engoliu em seco, estreitando os olhos na
tentativa de enxergar através da penumbra do interior da
ambulância. Uma mecha de cabelos muito louros que escapava
por entre as ataduras da cabeça libertou seu peito do
completo desespero que a consumia apenas para fazer retornar
a angústia que a trouxera até ali.
- Quem a senhora procura? – indagou solícito o paramédico que
cuidava da criança de cabeça enfaixada.
- Minha filha, Amy Scully. – respondeu com um fio de voz.
- Ah! Ela está bem. Está ali fora, no gramado. – procurou
acalmá-la o gentil paramédico, sorrindo.
Para um coração de mãe, não basta ouvir, é preciso ver com os
próprios olhos. Ela dirigiu-se, então, com passos incertos
até o gramado indicado. Nele, havia um homem de cabelos
curtos castanhos sentado de costas para ela, com as pernas
cruzadas em posição de lótus. Podia-se notar que tinha as
costas largas, apesar de seus ombros estarem encurvados como
se estivesse muito, muito cansado. Scully estremeceu. Por um
instante, julgou tratar-se do parceiro desaparecido. Mas
qual! Era apenas um mendigo, com as roupas sujas e
esfarrapadas, mais um homeless entre outros tão comuns
naqueles tempos.
Mais dois passos, e ela divisou os finos cabelos ruivos de
Amy, sentada sobre uma das pernas do homem. Podia ouvi-la
rindo, aos arrancos, como costumava fazer quando estava se
divertindo muito. Um arrepio de felicidade percorreu seu
corpo. O coração, outra vez liberto das tenazes do medo,
permitiu que ela soltasse um suspiro de puro alívio. Despindo
a capa de profissional super competente que normalmente
portava para deixar a descoberto a figura da mãe amorosa que
era, Scully deixou que as lágrimas rolassem livremente por
sua face.
- Amy? – chamou, já ao lado da filha.
Homem e menina voltaram-se para ela a um só tempo. Amy tinha
um brilho radiante nos olhos, sorria feliz como havia tempos
não fazia. A menina, normalmente tímida como a mãe, sentava-
se no colo daquele estranho com uma das mãozinhas colocada
sobre seu peito como se fossem velhos conhecidos. Por entre
as lágrimas, ela percebeu que o homem também sorria.
- Minha filhinha... – murmurou Scully, pegando a filha no
colo e a estreitando em seus braços enquanto cobria seu belo
rostinho de beijos.
As lágrimas que toldavam a visão de Scully começavam agora a
se dissipar. Colocando Amy no chão, ela começou a examiná-la
minuciosamente à procura de algum ferimento que tivesse
passado desapercebido aos paramédicos.
- Ela está bem! Pode acreditar. – disse o homem, calmamente.
A voz daquele homem, aquela voz que por cinco longos anos ela
desejou tão ardentemente escutar, fez seu coração
descompassar-se. Mulder! Não podia ser ele... Sua imensa
saudade mais uma vez lhe pregava peças... Ela respirou fundo
uma, duas vezes, até conseguir reunir coragem para levantar a
cabeça e encarar a verdade. Fosse qual fosse.
Era ele! Por debaixo daquela camada de sujeira e das roupas
rasgadas. Seu rosto, de tão magro, estava desfigurado. Os
ombros encurvados para a frente sugerindo um extremo cansaço.
Mas os mesmos olhos cinzentos onde tantas vezes ela desejara
se perder e que agora escondiam-se por trás de olheiras
profundas não deixavam dúvidas.
- Mulder... – ela murmurou, sorrindo.
- Como? – perguntou ele, sem entender.
- Mulder? É você? – ela repetiu mais alto.
- Acho que me confunde com outra pessoa, senhora. Me
desculpe! – respondeu ele com um sorrisinho amarelo.
Scully ficou desconcertada. Seria possível estar fazendo
tamanha confusão? Tinha certeza de que não. Seu coração o
dizia. Talvez devido ao choque ele não se lembrasse...
Amnésia traumática, dizia a médica que se abrigava na parte
posterior de sua cabeça.
- Sou eu quem deve se desculpar, senhor...? Como é mesmo seu
nome?
- Pode escolher, senhora. Tenho tantos nomes que já nem sei
ao certo qual é o meu nome... – disse ele, tomando agora o
embaraço para si. – Os outros homeless andam me chamando de
Weird... Por causa das estórias que conto, sabe? – Tinha
agora um sorriso irônico nos lábios. - Pode me chamar assim,
se quiser. Ou de qualquer outro modo que deseje.
- Weird... – ela repetiu sorrindo. "Weird" fazia sentido, em
se tratando de Mulder. Descrevia-o perfeitamente. – Gostaria
de lhe agradecer pelo que fez por Amy...
- Não foi nada, senhora...?
- Scully, Dana Scully. – respondeu ela estendendo-lhe a mão
que ele tomou em um aperto forte e decidido. O aperto de mão
de Mulder. Sentiu um nó se formando em sua garganta.
- Amy é uma garotinha muito especial... – disse ele com um
sorriso cândido, afagando gentilmente os cabelos da menina,
subitamente mergulhando em pensamentos...
Washington DC
08/12/2004 – 10:15 AM
As crianças brincavam no parquinho no pátio do jardim de
infância. Algumas corriam como loucas, umas atrás das outras,
num pique onde todos eram ao mesmo tempo perseguido e
perseguidor. Outras voavam nos balanços e gangorras. Ao
longe, podia-se ouvir suas risadas e gritinhos felizes.
Felizes e despreocupadas como todas as crianças deveriam ser.
De pé, na esquina do outro lado da rua, um homem observava a
cena. Weird, era como o chamavam os outros mendigos com quem
dividia o abrigo dos pedaços de manilha em um canteiro de
obras nas redondezas. Seu verdadeiro nome já nem sabia mais.
Ou, talvez, nunca soubera, desde que podia se lembrar. Na
verdade, suas lembranças eram confusas, não conseguia
posicioná-las no tempo com precisão.
Tinha a impressão de que sua vida começara naquele dia em que
acordara em um quarto de hospital em Denver, Colorado. John
Doe, dizia a ficha presa ao pé da cama. "É. Esse devo ser
eu.", havia pensado na ocasião, aceitando aquele nome como
seu uma vez que não se lembrava de outro. Mais tarde, quando
a enfermeira saiu para o corredor dizendo que precisava
chamar os policiais para identificá-lo, fugiu. Não era uma
sensação agradável a de não saber quem era, mas envolver-se
com os tiras tampouco lhe parecia uma boa idéia. Desde então,
havia vagado sem rumo de uma cidade para outra, vivendo nas
ruas. Escondendo-se da polícia e de si mesmo.
Observar as crianças brincando proporcionava-lhe uma
agradável sensação de bem-estar. Sua alegria o fazia esquecer
do frio e da fome e da melancolia de ser quem era. Uma
garotinha, em especial, atraía sua atenção. Ajoelhada sobre
um canteiro, com os cabelos ruivos a esconder-lhe o rosto,
estudava atentamente a atividade de um formigueiro, alheia à
algazarra que reinava ao seu redor. Parecia tão compenetrada
nessa ocupação que não atendeu ao chamado da professora
avisando sobre o fim do recreio.
- Amy! – chamou a mulher.
Somente então a menina ergueu os olhos do chão e, por um
instante, encarou Weird que ainda a observava. Os olhos
cinzentos da menina, curiosos e inquisitivos, ao invés de se
desviarem dos do homem, sustentaram seu olhar por um longo
minuto, como que penetrando nos recônditos de sua alma,
inspecionando e avaliando seu conteúdo. Por fim, ela abriu-
lhe um largo sorriso, levantou-se do canteiro e desapareceu
correndo no interior do jardim de infância. Ainda com o
frescor daquele sorriso a iluminar-lhe a alma, Weird afastou-
se a passos lentos em direção ao seu abrigo.
Nos dias que se seguiram, ele voltou por diversas vezes
àquela esquina. Mas a luz do sorriso de Amy não estava mais
lá. Entristecido, Weird decidiu que já era tempo de ir-se
embora daquela cidade.
Sacramento, CA
11/08/2005 – 02:08 AM
- ...muito especial. – falou Weird, com que saindo do transe.
"Sim, ela é tão especial quanto o pai. Você!", Scully pensava
confusa.
- Comportou-se como uma mocinha durante todo esse tempo. Tem
bons motivos para orgulhar-se dela, senhora Scully. –
continuava ele.
"Scully... O modo como ele pronuncia meu nome me
enlouquece... É como uma carícia. Oh, Deus!" Precisava fazer
algo. Precisava recuperar a compostura e o sangue frio.
"Calma. Pense como Scully, a agente do FBI, não como Dana, a
mulher apaixonada." Respirou fundo. Ele continuava a falar,
agora com Amy, mas ela já não os ouvia. "Em primeiro lugar, é
necessária sua identificação positiva como Mulder. Como?"
- E como é o nome dela? – perguntou Weird, segurando com
carinho a boneca que Amy lhe estendia.
- Samantha! – a menina respondeu sorrindo.
Por um instante, Scully pensou ter visto uma sombra de
melancolia pairar sobre o olhar de Weird, enquanto ele
deixava a boneca escapar de suas mãos. Scully a apanhou no
ar, tomando cuidado para não tocar os braços por onde ela
havia segurado a boneca.
- Desculpe-me... – ele murmurou com a voz amargurada. – Não
pretendia...
- Ah, não tem problema. – atalhou Amy, sorrindo. – Às vezes,
também deixo cair as coisas. Minha mãe diz que sou
estabanada.
- Senhor Weird, pode tomar conta de Amy para mim por um
instante? Preciso cuidar de alguns detalhes burocráticos com
os policiais, assinar alguma papelada dizendo que recebi
minha filha em perfeita saúde e todo esse blá blá blá. Sabe
como é?
- Claro! – respondeu ele, já recuperado. – Pode ir sossegada
que estaremos bem aqui quando voltar.
Carregando a boneca de Amy como um precioso tesouro, ela
encaminhou-se a um dos carros de polícia próximos. Apresentou
mais uma vez a insígnia e requisitou o envio das digitais
obtidas dos braços da boneca para identificação pelos
computadores do FBI.
- Já estamos enviando. Em dez minutos, no máximo, teremos o
resultado. – falou o policial.
- Estarei ali, com minha filha. – disse Scully, voltando para
junto de Amy.
O homem e a menina continuavam rindo, conversando e brincando
como se conhecessem um ao outro por toda a vida. "E, de certa
forma, isso é verdade", pensava Scully distraída, observando
sem ousar interferir.
- Agente Scully! – chamou o policial, estendendo-lhe uma
folha de papel com o timbre do FBI, onde estava escrito:
"Agente Especial Fox W. Mulder.
Nascido em 13/10/1961 – Chilmark, Massachusetts
Desaparecido em 21/05/2000."
Era ele. Era ele! E novamente ela tremia. Mas desta vez, não
era a desagradável sensação de medo de quando procurava por
Amy entre as ambulâncias. Era um tremor de prazer, as pernas
meio frouxas, uma vontade doida de abraçar aquele homem sujo
de pé a sua frente e levá-lo para casa. "E será NOSSA casa,
dessa vez."
Mas como fazê-lo? Por não se lembrar quem era, ele não
aceitaria de bom grado que ela o ajudasse. Scully o conhecia
muito bem. Amnésia implica em perda de memória, não de
personalidade. Além disso, não fazia muito sentido a agente
especial Dana Scully do FBI, profissional séria e
conceituada, arrastar à força um mendigo qualquer da rua para
sua casa. Mesmo que ele tivesse salvo sua filha. Mesmo que
ele fosse Fox Mulder...
Procurou se controlar. Precisava ganhar tempo para elaborar
alguma estratégia. E, principalmente, precisava não deixá-lo
se afastar e desaparecer outra vez.
- Tudo resolvido! - exclamou, dobrando o papel e o fazendo
desaparecer em um dos bolsos rapidamente. E, olhando para
Weird, afetando naturalidade, acrescentou: - Senhor Weird,
Amy e eu ficaríamos muito felizes se o senhor nos
acompanhasse em um lanche. Afinal, - disse examinando
rapidamente o relógio - a hora do almoço já passou há muito
tempo e nós estamos com uma fome de leão, não é, Amy? -
completou, piscando um dos olhos para a menina.
- Acho que não devo... Não gosto de incomodar... - replicou
ele, sem graça, enquanto dava dois vacilantes passos para
trás.
Scully gelou. Ele estava fugindo. Não podia deixar aquilo
acontecer. Tinha que fazer alguma coisa. Mas foi Amy quem
salvou a situação.
- Ah... Por favor, venha com a gente... - falou com meiguice,
segurando-lhe a mão. - Mamãe vai nos dar sorvete depois, não
é, mamãe?
- Claro! Muito sorvete! - respondeu, respirando mais aliviada
ao perceber que a mãozinha da filha impedira-lhe a fuga.
- Por favor... – acrescentou a menina, olhando suplicante
para ele.
- Ok... - ele respondeu conformado, já sendo rebocado pela
mãozinha diligente de Amy em direção ao carro de Scully.
Ancil Hoffman Park – Sacramento, Califórnia
04:50 PM
Sentado na mesa de piquenique do parque, Weird observava
distraído Scully e Amy tagarelando à sua frente. Sentia-se
tão feliz quanto jamais se sentira durante toda a vida de que
podia se recordar. Era como se elas fossem sua própria
família. Família...
Talvez ele tivesse tido uma algum dia.
Uma casa branca com um pequeno gramado na frente e uma perua
na garagem. Apenas mais uma igual a tantas casas iguais no
emaranhado de ruas idênticas em algum subúrbio de uma cidade
qualquer. Dentro dela, esperando que ele chegasse do
trabalho, uma esposa adorável, dois ou três filhos em idade
pré-escolar e um cão labrador abanando o rabo deitado ao pé
da televisão. Haveria uma família assim esperando por ele,
por um membro da família que nunca voltara?
Ou quem sabe ele fosse apenas mais um solteirão bem
apessoado, vivendo em um pequeno e mal arrumado apartamento
no centro de uma cidade qualquer, desfrutando apenas da
companhia silenciosa dos peixinhos de seu aquário e de um
armário atulhado de fitas de vídeo pornô e exemplares antigos
de Playboy e Hustler?
Quem poderia saber? O certo era que, naquele momento, ele
gostaria de ter uma família. Aquela família!
O que sentia por Amy era impossível de exprimir em palavras.
Era como se ela fosse uma parte dele mesmo. Sim, uma parte de
si próprio. Isso talvez pudesse explicar o que o compelira a
entrar naquela casa em chamas e seguir procurando por algo,
em meio àquele inferno ardente, que ele não fazia a menor
idéia do que fosse. Apenas sabia que devia continuar
procurando e seguira as estranhas vibrações que o haviam
conduzido até Amy. E, ao encontrá-la, não tivera a menor
dúvida de que era exatamente o que procurava. Desde a
primeira vez em que a vira, naquele parquinho em Washington,
havia um milhão de anos atrás, ela o havia cativado com
aqueles olhinhos curiosos. Sentia que seria, para sempre,
prisioneiro daquele olhar.
Já aquela mulher ruiva lhe causara um emaranhado de sensações
confusas. Era como se fossem muitas mulheres reunidas em um
único corpo. À primeira vista, a temera por seu comportamento
inquisitivo, quase que policial. A maneira com que ela o
olhava, examinando-o, avaliando-o, era tão incômoda... Quando
Amy lhe contara, orgulhosa, que a mãe era agente do FBI, ele
pôde compreendê-la melhor. Depois, no carro, vindo para o
parque, novamente sentiu-se engolfado por outro turbilhão de
emoções desconexas. Estar ali, no banco do carona do carro
que rodava por uma estradinha, observá-la pelo canto do olho,
dirigindo tão atenta à estrada, os dedos tamborilando o
volante no ritmo da música que fluía do rádio... Foi como um
dejá-vu. Como se já houvesse passado por aquela situação
antes, não apenas uma, mas um sem número de vezes. Agora,
ali, no parque, era ainda outra mulher que se sentava diante
dele. Despreocupada, relaxada, sorrindo e brincando com a
filha. Tão diferente, tão bonita...
"Sim... Eu poderia amar essa mulher...", devaneava. Uma
súbita rajada de vento despenteou os cabelos ruivos de
Scully. O cheiro daqueles cabelos impregnou as narinas de
Weird, um cheiro tão seu conhecido e havia tanto tempo
esquecido... Num flash, pareceu-lhe recordar de como seria
enterrar o nariz naquela cabeleira, da textura de seda sob
seus lábios em um beijo. E ele foi invadido pela sensação de
que também a conhecia por toda a vida.
- Poderia me ajudar aqui, sr. Weird? – pedia-lhe Scully,
interrompendo seus devaneios.
Ela havia se levantado e tentava alçar Amy até um galho alto
de uma árvore próxima. Ele aproximou-se e a ajudou a levantar
a menina. Ao fazê-lo, seus dedos inadvertidamente roçaram os
de Scully e um arrepio brotou da base de sua espinha,
percorrendo todo o caminho até sua nuca. Seus olhos se
encontraram e ele pode ler naquele olhar que o toque
provocara nela reação semelhante. Sustentando Amy no ar,
enquanto a menina tentava apanhar uma maçã presa ao galho, os
corpos de ambos ficavam perigosamente próximos, o espaço
entre os dois preenchido ainda pela eletricidade do contato
anterior. Parecendo tentar se equilibrar melhor, Scully deu
um pequeno passo adiante, diminuindo ainda mais a já pequena
distância entre os dois, ao mesmo tempo em que, ajeitando as
mãos sobre o corpo de Amy, enlaçou seus dedos aos de Weird.
Ela parecia provocá-lo!
- Peguei! – o gritinho estridente da menina quebrou o clima
que havia se criado. Amy sorria, indiferente ao turbilhão de
emoções estampado nos rostos dos adultos. – Para você! –
completou ela, estendendo a maçã recém apanhada para Weird.
Desconcertado pelo gesto, bruscamente alterando seu foco do
desejo para a ternura, ele tinha os olhos úmidos. Ajoelhando-
se, envolveu a menina em um abraço que encheu seu coração com
a melodia de um coro de anjos. Beijou-a suavemente na testa e
guardou a fruta com cuidado no bolso.
- Hora de ir! O parque já está fechando. – disse Scully,
começando a juntar os restos do piquenique. – Vamos? –
indagou ao acabar.
No carro, no caminho de volta para a cidade, o sol se punha,
colorindo o céu com reflexos alaranjados e rosados. Essa luz
avermelhada filtrada pelo párabrisa do carro, conferia tons
rosados à pele de Scully, tornando-a ainda mais bela. Ela o
impressionara profundamente. Um simples toque em sua pele
fora o suficiente para arremessá-lo a um mar de desejos e
paixões furiosas que nunca havia conhecido. A sensação de
dejá-vu tornara-se ainda mais intensa depois daquele contato.
- É, Amy. Precisamos pensar no que vamos fazer com você para
que a mamãe possa trabalhar amanhã... – dizia Scully,
tentando parecer despreocupada. Em sua cabeça, as idéias
jorravam aos borbotões, tentando encontrar um modo de não
permitir que Mulder se afastasse. – Tive uma idéia, mas
preciso de sua ajuda, sr. Weird. – continuou, esforçando-se
para manter o tom natural.
- Em que poderia ajudá-la, senhora? – perguntou ele,
estranhando.
- Sabe, o jardim de infância se incendiou e só consegui uma
vaga temporária nele para Amy porque uma amiga me indicou.
Acho que será praticamente impossível arranjar vaga em outro
lugar qualquer para ela amanhã. Não tenho com quem deixá-la,
não conheço ninguém na cidade e preciso de apenas mais um dia
para encerrar meu trabalho aqui em Sacramento. – Olhou de
relance para o banco do carona onde ele acompanhava tudo com
atenção, tentando entender aonde ela queria chegar com toda
aquela longa explicação. - O senhor poderia fazer isso por
mim? Por nós? Tomaria conta de Amy enquanto trabalho amanhã?
– Com isso, tentava ganhar mais um dia até poder achar uma
solução para seu problema.
Por mais que a idéia de passar um dia inteiro na companhia de
Amy lhe soasse maravilhosamente agradável, Weird não
conseguia entender uma coisa. Como podia Scully, que já havia
demonstrado ser uma mãe tão amorosa e dedicada, possivelmente
confiar em deixar sua filhinha a cargo de um completo
desconhecido como ele? E, para colocar as coisas sob uma
ótica fria e calculista, considerando-se que ele era apenas
um morador de rua, sem nome ou identidade, o que a levaria a
inferir que ele não iria seqüestrar a menina, maltratá-la ou,
até mesmo, ele sabia bem que existiam pessoas capazes daquilo
(se é que se pode considerá-las pessoas), até mesmo matá-la?
Algo não soava correto naquilo tudo, não soava mesmo.
- Veja, senhora... eu... eu não posso... – ele gaguejava,
extremamente confuso. – Não... não posso... não devo... – a
imagem de policiais e algemas e celas de prisão já desfilando
aterradoramente diante de seus olhos.
Pelo canto do olho, Scully pôde perceber sua expressão
assustada, todo ele encolhendo-se contra a porta do automóvel
como se fosse pular pela janela a qualquer momento.
- Ah, por favor, Weird... – suplicou Amy suavemente,
esticando-se toda para colocar as mãozinhas em seus ombros.
O calor do toque daquelas mãozinhas unido à suavidade e à
súplica na voz foram o suficiente para fazê-lo colocar de
lado todos os medos e desconfianças e esfumaçarem-se as
imagens assustadoras que invadiam sua mente.
- Seria o maior prazer do mundo, sra. Scully. – respondeu ele
com um sorriso tímido nos lábios.
- Ótimo! – Scully exclamou aliviada. – Façamos o seguinte.
Passaremos em sua casa para que pegue suas coisas e depois
iremos para o motel onde estamos hospedadas. Gostaria de
hospedá-lo lá por esta noite para a eventualidade de eu ser
chamada numa emergência no meio da noite e Amy ter que ficar
sozinha. Concorda?
- Não precisa se preocupar em passar em minha casa, senhora.
Não tenho casa. Tudo o que tenho, carrego comigo em meus
bolsos. – disse ele, enfiando as mão nos bolsos e de lá
tirando um canivete suíço enferrujado, – Minha arma de defesa
e minha caixa de ferramentas. – um chaveiro com uma réplica
em plástico da Enterprise, - Meu veículo para viajar. – um
punhado de sementes de girassol, - um lanchinho para a hora
da fome – e, finalmente, a maçã que Amy lhe dera no parque. –
Meu tesouro mais precioso.
Scully sorriu, os olhos rasos d'água. "Sementes de girassol e
a Enterprise!!" Definitivamente, aquele era Mulder.
Super 8 Motel – Sacramento, Califórnia
08:38 PM
Quem os visse ali, sentados, na mesa da lanchonete, diria
tratar-se de uma família em férias, jantando feliz. Muitas
estórias sendo contadas, infalivelmente encerradas por boas
risadas.
De banho tomado e barba feita, usando jeans, camiseta e
moleton que Scully havia comprado para ele em uma loja de
departamentos próxima, Weird havia se transformado novamente
em Mulder. Pelo menos, na aparência. Apesar do rosto magro e
marcado pelo sofrimento e pelos cabelos um pouco mais longos
do que costumava usar, era Mulder sentado ali, com seu jeito
irônico de falar, suas estórias malucas e aquele modo todo
seu de erguer sarcasticamente a sobrancelha quando fazia uma
pergunta obviamente idiota.
Vê-lo sentado à sua frente, ao alcance da mão, tão contente
conversando com a filha, deixava Scully confusa. Ela lutava
bravamente contra a vontade de abraçá-lo e chamá-lo por seu
verdadeiro nome e revelar-lhe toda a verdade sobre seu
passado. Mas, como médica, sabia que não devia fazê-lo e que,
mesmo que o fizesse, isso provavelmente em nada o ajudaria a
recuperar a memória. Amnésia retrógrada pós-traumática, esse
era o nome de seu mal. Havia algumas drogas que poderiam
ajudá-lo a se lembrar, mas seu efeito era temporário. Como
para todos os problemas psíquicos, não havia fórmula mágica
de cura para o caso de Mulder. O melhor remédio era o tempo.
A conversa que tivera com Skinner, mais cedo pelo telefone,
tampouco a ajudara a decidir o que fazer. O diretor falara em
internação, ainda que forçada, de Mulder em alguma
instituição psiquiátrica. Quando Scully tentara lhe explicar
sobre a ineficácia dos tratamentos convencionais, ele chegara
até mesmo a citar um ou dois nomes de hospitais conhecidos
pelo pioneirismo de suas pesquisas. Ela, a princípio,
rejeitara a idéia. Não queria submeter Mulder, já tão
maltratado pelas circunstâncias que o haviam levado até
aquele ponto, a novos sofrimentos, mesmo que a intenção fosse
boa. Não seria justo com ele. Mas acabou sendo convencida por
Skinner de que aquela seria a melhor atitude a ser tomada.
Decidiram que, quando ela retornasse ao motel no fim do dia
seguinte, traria consigo uma equipe médica para auxiliá-la,
caso necessário, na remoção e internação de Mulder.
Secretamente, porém, ela ainda tinha esperanças de que
houvesse outra solução.
- O jantar estava ótimo, mas já é hora de dormir, Amy!
- Ah, mamãe! Ainda é cedo e eu tenho tanto para conversar com
Weird... – protestou, inconformada, a menina.
- Não, querida. Amanhã você terá o dia todo para conversar
com o sr. Weird. – Scully atalhou com autoridade.
- Sua mãe tem razão, meu bem. Amanhã o dia será todo nosso! –
ele prometeu, piscando um olho maroto para a menina.
Scully havia conseguido para ele um quarto ao lado do seu e
de Amy, de modo que a porta de comunicação entre os quartos
pudesse ser aberta para que ele ficasse com a menina, caso
ela precisasse se ausentar durante a noite.
De pé, na porta do quarto, Weird observava Scully colocando
Amy na cama. O modo como ela ajeitava as cobertas
cuidadosamente sobre a menina e depois beijava-lhe
carinhosamente a testa.
- Mamãe, posso pedir um beijo de boa noite ao Weird também? –
perguntou Amy, olhando para o vulto parado na porta.
Scully se voltou para ele e sorriu, piscando um dos olhos.
Ele se aproximou da cama e beijou ternamente a testa da
garotinha.
- Boa noite, Amy. – sussurrou. – Durma com os anjos.
- Eu amo você, mamãe. E você também, Weird. – ela murmurou já
adormecendo.
Sileciosamente, os dois adultos deixaram o quarto para o
corredor avarandado do motel. Instalaram-se em um banco
comprido de ferro que, colocado ao lado da porta junto a uma
mesinha também de ferro, dava ao corredor um ar de casa do
interior. Contemplaram silenciosos a noite fria e estrelada
de outono, imersos cada qual em um sem fim de pensamentos.
Mulder quebrou o silêncio.
- É uma garotinha incrível...
Scully hesitou, pensando no que dizer. Havia tantas coisas a
serem ditas...
- Sim. – foi tudo o quanto conseguiu articular.
- Ela me disse que você trabalha para o FBI. – ele continuou.
Scully exultou. "Eis minha deixa."
- É verdade. – começou a falar, mais animada. – Em uma
divisão que trata de casos estranhos, que o fluxo normal de
investigações não consegue elucidar. São os chamados Arquivos
X.
- Como assim, estranhos? – ele interrompeu com curiosidade.
- Basicamente, tratamos de casos que as abordagens lógica e
científica convencionais não conseguem explicar.
Paranormalidade, fenômenos extra-terrestres, esse tipo de
coisas. – ela continuou, a cada segundo mais entusiasmada
pelo interesse que ele demonstrava.
- Muito interessante. Já deve ter visto coisas
extraordinárias, então.
- Ah, sim. Já presenciei alguns fenômenos inexplicáveis à luz
da razão. Por exemplo, uma vez...
E começou a contar, empolgada, fatos de casos que haviam
investigado juntos, na esperança de que ele se recordasse de
qualquer coisa. Por vezes, imaginava vislumbrar em seu olhar
um fugaz lampejo de recordação que desaparecia tão
rapidamente quanto havia surgido. Então, ela forçava-se a
tentar relatar os casos sob a ótica como imaginava que Mulder
os veria. Ele ouvia interessado, fazendo uma pergunta aqui
outra ali, como Mulder faria. Mas, para sua frustração,
depois de duas horas de relatos, ainda era Weird sentado ali
ao seu lado. Por fim, pareceu esgotar-se seu repertório de
arquivos X. Esforçava-se diligentemente, mas não conseguia
lembrar de mais nada para contar. E calou-se.
Pairava entre os dois um silêncio profundo que fez com que
cada um mergulhasse outra vez em pensamentos. No silêncio, a
presença um do outro, sentados lado a lado no banco estreito,
tornou-se mais intensa, mais definida.
Uma repentina lufada da fria brisa da noite fez Scully
estremecer. Mulder percebeu e cobriu os ombros dela com o
casaco que tinha jogado sobre seus próprios ombros. O calor
dele a envolveu por inteiro, com uma carícia. Ela estremeceu
novamente, desta vez de desejo. Um desejo surdo, forte,
latente após tantos anos de separação, foi se apoderando
lentamente de todo o seu ser. E ela reagiu a ele. Ela moveu o
braço e cobriu com sua mão a mão dele que descansava sobre o
assento do banco. Foi a vez dele estremecer com o toque e
estremeceu mais ainda quando ela enlaçou seus dedos com os
dela, apertando-os com força, como se quisesse uni-los para
sempre.
Com todo cuidado, Scully deslocou-se no banco, aproximando-se
mais de Mulder. Ele não fugiu e ela, então, aproximou-se
ainda mais, tocando coxa com coxa. Ele tremia, sua respiração
pesada, uma veia pulsava visivelmente em sua têmpora. Ela
também tinha a boca seca e o coração disparado. Era como se
cada molécula do ar que ele exalava com dificuldade
provocasse uma descarga elétrica no corpo dela que se
propagava por sua mão e se transmitia de volta para ele.
Num impulso, Scully ergueu-se, sem afrouxar a pressão com que
segurava-lhe a mão, e o conduziu gentilmente para o quarto ao
lado daquele em que Amy dormia. Ele a seguia dócil, atônito
com a atitude daquela quase estranha, desconcertado por sua
ousadia, mas, ao mesmo tempo, encantado com as possibilidades
que se descortinavam diante dele. Mas, impulsivamente,
preferiu deixar de lado as divagações e as dúvidas e os
temores que assaltavam seu peito e entregar-se às sensações
que o momento lhe propiciava. Tinha a impressão de estar
vivendo um momento pelo qual esperara por toda a vida.
Cuidadosamente, fechou a porta atrás de si e se voltou para a
mulher ruiva para encontrar-lhe o olhar turvo de desejo, do
modo como ele mesmo se sentia.
Sem tirar os olhos dele, Scully tomou-lhe a mão, cujos dedos
ainda detinha entre os seus, e colocou-a sobre seu peito, seu
coração descompassado. Ele tomou-lhe a outra mão e fez o
mesmo. Foi um momento de mágica comunhão, seus corações
marcando em descompasso a sinfonia da paixão. Em total
sincronia, ela elevou-se nas pontas dos pés, ao mesmo tempo
em que ele se inclinava, e seus lábios se encontraram no meio
do percurso.
12/08/2005 - 07:15 AM
O reflexo da jovem mulher ruiva no espelho era de alguém
feliz. Bem diferente daquele outro, no dia anterior, quando
uma mulher envelhecida e desiludida mal olhava para sua
própria imagem enquanto escovava os cabelos. Rejuvenescida,
era como Scully se sentia aquela manhã. Rejuvenescida e feliz
como não estava havia tempos.
Haviam se amado, ela e Mulder, com urgência, como se fosse a
primeira vez. E, de certa forma, era, ao menos para ele.
Depois adormeceram nos braços um do outro. Já passava de uma
da manhã quando ela acordou. Deixou-se ficar ali, quieta, sem
abrir os olhos, apenas desfrutando do aconchego daquele braço
que a envolvia e do calor do peito másculo onde sua cabeça
repousava.
"Amy está sozinha!", chamou, finalmente, a voz da razão em
sua cabeça. Com cuidado para não acordá-lo, moveu-lhe o braço
para o lado e levantou-se. Ele gemeu e acomodou-se, sem
acordar. Ela juntou suas roupas do chão e as vestiu
silenciosamente, de costas para ele. Ao olhar de relance no
espelho, porém, deu com um belo par de olhos cinzentos fitos
nela. Scully virou-se devagar. Ele a olhava fixamente, a
examinava. E, então, um sorriso maroto brincou em seus
lábios.
Ela corou. "Leviana, ele deve estar pensando. Afinal, para
ele, não foi com Mulder que dormi, mas com Weird. Uma total
estranha indo para a cama com um desconhecido no primeiro
encontro. E por iniciativa minha! Leviana, no mínimo." Uma
onda de vergonha a varria agora, toda sua educação católica
repressora, os anos em colégios de freiras voltando-lhe à
mente de um só golpe. "Vadia, leviana.", repetia para si
mesma.
- Por favor, não me compreenda mal. Eu... eu... – tartamudeou
confusa, o rosto queimando de vergonha.
- Sshh... – fez ele, colocando-lhe um dedo sobre os lábios e
a surpreendendo com o gesto. Ela estava tão atordoada que não
percebera que ele havia se levantado e estava agora parado ao
seu lado, com um lençol envolvendo a cintura. – Não precisa
dizer nada, não precisa se explicar. Não há ninguém para
julgar ou ser julgado aqui. Não deixe a velha moralidade
católica cobrir de pecado e vergonha algo tão absolutamente
belo e puro como o que houve esta noite.
Era Mulder falando. Mulder com seus psicologismos, lendo sua
mente e dissecando suas emoções. Delicadamente, ele ajeitou
uma mecha de cabelos vermelhos que insistia em cair-lhe sobre
os olhos e sorriu um sorriso luminoso que dissipou todas as
angústias que consumiam o coração de Scully.
- Vá! Já é tarde e Amy está sozinha. – ele completou, dando-
lhe um delicado beijo na testa.
- Mamãe... – a vozinha sonolenta de Amy no quarto a arrancou
diretamente das lembranças de volta para o tempo presente.
Antes de deixar o banheiro, ela ainda sorriu para sua própria
imagem no espelho ao lembrar das últimas palavras que ouvira
murmuradas na noite anterior quando deixava o quarto. "Ei, eu
te amo."
08:30 AM
Sentada no carro parado no estacionamento do motel, Scully
dava a Amy as últimas instruções sobre como se comportar.
Weird as observava parado de pé ao lado do carro a apenas um
passo de distância. Ainda não era capaz de compreender e
analisar tudo o que havia acontecido nas últimas vinte e
quatro horas. O que o havia impelido ao interior daquela
casa em chamas, diretamente para o local onde estava Amy? Por
que Dana Scully decidira lhe confiar o cuidado da menina
druante aquele dia, tão contrariamente ao que havia de mais
lógico e razoável? Sim, porque aquela mulher, pelo pouco que
pudera observar e pelo muito que ele acreditava compreender
da natureza humana, definitivamente, fazia o gênero "atitudes
lógicas e razoáveis". Mais, o que havia levado a mulher que
ela parecia ser, tão séria e recatada, a seduzir e entregar-
se por inteiro a um desconhecido como ele? Seria ela uma
ninfomaníaca em pele de puritana? Não, algo no interior de
Weird lhe dizia que não, que havia algo oculto em toda aquela
situação que ele ainda não conseguira distinguir. Ele reagira
à sedução da noite anterior como qualquer macho adulto da
espécie humana faria, por instinto, tesão. Mas por todo o
tempo em que haviam estado juntos, feito amor, aquela
sensação de dejá-vu que vinha sentindo desde a primeira vez
em que vira Scully no local do incêndio se tornara ainda mais
e mais intensa. Era como se fossem velhos conhecidos, antigos
amantes consumindo-se em um ato por muito tempo reprimido,
embora desejado e esperado por toda a eternidade. E, ainda,
por que em seus pensamentos a chamava de Scully e não Sra.
Scully, ou Dana, como a recém criada intimidade entre os dois
poderia permitir? Perguntas demais e nenhuma resposta. Tudo o
que sabia era que gostaria de poder permanecer com elas para
sempre. Ia perdido em devaneios, imaginando as coisas que
gortaria que fizessem juntos, os lugares que lhes mostraria,
as brincadeiras e gargalhadas que compartilhariam...
- Este homem a está incomodando, senhora? – perguntou o
policial que se aproximava, indicando Weird com a cabeça, a
mão direita já estrategicamente colocada sobre o coldre.
De súbito, Weird foi arrancado de seus devaneios pela dura
realidade de sua condição. Um mendigo, sem lar e sem destino,
sem passado nem futuro. Um ninguém. Menos que nada. O que
poderia lhes oferecer? E desatou a correr, tão rápido quanto
podia e ainda um pouco mais. Corria às cegas, as lágrimas
toldavam-lhe a visão. Mas era melhor assim. Melhor não ver
por onde ia, para não saber como voltar.
T O B E C O N T I N U E D . . .
FAN FICTION
ESCRITA POR: Bellefleur X (bellefleur_x@hotmail.com)
DISCLAIMER: Os personagens desta estória pertencem a seus
criadores. (Embora eu creia que, no caso específico de X-
Files, os criadores é que passaram a pertencer a seus
personagens!)
CATEGORIA: Shipper (ma non troppo)
CLASSIFICAÇÃO: Censura livre (aqui não tem nada que não se
veja igual ou pior na novela das 6)
SPOILER: Mais uma pós-Réquiem.
SINOPSE: Após cinco anos de separação, Scully reencontra
Mulder numa estranha situação. Como ela deve proceder para
tê-lo de volta?
ADVERTÊNCIA: Essa fic não é recomendada para diabéticos e
pacientes em dieta de restrição de açúcares. Sorry, eu
detesto essas coisas melosas, mas não pude evitá-las. Deve
ser meu lado Janete Clair aflorando.
AGRADECIMENTO ESPECIAL: À Graça, pelas idéias que me deu
inicialmente e pela paciência de ler e opinar sobre essa
coisinha melosa.
NOTA: Feedbacks (positivos ou negativos) são essenciais para
determinar a continuação dessa estória. Ou não...
Weird
Sacramento, CA
11/08/2005 – 11:20 AM
A confusão de estridentes sirenes e luzes piscando era
enlouquecedora. Bombeiros moviam-se apressados, desenrolando
as pesadas mangueiras e apontando seus fortes jatos para a
casa em chamas. Outros, saindo da casa com as crianças
resgatadas nos braços, dirigiam-se rapidamente aos
paramédicos e ambulâncias que também congestionavam o local.
Policiais isolavam a área das dezenas de curiosos que se
apinhavam nas proximidades, querendo saber mais detalhes
sobre o incêndio. Pudera! Incêndios são sempre situações
angustiantes. Imagine, então, um incêndio em um jardim de
infância! Felizmente, segundo as informações dadas pela
polícia à TV local, todas as crianças já haviam sido
retiradas com vida da casa.
Subitamente, um homem magro, encurvado, sujo rompeu o
isolamento sem que os policiais pudessem impedi-lo e penetrou
no inferno em chamas em que se transformara a casa. A
multidão que assistia à cena ficou atônita!
- Louco! - disseram alguns.
- Suicida. - ecoaram outros.
Dentro da casa, o homem, alheio às chamas, procurava por
algo. Ia andando de cômodo em cômodo com passos firmes. Nesse
momento, não era mais o mendigo encurvado que entrara ali,
mas um gigante, forte e destemido. Sentia como se uma mão
invisível o conduzisse por entre as labaredas altas com um
propósito que ele desconhecia. Ainda. De repente, por entre o
rugir do fogo e os estalidos característicos que precedem o
colapso das construções em chamas, ouviu o débil choro de uma
criança. O ruído não era mais do que um murmúrio, mas o homem
seguiu decidido em sua direção. E, então, a viu. Encolhida em
um canto, trêmula e assustada, estava uma menina de cerca de
quatro anos. Ao perceber a proximidade do homem, ela ergueu a
pequenina cabeça coroada de cabelos ruivos e, depois de um
breve exame com seus olhinhos cinzentos, se atirou em seus
braços. Ele a aninhou contra seu peito com todo cuidado e
iniciou seu caminho para fora, protegendo-a do fogo com seu
corpo. Ao redor deles, as chamas consumiam os brinquedos
transformando os ursinhos de pelúcia em bolas ardentes e os
rostos sorridentes dos palhacinhos em grotescas faces
deformadas de monstros. Pedaços do teto começavam a ruir, mas
ele marchava com firmeza por entre o caos, conduzindo seu
precioso tesouro para a segurança do exterior.
11:55 AM
- FBI. – disse Scully, apresentando com as mãos trêmulas a
insígnia a um dos policiais responsáveis pelo isolamento da
área do incêndio. Sua face estava turva pelo medo. Esforçava-
se para manter a aparência fria e profissional que sempre a
caracterizara, mas era quase impossível.
Andava com passos incertos por entre o tumulto de homens e
mangueiras e macas, procurando por ela, examinando
sobressaltada cada rostinho de criança que via pelo caminho.
Apenas uma olhada na direção da casa em chamas foi suficiente
para que quase desfalecesse de terror. Amy Scully, sua filha
estava naquela casa onde, até aquela manhã, funcionara um
limpo e organizado jardim de infância. Por que fora trazê-la
consigo naquela investigação? Por que não a havia deixado com
a avó como inicialmente planejara fazer?
Washington DC
08/12/2004 – 11:28 AM
Scully fora chamada com urgência ao jardim de infância de
Amy. A menina tinha febre alta e chorava sem parar. Scully
levou a filha às pressas ao pediatra, mas, ao examiná-la,
cerca de meia hora mais tarde, o médico constatou que a febre
havia passado sem deixar vestígios. Aparentemente, Amy
voltara a ser a criança saudável que sempre fora. Receitou-
lhe um antitérmico, caso a febre voltasse, e um exame de
sangue. No dia seguinte e por todos os subseqüentes desde
então, o quadro voltou a se repetir, iniciando-se sempre em
torno de 11:30 AM e indo embora sem necessidade de medicação
alguma cerca de meia hora depois. Infindáveis consultas
médicas e intermináveis exames não conseguiram revelar nada
de errado com a saúde da menina. No entanto, a febre sempre
aparecia e desaparecia à mesma hora com a precisão de um
relógio suíço. De resto, Amy continuava sendo a garotinha
esperta e alegre de sempre.
O diagnóstico final dos especialistas foi de um tipo de
distúrbio de origem psicossomática e o tratamento prescrito,
o acompanhamento psicológico. Como aconteceria com qualquer
mãe, o coração de Scully não se satisfez com aquele
diagnóstico vago e impreciso. Entretanto, sua mente racional
e científica, aliada à sua formação médica e às suas
experiências profissionais passadas, foram forçados a aceitar
o parecer dos médicos e proceder com o tratamento. Assim,
desde então Amy vinha freqüentando o consultório de uma
terapeuta infantil sem, no entanto, apresentar nenhuma
melhora.
Washington DC
26/07/2005 – 2:36 AM
Scully foi acordada pelo som do choro convulsivo da filha no
quarto ao lado. Correndo até lá, a encontrou sentada na cama.
Acreditando tratar-se de sonambulismo, tentou despertá-la
gentilmente, mas Amy tinha a pele fria e os olhos arregalados
e não reagia a estímulos externos. Era como se estivesse em
transe, presa em algum pesadelo assustador. Abraçou a menina
com ternura, tentando acalmá-la com palavras suaves, e assim
ficou até que ambas adormeceram.
Sacramento, CA
11/08/2005 – 12:59 AM
Scully parecia hipnotizada pelas chamas que ainda consumiam a
casa, estava imersa nas recordações dos acontecimentos que a
fizeram trazer a filha consigo naquela investigação. Desde
aquela primeira noite, havia duas semanas, quando Amy a
acordara com seu pranto, o evento vinha se repetindo noite
após noite. Somente envolvida pelo abraço da mãe é que a
menina se acalmava. E acabavam ambas por adormecer assim,
abraçadas.
Sentia a filha carente como nunca. Desde seu nascimento,
Scully esforçava-se por suprir todas as necessidades afetivas
que a menina pudesse ter pela ausência do pai em sua criação.
Scully tentava ser, ao mesmo tempo, mãe e pai de Amy,
alternando seu próprio modo de ser e pensar com o modo como
imaginava que Mulder se comportaria em cada situação.
Racional e passional, fria e apaixonada, cética e fervorosa,
ela procurava mostrar à filha todas as diferentes nuances do
mundo.
Quando Skinner a designara para aquele caso na Califórnia,
foi por um triz que não pedira para que ele mandasse outro
agente em seu lugar. Porém algo, no fundo de sua alma, a fez
desistir de pedir o afastamento. Algo que não saberia
definir, uma daquelas intuições inexplicáveis que aprendera
com o parceiro desaparecido a não desprezar. Como não lhe
pareceu correto deixar a filha na casa de sua mãe naquele
estado tão carente em que se encontrava, resolveu levá-la
consigo. Por indicação de uma amiga que já morara na cidade,
conseguiu deixar Amy durante os dias em que estivesse ali no
jardim de infância que agora ardia como os fossos do inferno.
Um telefonema da polícia recebido em seu celular avisando-a
do incêndio a fez correr para o local.
O esbarrão de um bombeiro a despertou do transe em que se
encontrava. Recomeçou a vagar a esmo por entre as ambulâncias
e paramédicos sem encontrar a filha. Decidiu abordar um
policial que, aparentemente, estava coordenando as operações
de resgate.
- Procuro por Amy Scully. – disse ela, mostrando a insígnia
ao policial.
- Ali. – respondeu ele, depois de examinar uma planilha em
uma prancheta. E apontou na direção de uma das ambulâncias.
Com o coração como que apertado por tenazes de gelo, ela
dirigiu-se com passos trôpegos na direção indicada. Uma
criança com a cabeça enfaixada jazia dentro da ambulância.
Usava uma máscara de oxigênio que cobria quase todo o seu
rosto. Scully engoliu em seco, estreitando os olhos na
tentativa de enxergar através da penumbra do interior da
ambulância. Uma mecha de cabelos muito louros que escapava
por entre as ataduras da cabeça libertou seu peito do
completo desespero que a consumia apenas para fazer retornar
a angústia que a trouxera até ali.
- Quem a senhora procura? – indagou solícito o paramédico que
cuidava da criança de cabeça enfaixada.
- Minha filha, Amy Scully. – respondeu com um fio de voz.
- Ah! Ela está bem. Está ali fora, no gramado. – procurou
acalmá-la o gentil paramédico, sorrindo.
Para um coração de mãe, não basta ouvir, é preciso ver com os
próprios olhos. Ela dirigiu-se, então, com passos incertos
até o gramado indicado. Nele, havia um homem de cabelos
curtos castanhos sentado de costas para ela, com as pernas
cruzadas em posição de lótus. Podia-se notar que tinha as
costas largas, apesar de seus ombros estarem encurvados como
se estivesse muito, muito cansado. Scully estremeceu. Por um
instante, julgou tratar-se do parceiro desaparecido. Mas
qual! Era apenas um mendigo, com as roupas sujas e
esfarrapadas, mais um homeless entre outros tão comuns
naqueles tempos.
Mais dois passos, e ela divisou os finos cabelos ruivos de
Amy, sentada sobre uma das pernas do homem. Podia ouvi-la
rindo, aos arrancos, como costumava fazer quando estava se
divertindo muito. Um arrepio de felicidade percorreu seu
corpo. O coração, outra vez liberto das tenazes do medo,
permitiu que ela soltasse um suspiro de puro alívio. Despindo
a capa de profissional super competente que normalmente
portava para deixar a descoberto a figura da mãe amorosa que
era, Scully deixou que as lágrimas rolassem livremente por
sua face.
- Amy? – chamou, já ao lado da filha.
Homem e menina voltaram-se para ela a um só tempo. Amy tinha
um brilho radiante nos olhos, sorria feliz como havia tempos
não fazia. A menina, normalmente tímida como a mãe, sentava-
se no colo daquele estranho com uma das mãozinhas colocada
sobre seu peito como se fossem velhos conhecidos. Por entre
as lágrimas, ela percebeu que o homem também sorria.
- Minha filhinha... – murmurou Scully, pegando a filha no
colo e a estreitando em seus braços enquanto cobria seu belo
rostinho de beijos.
As lágrimas que toldavam a visão de Scully começavam agora a
se dissipar. Colocando Amy no chão, ela começou a examiná-la
minuciosamente à procura de algum ferimento que tivesse
passado desapercebido aos paramédicos.
- Ela está bem! Pode acreditar. – disse o homem, calmamente.
A voz daquele homem, aquela voz que por cinco longos anos ela
desejou tão ardentemente escutar, fez seu coração
descompassar-se. Mulder! Não podia ser ele... Sua imensa
saudade mais uma vez lhe pregava peças... Ela respirou fundo
uma, duas vezes, até conseguir reunir coragem para levantar a
cabeça e encarar a verdade. Fosse qual fosse.
Era ele! Por debaixo daquela camada de sujeira e das roupas
rasgadas. Seu rosto, de tão magro, estava desfigurado. Os
ombros encurvados para a frente sugerindo um extremo cansaço.
Mas os mesmos olhos cinzentos onde tantas vezes ela desejara
se perder e que agora escondiam-se por trás de olheiras
profundas não deixavam dúvidas.
- Mulder... – ela murmurou, sorrindo.
- Como? – perguntou ele, sem entender.
- Mulder? É você? – ela repetiu mais alto.
- Acho que me confunde com outra pessoa, senhora. Me
desculpe! – respondeu ele com um sorrisinho amarelo.
Scully ficou desconcertada. Seria possível estar fazendo
tamanha confusão? Tinha certeza de que não. Seu coração o
dizia. Talvez devido ao choque ele não se lembrasse...
Amnésia traumática, dizia a médica que se abrigava na parte
posterior de sua cabeça.
- Sou eu quem deve se desculpar, senhor...? Como é mesmo seu
nome?
- Pode escolher, senhora. Tenho tantos nomes que já nem sei
ao certo qual é o meu nome... – disse ele, tomando agora o
embaraço para si. – Os outros homeless andam me chamando de
Weird... Por causa das estórias que conto, sabe? – Tinha
agora um sorriso irônico nos lábios. - Pode me chamar assim,
se quiser. Ou de qualquer outro modo que deseje.
- Weird... – ela repetiu sorrindo. "Weird" fazia sentido, em
se tratando de Mulder. Descrevia-o perfeitamente. – Gostaria
de lhe agradecer pelo que fez por Amy...
- Não foi nada, senhora...?
- Scully, Dana Scully. – respondeu ela estendendo-lhe a mão
que ele tomou em um aperto forte e decidido. O aperto de mão
de Mulder. Sentiu um nó se formando em sua garganta.
- Amy é uma garotinha muito especial... – disse ele com um
sorriso cândido, afagando gentilmente os cabelos da menina,
subitamente mergulhando em pensamentos...
Washington DC
08/12/2004 – 10:15 AM
As crianças brincavam no parquinho no pátio do jardim de
infância. Algumas corriam como loucas, umas atrás das outras,
num pique onde todos eram ao mesmo tempo perseguido e
perseguidor. Outras voavam nos balanços e gangorras. Ao
longe, podia-se ouvir suas risadas e gritinhos felizes.
Felizes e despreocupadas como todas as crianças deveriam ser.
De pé, na esquina do outro lado da rua, um homem observava a
cena. Weird, era como o chamavam os outros mendigos com quem
dividia o abrigo dos pedaços de manilha em um canteiro de
obras nas redondezas. Seu verdadeiro nome já nem sabia mais.
Ou, talvez, nunca soubera, desde que podia se lembrar. Na
verdade, suas lembranças eram confusas, não conseguia
posicioná-las no tempo com precisão.
Tinha a impressão de que sua vida começara naquele dia em que
acordara em um quarto de hospital em Denver, Colorado. John
Doe, dizia a ficha presa ao pé da cama. "É. Esse devo ser
eu.", havia pensado na ocasião, aceitando aquele nome como
seu uma vez que não se lembrava de outro. Mais tarde, quando
a enfermeira saiu para o corredor dizendo que precisava
chamar os policiais para identificá-lo, fugiu. Não era uma
sensação agradável a de não saber quem era, mas envolver-se
com os tiras tampouco lhe parecia uma boa idéia. Desde então,
havia vagado sem rumo de uma cidade para outra, vivendo nas
ruas. Escondendo-se da polícia e de si mesmo.
Observar as crianças brincando proporcionava-lhe uma
agradável sensação de bem-estar. Sua alegria o fazia esquecer
do frio e da fome e da melancolia de ser quem era. Uma
garotinha, em especial, atraía sua atenção. Ajoelhada sobre
um canteiro, com os cabelos ruivos a esconder-lhe o rosto,
estudava atentamente a atividade de um formigueiro, alheia à
algazarra que reinava ao seu redor. Parecia tão compenetrada
nessa ocupação que não atendeu ao chamado da professora
avisando sobre o fim do recreio.
- Amy! – chamou a mulher.
Somente então a menina ergueu os olhos do chão e, por um
instante, encarou Weird que ainda a observava. Os olhos
cinzentos da menina, curiosos e inquisitivos, ao invés de se
desviarem dos do homem, sustentaram seu olhar por um longo
minuto, como que penetrando nos recônditos de sua alma,
inspecionando e avaliando seu conteúdo. Por fim, ela abriu-
lhe um largo sorriso, levantou-se do canteiro e desapareceu
correndo no interior do jardim de infância. Ainda com o
frescor daquele sorriso a iluminar-lhe a alma, Weird afastou-
se a passos lentos em direção ao seu abrigo.
Nos dias que se seguiram, ele voltou por diversas vezes
àquela esquina. Mas a luz do sorriso de Amy não estava mais
lá. Entristecido, Weird decidiu que já era tempo de ir-se
embora daquela cidade.
Sacramento, CA
11/08/2005 – 02:08 AM
- ...muito especial. – falou Weird, com que saindo do transe.
"Sim, ela é tão especial quanto o pai. Você!", Scully pensava
confusa.
- Comportou-se como uma mocinha durante todo esse tempo. Tem
bons motivos para orgulhar-se dela, senhora Scully. –
continuava ele.
"Scully... O modo como ele pronuncia meu nome me
enlouquece... É como uma carícia. Oh, Deus!" Precisava fazer
algo. Precisava recuperar a compostura e o sangue frio.
"Calma. Pense como Scully, a agente do FBI, não como Dana, a
mulher apaixonada." Respirou fundo. Ele continuava a falar,
agora com Amy, mas ela já não os ouvia. "Em primeiro lugar, é
necessária sua identificação positiva como Mulder. Como?"
- E como é o nome dela? – perguntou Weird, segurando com
carinho a boneca que Amy lhe estendia.
- Samantha! – a menina respondeu sorrindo.
Por um instante, Scully pensou ter visto uma sombra de
melancolia pairar sobre o olhar de Weird, enquanto ele
deixava a boneca escapar de suas mãos. Scully a apanhou no
ar, tomando cuidado para não tocar os braços por onde ela
havia segurado a boneca.
- Desculpe-me... – ele murmurou com a voz amargurada. – Não
pretendia...
- Ah, não tem problema. – atalhou Amy, sorrindo. – Às vezes,
também deixo cair as coisas. Minha mãe diz que sou
estabanada.
- Senhor Weird, pode tomar conta de Amy para mim por um
instante? Preciso cuidar de alguns detalhes burocráticos com
os policiais, assinar alguma papelada dizendo que recebi
minha filha em perfeita saúde e todo esse blá blá blá. Sabe
como é?
- Claro! – respondeu ele, já recuperado. – Pode ir sossegada
que estaremos bem aqui quando voltar.
Carregando a boneca de Amy como um precioso tesouro, ela
encaminhou-se a um dos carros de polícia próximos. Apresentou
mais uma vez a insígnia e requisitou o envio das digitais
obtidas dos braços da boneca para identificação pelos
computadores do FBI.
- Já estamos enviando. Em dez minutos, no máximo, teremos o
resultado. – falou o policial.
- Estarei ali, com minha filha. – disse Scully, voltando para
junto de Amy.
O homem e a menina continuavam rindo, conversando e brincando
como se conhecessem um ao outro por toda a vida. "E, de certa
forma, isso é verdade", pensava Scully distraída, observando
sem ousar interferir.
- Agente Scully! – chamou o policial, estendendo-lhe uma
folha de papel com o timbre do FBI, onde estava escrito:
"Agente Especial Fox W. Mulder.
Nascido em 13/10/1961 – Chilmark, Massachusetts
Desaparecido em 21/05/2000."
Era ele. Era ele! E novamente ela tremia. Mas desta vez, não
era a desagradável sensação de medo de quando procurava por
Amy entre as ambulâncias. Era um tremor de prazer, as pernas
meio frouxas, uma vontade doida de abraçar aquele homem sujo
de pé a sua frente e levá-lo para casa. "E será NOSSA casa,
dessa vez."
Mas como fazê-lo? Por não se lembrar quem era, ele não
aceitaria de bom grado que ela o ajudasse. Scully o conhecia
muito bem. Amnésia implica em perda de memória, não de
personalidade. Além disso, não fazia muito sentido a agente
especial Dana Scully do FBI, profissional séria e
conceituada, arrastar à força um mendigo qualquer da rua para
sua casa. Mesmo que ele tivesse salvo sua filha. Mesmo que
ele fosse Fox Mulder...
Procurou se controlar. Precisava ganhar tempo para elaborar
alguma estratégia. E, principalmente, precisava não deixá-lo
se afastar e desaparecer outra vez.
- Tudo resolvido! - exclamou, dobrando o papel e o fazendo
desaparecer em um dos bolsos rapidamente. E, olhando para
Weird, afetando naturalidade, acrescentou: - Senhor Weird,
Amy e eu ficaríamos muito felizes se o senhor nos
acompanhasse em um lanche. Afinal, - disse examinando
rapidamente o relógio - a hora do almoço já passou há muito
tempo e nós estamos com uma fome de leão, não é, Amy? -
completou, piscando um dos olhos para a menina.
- Acho que não devo... Não gosto de incomodar... - replicou
ele, sem graça, enquanto dava dois vacilantes passos para
trás.
Scully gelou. Ele estava fugindo. Não podia deixar aquilo
acontecer. Tinha que fazer alguma coisa. Mas foi Amy quem
salvou a situação.
- Ah... Por favor, venha com a gente... - falou com meiguice,
segurando-lhe a mão. - Mamãe vai nos dar sorvete depois, não
é, mamãe?
- Claro! Muito sorvete! - respondeu, respirando mais aliviada
ao perceber que a mãozinha da filha impedira-lhe a fuga.
- Por favor... – acrescentou a menina, olhando suplicante
para ele.
- Ok... - ele respondeu conformado, já sendo rebocado pela
mãozinha diligente de Amy em direção ao carro de Scully.
Ancil Hoffman Park – Sacramento, Califórnia
04:50 PM
Sentado na mesa de piquenique do parque, Weird observava
distraído Scully e Amy tagarelando à sua frente. Sentia-se
tão feliz quanto jamais se sentira durante toda a vida de que
podia se recordar. Era como se elas fossem sua própria
família. Família...
Talvez ele tivesse tido uma algum dia.
Uma casa branca com um pequeno gramado na frente e uma perua
na garagem. Apenas mais uma igual a tantas casas iguais no
emaranhado de ruas idênticas em algum subúrbio de uma cidade
qualquer. Dentro dela, esperando que ele chegasse do
trabalho, uma esposa adorável, dois ou três filhos em idade
pré-escolar e um cão labrador abanando o rabo deitado ao pé
da televisão. Haveria uma família assim esperando por ele,
por um membro da família que nunca voltara?
Ou quem sabe ele fosse apenas mais um solteirão bem
apessoado, vivendo em um pequeno e mal arrumado apartamento
no centro de uma cidade qualquer, desfrutando apenas da
companhia silenciosa dos peixinhos de seu aquário e de um
armário atulhado de fitas de vídeo pornô e exemplares antigos
de Playboy e Hustler?
Quem poderia saber? O certo era que, naquele momento, ele
gostaria de ter uma família. Aquela família!
O que sentia por Amy era impossível de exprimir em palavras.
Era como se ela fosse uma parte dele mesmo. Sim, uma parte de
si próprio. Isso talvez pudesse explicar o que o compelira a
entrar naquela casa em chamas e seguir procurando por algo,
em meio àquele inferno ardente, que ele não fazia a menor
idéia do que fosse. Apenas sabia que devia continuar
procurando e seguira as estranhas vibrações que o haviam
conduzido até Amy. E, ao encontrá-la, não tivera a menor
dúvida de que era exatamente o que procurava. Desde a
primeira vez em que a vira, naquele parquinho em Washington,
havia um milhão de anos atrás, ela o havia cativado com
aqueles olhinhos curiosos. Sentia que seria, para sempre,
prisioneiro daquele olhar.
Já aquela mulher ruiva lhe causara um emaranhado de sensações
confusas. Era como se fossem muitas mulheres reunidas em um
único corpo. À primeira vista, a temera por seu comportamento
inquisitivo, quase que policial. A maneira com que ela o
olhava, examinando-o, avaliando-o, era tão incômoda... Quando
Amy lhe contara, orgulhosa, que a mãe era agente do FBI, ele
pôde compreendê-la melhor. Depois, no carro, vindo para o
parque, novamente sentiu-se engolfado por outro turbilhão de
emoções desconexas. Estar ali, no banco do carona do carro
que rodava por uma estradinha, observá-la pelo canto do olho,
dirigindo tão atenta à estrada, os dedos tamborilando o
volante no ritmo da música que fluía do rádio... Foi como um
dejá-vu. Como se já houvesse passado por aquela situação
antes, não apenas uma, mas um sem número de vezes. Agora,
ali, no parque, era ainda outra mulher que se sentava diante
dele. Despreocupada, relaxada, sorrindo e brincando com a
filha. Tão diferente, tão bonita...
"Sim... Eu poderia amar essa mulher...", devaneava. Uma
súbita rajada de vento despenteou os cabelos ruivos de
Scully. O cheiro daqueles cabelos impregnou as narinas de
Weird, um cheiro tão seu conhecido e havia tanto tempo
esquecido... Num flash, pareceu-lhe recordar de como seria
enterrar o nariz naquela cabeleira, da textura de seda sob
seus lábios em um beijo. E ele foi invadido pela sensação de
que também a conhecia por toda a vida.
- Poderia me ajudar aqui, sr. Weird? – pedia-lhe Scully,
interrompendo seus devaneios.
Ela havia se levantado e tentava alçar Amy até um galho alto
de uma árvore próxima. Ele aproximou-se e a ajudou a levantar
a menina. Ao fazê-lo, seus dedos inadvertidamente roçaram os
de Scully e um arrepio brotou da base de sua espinha,
percorrendo todo o caminho até sua nuca. Seus olhos se
encontraram e ele pode ler naquele olhar que o toque
provocara nela reação semelhante. Sustentando Amy no ar,
enquanto a menina tentava apanhar uma maçã presa ao galho, os
corpos de ambos ficavam perigosamente próximos, o espaço
entre os dois preenchido ainda pela eletricidade do contato
anterior. Parecendo tentar se equilibrar melhor, Scully deu
um pequeno passo adiante, diminuindo ainda mais a já pequena
distância entre os dois, ao mesmo tempo em que, ajeitando as
mãos sobre o corpo de Amy, enlaçou seus dedos aos de Weird.
Ela parecia provocá-lo!
- Peguei! – o gritinho estridente da menina quebrou o clima
que havia se criado. Amy sorria, indiferente ao turbilhão de
emoções estampado nos rostos dos adultos. – Para você! –
completou ela, estendendo a maçã recém apanhada para Weird.
Desconcertado pelo gesto, bruscamente alterando seu foco do
desejo para a ternura, ele tinha os olhos úmidos. Ajoelhando-
se, envolveu a menina em um abraço que encheu seu coração com
a melodia de um coro de anjos. Beijou-a suavemente na testa e
guardou a fruta com cuidado no bolso.
- Hora de ir! O parque já está fechando. – disse Scully,
começando a juntar os restos do piquenique. – Vamos? –
indagou ao acabar.
No carro, no caminho de volta para a cidade, o sol se punha,
colorindo o céu com reflexos alaranjados e rosados. Essa luz
avermelhada filtrada pelo párabrisa do carro, conferia tons
rosados à pele de Scully, tornando-a ainda mais bela. Ela o
impressionara profundamente. Um simples toque em sua pele
fora o suficiente para arremessá-lo a um mar de desejos e
paixões furiosas que nunca havia conhecido. A sensação de
dejá-vu tornara-se ainda mais intensa depois daquele contato.
- É, Amy. Precisamos pensar no que vamos fazer com você para
que a mamãe possa trabalhar amanhã... – dizia Scully,
tentando parecer despreocupada. Em sua cabeça, as idéias
jorravam aos borbotões, tentando encontrar um modo de não
permitir que Mulder se afastasse. – Tive uma idéia, mas
preciso de sua ajuda, sr. Weird. – continuou, esforçando-se
para manter o tom natural.
- Em que poderia ajudá-la, senhora? – perguntou ele,
estranhando.
- Sabe, o jardim de infância se incendiou e só consegui uma
vaga temporária nele para Amy porque uma amiga me indicou.
Acho que será praticamente impossível arranjar vaga em outro
lugar qualquer para ela amanhã. Não tenho com quem deixá-la,
não conheço ninguém na cidade e preciso de apenas mais um dia
para encerrar meu trabalho aqui em Sacramento. – Olhou de
relance para o banco do carona onde ele acompanhava tudo com
atenção, tentando entender aonde ela queria chegar com toda
aquela longa explicação. - O senhor poderia fazer isso por
mim? Por nós? Tomaria conta de Amy enquanto trabalho amanhã?
– Com isso, tentava ganhar mais um dia até poder achar uma
solução para seu problema.
Por mais que a idéia de passar um dia inteiro na companhia de
Amy lhe soasse maravilhosamente agradável, Weird não
conseguia entender uma coisa. Como podia Scully, que já havia
demonstrado ser uma mãe tão amorosa e dedicada, possivelmente
confiar em deixar sua filhinha a cargo de um completo
desconhecido como ele? E, para colocar as coisas sob uma
ótica fria e calculista, considerando-se que ele era apenas
um morador de rua, sem nome ou identidade, o que a levaria a
inferir que ele não iria seqüestrar a menina, maltratá-la ou,
até mesmo, ele sabia bem que existiam pessoas capazes daquilo
(se é que se pode considerá-las pessoas), até mesmo matá-la?
Algo não soava correto naquilo tudo, não soava mesmo.
- Veja, senhora... eu... eu não posso... – ele gaguejava,
extremamente confuso. – Não... não posso... não devo... – a
imagem de policiais e algemas e celas de prisão já desfilando
aterradoramente diante de seus olhos.
Pelo canto do olho, Scully pôde perceber sua expressão
assustada, todo ele encolhendo-se contra a porta do automóvel
como se fosse pular pela janela a qualquer momento.
- Ah, por favor, Weird... – suplicou Amy suavemente,
esticando-se toda para colocar as mãozinhas em seus ombros.
O calor do toque daquelas mãozinhas unido à suavidade e à
súplica na voz foram o suficiente para fazê-lo colocar de
lado todos os medos e desconfianças e esfumaçarem-se as
imagens assustadoras que invadiam sua mente.
- Seria o maior prazer do mundo, sra. Scully. – respondeu ele
com um sorriso tímido nos lábios.
- Ótimo! – Scully exclamou aliviada. – Façamos o seguinte.
Passaremos em sua casa para que pegue suas coisas e depois
iremos para o motel onde estamos hospedadas. Gostaria de
hospedá-lo lá por esta noite para a eventualidade de eu ser
chamada numa emergência no meio da noite e Amy ter que ficar
sozinha. Concorda?
- Não precisa se preocupar em passar em minha casa, senhora.
Não tenho casa. Tudo o que tenho, carrego comigo em meus
bolsos. – disse ele, enfiando as mão nos bolsos e de lá
tirando um canivete suíço enferrujado, – Minha arma de defesa
e minha caixa de ferramentas. – um chaveiro com uma réplica
em plástico da Enterprise, - Meu veículo para viajar. – um
punhado de sementes de girassol, - um lanchinho para a hora
da fome – e, finalmente, a maçã que Amy lhe dera no parque. –
Meu tesouro mais precioso.
Scully sorriu, os olhos rasos d'água. "Sementes de girassol e
a Enterprise!!" Definitivamente, aquele era Mulder.
Super 8 Motel – Sacramento, Califórnia
08:38 PM
Quem os visse ali, sentados, na mesa da lanchonete, diria
tratar-se de uma família em férias, jantando feliz. Muitas
estórias sendo contadas, infalivelmente encerradas por boas
risadas.
De banho tomado e barba feita, usando jeans, camiseta e
moleton que Scully havia comprado para ele em uma loja de
departamentos próxima, Weird havia se transformado novamente
em Mulder. Pelo menos, na aparência. Apesar do rosto magro e
marcado pelo sofrimento e pelos cabelos um pouco mais longos
do que costumava usar, era Mulder sentado ali, com seu jeito
irônico de falar, suas estórias malucas e aquele modo todo
seu de erguer sarcasticamente a sobrancelha quando fazia uma
pergunta obviamente idiota.
Vê-lo sentado à sua frente, ao alcance da mão, tão contente
conversando com a filha, deixava Scully confusa. Ela lutava
bravamente contra a vontade de abraçá-lo e chamá-lo por seu
verdadeiro nome e revelar-lhe toda a verdade sobre seu
passado. Mas, como médica, sabia que não devia fazê-lo e que,
mesmo que o fizesse, isso provavelmente em nada o ajudaria a
recuperar a memória. Amnésia retrógrada pós-traumática, esse
era o nome de seu mal. Havia algumas drogas que poderiam
ajudá-lo a se lembrar, mas seu efeito era temporário. Como
para todos os problemas psíquicos, não havia fórmula mágica
de cura para o caso de Mulder. O melhor remédio era o tempo.
A conversa que tivera com Skinner, mais cedo pelo telefone,
tampouco a ajudara a decidir o que fazer. O diretor falara em
internação, ainda que forçada, de Mulder em alguma
instituição psiquiátrica. Quando Scully tentara lhe explicar
sobre a ineficácia dos tratamentos convencionais, ele chegara
até mesmo a citar um ou dois nomes de hospitais conhecidos
pelo pioneirismo de suas pesquisas. Ela, a princípio,
rejeitara a idéia. Não queria submeter Mulder, já tão
maltratado pelas circunstâncias que o haviam levado até
aquele ponto, a novos sofrimentos, mesmo que a intenção fosse
boa. Não seria justo com ele. Mas acabou sendo convencida por
Skinner de que aquela seria a melhor atitude a ser tomada.
Decidiram que, quando ela retornasse ao motel no fim do dia
seguinte, traria consigo uma equipe médica para auxiliá-la,
caso necessário, na remoção e internação de Mulder.
Secretamente, porém, ela ainda tinha esperanças de que
houvesse outra solução.
- O jantar estava ótimo, mas já é hora de dormir, Amy!
- Ah, mamãe! Ainda é cedo e eu tenho tanto para conversar com
Weird... – protestou, inconformada, a menina.
- Não, querida. Amanhã você terá o dia todo para conversar
com o sr. Weird. – Scully atalhou com autoridade.
- Sua mãe tem razão, meu bem. Amanhã o dia será todo nosso! –
ele prometeu, piscando um olho maroto para a menina.
Scully havia conseguido para ele um quarto ao lado do seu e
de Amy, de modo que a porta de comunicação entre os quartos
pudesse ser aberta para que ele ficasse com a menina, caso
ela precisasse se ausentar durante a noite.
De pé, na porta do quarto, Weird observava Scully colocando
Amy na cama. O modo como ela ajeitava as cobertas
cuidadosamente sobre a menina e depois beijava-lhe
carinhosamente a testa.
- Mamãe, posso pedir um beijo de boa noite ao Weird também? –
perguntou Amy, olhando para o vulto parado na porta.
Scully se voltou para ele e sorriu, piscando um dos olhos.
Ele se aproximou da cama e beijou ternamente a testa da
garotinha.
- Boa noite, Amy. – sussurrou. – Durma com os anjos.
- Eu amo você, mamãe. E você também, Weird. – ela murmurou já
adormecendo.
Sileciosamente, os dois adultos deixaram o quarto para o
corredor avarandado do motel. Instalaram-se em um banco
comprido de ferro que, colocado ao lado da porta junto a uma
mesinha também de ferro, dava ao corredor um ar de casa do
interior. Contemplaram silenciosos a noite fria e estrelada
de outono, imersos cada qual em um sem fim de pensamentos.
Mulder quebrou o silêncio.
- É uma garotinha incrível...
Scully hesitou, pensando no que dizer. Havia tantas coisas a
serem ditas...
- Sim. – foi tudo o quanto conseguiu articular.
- Ela me disse que você trabalha para o FBI. – ele continuou.
Scully exultou. "Eis minha deixa."
- É verdade. – começou a falar, mais animada. – Em uma
divisão que trata de casos estranhos, que o fluxo normal de
investigações não consegue elucidar. São os chamados Arquivos
X.
- Como assim, estranhos? – ele interrompeu com curiosidade.
- Basicamente, tratamos de casos que as abordagens lógica e
científica convencionais não conseguem explicar.
Paranormalidade, fenômenos extra-terrestres, esse tipo de
coisas. – ela continuou, a cada segundo mais entusiasmada
pelo interesse que ele demonstrava.
- Muito interessante. Já deve ter visto coisas
extraordinárias, então.
- Ah, sim. Já presenciei alguns fenômenos inexplicáveis à luz
da razão. Por exemplo, uma vez...
E começou a contar, empolgada, fatos de casos que haviam
investigado juntos, na esperança de que ele se recordasse de
qualquer coisa. Por vezes, imaginava vislumbrar em seu olhar
um fugaz lampejo de recordação que desaparecia tão
rapidamente quanto havia surgido. Então, ela forçava-se a
tentar relatar os casos sob a ótica como imaginava que Mulder
os veria. Ele ouvia interessado, fazendo uma pergunta aqui
outra ali, como Mulder faria. Mas, para sua frustração,
depois de duas horas de relatos, ainda era Weird sentado ali
ao seu lado. Por fim, pareceu esgotar-se seu repertório de
arquivos X. Esforçava-se diligentemente, mas não conseguia
lembrar de mais nada para contar. E calou-se.
Pairava entre os dois um silêncio profundo que fez com que
cada um mergulhasse outra vez em pensamentos. No silêncio, a
presença um do outro, sentados lado a lado no banco estreito,
tornou-se mais intensa, mais definida.
Uma repentina lufada da fria brisa da noite fez Scully
estremecer. Mulder percebeu e cobriu os ombros dela com o
casaco que tinha jogado sobre seus próprios ombros. O calor
dele a envolveu por inteiro, com uma carícia. Ela estremeceu
novamente, desta vez de desejo. Um desejo surdo, forte,
latente após tantos anos de separação, foi se apoderando
lentamente de todo o seu ser. E ela reagiu a ele. Ela moveu o
braço e cobriu com sua mão a mão dele que descansava sobre o
assento do banco. Foi a vez dele estremecer com o toque e
estremeceu mais ainda quando ela enlaçou seus dedos com os
dela, apertando-os com força, como se quisesse uni-los para
sempre.
Com todo cuidado, Scully deslocou-se no banco, aproximando-se
mais de Mulder. Ele não fugiu e ela, então, aproximou-se
ainda mais, tocando coxa com coxa. Ele tremia, sua respiração
pesada, uma veia pulsava visivelmente em sua têmpora. Ela
também tinha a boca seca e o coração disparado. Era como se
cada molécula do ar que ele exalava com dificuldade
provocasse uma descarga elétrica no corpo dela que se
propagava por sua mão e se transmitia de volta para ele.
Num impulso, Scully ergueu-se, sem afrouxar a pressão com que
segurava-lhe a mão, e o conduziu gentilmente para o quarto ao
lado daquele em que Amy dormia. Ele a seguia dócil, atônito
com a atitude daquela quase estranha, desconcertado por sua
ousadia, mas, ao mesmo tempo, encantado com as possibilidades
que se descortinavam diante dele. Mas, impulsivamente,
preferiu deixar de lado as divagações e as dúvidas e os
temores que assaltavam seu peito e entregar-se às sensações
que o momento lhe propiciava. Tinha a impressão de estar
vivendo um momento pelo qual esperara por toda a vida.
Cuidadosamente, fechou a porta atrás de si e se voltou para a
mulher ruiva para encontrar-lhe o olhar turvo de desejo, do
modo como ele mesmo se sentia.
Sem tirar os olhos dele, Scully tomou-lhe a mão, cujos dedos
ainda detinha entre os seus, e colocou-a sobre seu peito, seu
coração descompassado. Ele tomou-lhe a outra mão e fez o
mesmo. Foi um momento de mágica comunhão, seus corações
marcando em descompasso a sinfonia da paixão. Em total
sincronia, ela elevou-se nas pontas dos pés, ao mesmo tempo
em que ele se inclinava, e seus lábios se encontraram no meio
do percurso.
12/08/2005 - 07:15 AM
O reflexo da jovem mulher ruiva no espelho era de alguém
feliz. Bem diferente daquele outro, no dia anterior, quando
uma mulher envelhecida e desiludida mal olhava para sua
própria imagem enquanto escovava os cabelos. Rejuvenescida,
era como Scully se sentia aquela manhã. Rejuvenescida e feliz
como não estava havia tempos.
Haviam se amado, ela e Mulder, com urgência, como se fosse a
primeira vez. E, de certa forma, era, ao menos para ele.
Depois adormeceram nos braços um do outro. Já passava de uma
da manhã quando ela acordou. Deixou-se ficar ali, quieta, sem
abrir os olhos, apenas desfrutando do aconchego daquele braço
que a envolvia e do calor do peito másculo onde sua cabeça
repousava.
"Amy está sozinha!", chamou, finalmente, a voz da razão em
sua cabeça. Com cuidado para não acordá-lo, moveu-lhe o braço
para o lado e levantou-se. Ele gemeu e acomodou-se, sem
acordar. Ela juntou suas roupas do chão e as vestiu
silenciosamente, de costas para ele. Ao olhar de relance no
espelho, porém, deu com um belo par de olhos cinzentos fitos
nela. Scully virou-se devagar. Ele a olhava fixamente, a
examinava. E, então, um sorriso maroto brincou em seus
lábios.
Ela corou. "Leviana, ele deve estar pensando. Afinal, para
ele, não foi com Mulder que dormi, mas com Weird. Uma total
estranha indo para a cama com um desconhecido no primeiro
encontro. E por iniciativa minha! Leviana, no mínimo." Uma
onda de vergonha a varria agora, toda sua educação católica
repressora, os anos em colégios de freiras voltando-lhe à
mente de um só golpe. "Vadia, leviana.", repetia para si
mesma.
- Por favor, não me compreenda mal. Eu... eu... – tartamudeou
confusa, o rosto queimando de vergonha.
- Sshh... – fez ele, colocando-lhe um dedo sobre os lábios e
a surpreendendo com o gesto. Ela estava tão atordoada que não
percebera que ele havia se levantado e estava agora parado ao
seu lado, com um lençol envolvendo a cintura. – Não precisa
dizer nada, não precisa se explicar. Não há ninguém para
julgar ou ser julgado aqui. Não deixe a velha moralidade
católica cobrir de pecado e vergonha algo tão absolutamente
belo e puro como o que houve esta noite.
Era Mulder falando. Mulder com seus psicologismos, lendo sua
mente e dissecando suas emoções. Delicadamente, ele ajeitou
uma mecha de cabelos vermelhos que insistia em cair-lhe sobre
os olhos e sorriu um sorriso luminoso que dissipou todas as
angústias que consumiam o coração de Scully.
- Vá! Já é tarde e Amy está sozinha. – ele completou, dando-
lhe um delicado beijo na testa.
- Mamãe... – a vozinha sonolenta de Amy no quarto a arrancou
diretamente das lembranças de volta para o tempo presente.
Antes de deixar o banheiro, ela ainda sorriu para sua própria
imagem no espelho ao lembrar das últimas palavras que ouvira
murmuradas na noite anterior quando deixava o quarto. "Ei, eu
te amo."
08:30 AM
Sentada no carro parado no estacionamento do motel, Scully
dava a Amy as últimas instruções sobre como se comportar.
Weird as observava parado de pé ao lado do carro a apenas um
passo de distância. Ainda não era capaz de compreender e
analisar tudo o que havia acontecido nas últimas vinte e
quatro horas. O que o havia impelido ao interior daquela
casa em chamas, diretamente para o local onde estava Amy? Por
que Dana Scully decidira lhe confiar o cuidado da menina
druante aquele dia, tão contrariamente ao que havia de mais
lógico e razoável? Sim, porque aquela mulher, pelo pouco que
pudera observar e pelo muito que ele acreditava compreender
da natureza humana, definitivamente, fazia o gênero "atitudes
lógicas e razoáveis". Mais, o que havia levado a mulher que
ela parecia ser, tão séria e recatada, a seduzir e entregar-
se por inteiro a um desconhecido como ele? Seria ela uma
ninfomaníaca em pele de puritana? Não, algo no interior de
Weird lhe dizia que não, que havia algo oculto em toda aquela
situação que ele ainda não conseguira distinguir. Ele reagira
à sedução da noite anterior como qualquer macho adulto da
espécie humana faria, por instinto, tesão. Mas por todo o
tempo em que haviam estado juntos, feito amor, aquela
sensação de dejá-vu que vinha sentindo desde a primeira vez
em que vira Scully no local do incêndio se tornara ainda mais
e mais intensa. Era como se fossem velhos conhecidos, antigos
amantes consumindo-se em um ato por muito tempo reprimido,
embora desejado e esperado por toda a eternidade. E, ainda,
por que em seus pensamentos a chamava de Scully e não Sra.
Scully, ou Dana, como a recém criada intimidade entre os dois
poderia permitir? Perguntas demais e nenhuma resposta. Tudo o
que sabia era que gostaria de poder permanecer com elas para
sempre. Ia perdido em devaneios, imaginando as coisas que
gortaria que fizessem juntos, os lugares que lhes mostraria,
as brincadeiras e gargalhadas que compartilhariam...
- Este homem a está incomodando, senhora? – perguntou o
policial que se aproximava, indicando Weird com a cabeça, a
mão direita já estrategicamente colocada sobre o coldre.
De súbito, Weird foi arrancado de seus devaneios pela dura
realidade de sua condição. Um mendigo, sem lar e sem destino,
sem passado nem futuro. Um ninguém. Menos que nada. O que
poderia lhes oferecer? E desatou a correr, tão rápido quanto
podia e ainda um pouco mais. Corria às cegas, as lágrimas
toldavam-lhe a visão. Mas era melhor assim. Melhor não ver
por onde ia, para não saber como voltar.
T O B E C O N T I N U E D . . .
