Delicadeza
Leah pensava. Olhos voltados para a rua, de pé em frente à janela, numa madrugada quente de agosto. Corpo coberto por uma velha camiseta. Cama ocupada. Outro corpo, tão diferente do seu: grande, rechonchudo, branco. De bruços, o rosto virado para a parede oposta do seu quarto. Cabelos vermelhos e sardas. Sono pesado e ronco baixo. O oposto do avesso.
Ele contava piadas. Ela não tinha senso de humor. Ele era a própria definição do superlativo, e ela, tão econômica. Ele falava com todos e guardava cada frase. Ela engolia as palavras e fechava os ouvidos. Ele sorria muito. Ela estava sempre séria. Um dia, ao final do expediente, ele lhe disse boa noite, como sempre. Ela murmurou "obrigada", de modo usual. Ouviu a porta abrir, fechar e abrir, novamente. Logo depois, lá estava ele, parado em frente ao seu balcão. Apoiou o cotovelo e disse: "Você tem dentes?" Ela riu. Pergunta descabida, feita com a expressão mais compenetrada, mais séria que ela já o viu ter. Ele riu de volta. "É, tem", respondeu.
A partir de então, o "bom dia" passaram ser acompanhados de "tudo bom com você?", seguidos de pequenos sorrisos por parte dela, largos por parte dele. Depois, acrescentaram-se paradas no balcão da recepção, para ajeitar a pasta ou anotar alguma coisa, com comentários sobre o tempo, o trânsito, o movimento do edifício. Pouco depois, um rápido bate-papo na volta do almoço tornou-se rotineiro. Ele lhe oferecia o sorvete que tomava, brincava dizendo o quanto recepcionista deveria ser um emprego entediante, e subia apressado para o seu andar, porque havia perdido a hora, debruçado no balcão, contando histórias engraçadas sobre o seu trabalho de contador.
As conversas rápidas tornaram-se longas. O pedaço de sorvete virou um inteiro e do seu sabor favorito. Os sorrisos tranformaram-se em risadas. E "Sr. Elliot" transformou-se em "você", seguido de "Timothy", e, por último, "Tim".
Na festa de Natal da empresa, Leah simplesmente esqueceu a agonia sentida o dia inteiro por ter de voltar para casa na semana seguinte, absorvida por piadas e conversas sem sentido. Esqueceu de dizer "não" quando ele lhe ofereceu uma carona após uma excepcional longa noite de trabalho. Esqueceu de recusar o convite para conhecer o lugar onde ele comprava o tal sorvete na hora do almoço. Esqueceu de tirar a sua mão de dentro da dele. Esqueceu de rejeitar a sua tentativa de beijá-la.
Quando Leah esqueceu, ela lembrou. Lembrou de tentar ser agradável com os outros. Lembrou de não julgar o sentimento alheio. Lembrou de rezar por seu pai. Lembrou de contar até 10. Lembrou que o mundo nada lhe deve. Lembrou de ligar para a sua mãe pelo menos uma vez por semana. Lembrou de dar um beijo de bom dia e outro de boa noite. Lembrou de todas as sardas do rosto dele. Lembrou como era se sentir leve.
De frente para a janela, Leah pensava: "Droga, aconteceu de novo". Ia doer, sim. Mas acontecerá diferente.
