Fim de tarde.
Minha túnica insistia em deslizar pelas minhas coxas enquanto entrelaçava minhas mãos por entre as minhas pernas. Mirava o horizonte do alto da montanha que quedava para o mar. A estrela pulsante morria a cada minuto, junto dos meus vagos devaneios. Uma lágrima desceu e se petrificou, rolando a minha pele rosada pela exposição demasiada a luz. Não estava acostumado a ficar tanto tempo admirando o local que para mim já era mais do que familiar. A costa do santuário no momento servia como único refúgio, já que poucos a visitavam. Queria a qualquer custo tocá-lo novamente, mas a timidez da minha juventude retornara junto do que já fora há algum tempo um corpo sem vida.
O sol já se foi. Dei-me conta alguns minutos depois que notei uma brisa percorrendo o meu corpo. Aquele arrepio foi o bastante para lembrar-me que estava vivo novamente. Pegando pedregulhos mirava o mais longe possível e tacava em direção ao mar. Estava me sentindo tão tonto com a sensação de vida, pois nunca me sentira assim antes. Só perto dele. Somente ele. Sempre ele. Pensei em rolar o gramado que descia pela colina e se cortava na areia. Não pensei nem duas vezes, estava tão nervoso, eufórico e impulsivo. Queria fazer tudo que não fiz. Deixei meu lado racional morto por alguns instantes e rolei a montanha que nem uma criança. Cheguei todo sujo ao fim, desvirando meu corpo e mirando o céu de braços abertos no meio dos milhares grãos de areia. Duas gotículas invadiram minha alma e transbordaram atingindo meus lábios que prontamente sequei pensando:
"hum, lágrimas são salgadas assim?"
Sorri. Por um momento voltei a razão e estranhei meu comportamento. Virei meu rosto e notei aquela mesma sombra que me visitava nos meus mais ternos sonhos. Planava numa bóia, esguichando água para cima, batendo as mãos no mar, com as pernas rebatendo na borracha, olhando para mim e sorrindo. A imagem de um Milo de catorze anos se esvaiu da minha mente quando pisquei inocentemente em resposta a seu sorriso. Encontrei-me deitado, de braços abertos, na praia dispersa pela noite que já havia chegado há algumas horas. Endireitei-me, mirando novamente o mar, ainda com um sorriso no rosto. Só vi o negro, as sombras das nuvens que ainda pairavam sob o céu. Nada de Milo. Nada de meu. Mas meu sorriso se desmanchava a cada minuto, ao saber que aquilo era apenas uma doce lembrança.
Meio perplexo ainda com a alucinação tão clara levantei-me novamente num súbito impulso. Era como se o coração dele me guiasse. Mas por medo, voltei ao santuário. Seus hábitos e desejos controlavam cada movimento na minha pele, como se quisessem acordar. Milo ainda estava em profundo sono, eterno por assim dizer. Athena não poderia ressuscitar todos os cavaleiros de uma só vez, e não teria certeza de que o poderia fazer. Mu e eu fomos os primeiros a abrirmos os olhos e depois fomos afastados do recinto em que jaziam os demais corpos. Mu não queria se desfazer de um corpo que ainda estava no local, mas não pode ficar. Voltando da costa, eu vi de longe ele e o virginiano se abraçando por trás das árvores gêmeas. Eles perceberam a minha presença, mas revirei os olhos e mudei de direção, não pretendia ser um incômodo. Meu olhar frio retornara a minha face. Imaginei como seria se Milo não retornasse. Só o pensamento me fulminou o coração, me ajoelhei e debrucei-me nas pedras que marcavam o caminho. Nem um suspiro. Levantei, limpei minhas vestes, e como um mito orgulhoso fui em direção a minha casa que estava completamente deserta. Não havia mais gritos, sorrisos e gargalhadas naquela casa gélida que com a sua presença ficava cada vez mais aconchegante. Fui de encontro a uma pilastra, à procura de apoio. Minhas pernas começavam a tremer, ainda estava fraco para voltar à rotina. E quem diria que teria uma vida sem aquela pessoa do meu lado?A memória me atordoava. Em todo esse tempo, juntos, amigos, uma única vez eu pude expor meus sentimentos.
"Por quê meu amigo?".
"Por quê? Milo me carregava pelas escadarias, chorando, se indagando o por que da minha traição. Eu, explodindo de remorso e culpa, ódio e dor, não poderia falar o que meus olhos mesmo pálidos podiam dizer".
"Athena morreu! Aquilo ecoou pela minha mente como uma dor profunda, agora não somente traidores, seríamos eternamente vingados no inferno pela tristeza amarga de não ter dito a verdade. Milo, num ato de fúria, me pegou pelo pescoço, tentando me estrangular. Podia ver mentalmente em sua face, quantas lágrimas escorriam por aquele rosto de anjo. Naquele mesmo minuto, segurei seus braços e o puxei lhe dando um beijo suave. Senti que ele fosse me matar. Afastou-se solenemente e se ajoelhou aos meus pés, me deixando sem reação. Só permaneci estático, paralisado. Após isso, sem demoras e sem demais explicações, fomos para o castelo de hades. Ele seguiu mudo. E eu nunca mais o vi desde então,já declarando o meu estado de óbito"
Lembranças, aquilo havia de ser pesadelo. Anseio por ver Milo, mas nem sequer imagino sua reação. Aproximei-me da sala em que Athena estava a reviver os corpos. Senti seu cosmo queimar mais uma vez, só que desta vez, senti um certo receio. Tinha medo e ao mesmo tempo rezava para que o escorpião voltasse a vida logo,mesmo que me rejeitasse. Olhei pela fresta da porta, após desvencilhar-me de alguns soldados. Percebi que Saori não mais estava no recinto. Vi longos cabelos azuis do outro lado da sala. Antecipei um passo, porém recuei no mesmo instante. Conhecia bem aquele cosmo, mas não era Milo. Saga me fitou descontente, ao perceber que não era quem eu esperava, viu a tristeza estampar minha face, mas me contemplou com um conforto apontando para uma porta. Eu corei violentamente, mas percebi que ele tinha lido meus pensamentos e se lembrava da então despedida. Fui até a porta, abrindo-a lentamente, mas logo me enraiveci:
"-Saga!Eu não quero ir no banheiro, seu palhaço!" Saga disparou uma risada, mesmo naquele ambiente fúnebre e apontou:
"-Não essa porta, aquela!" Totalmente envergonhado com a gafe,fui cabisbaixo em direção a porta,mas ainda assim eufórico para ver o que se encontrava atrás dela. Abrindo a pesada porta de madeira e pedra, eu pude ver a lua no seu mais alto tom, clareando tudo que tocava, inclusive o balanço da árvore que estava na montanha, neste mesmo jardim que acabara de adentrar. Todo gramado o jardim, com alguns bancos, cheio de flores e arbustos, e ao fundo, uma árvore, com um balanço. A porta se fechou sozinha, e pude ver a pessoa que se jogava contra o vento parar por alguns segundos e olhar em minha direção. Meu coração falhou com aquele olhar iluminado, mesmo sobre as penumbras da árvore na qual balançava...Gaguejei e pisei naquela grama fria,indo de encontro a pessoa que mais amava em todo o mundo:
-Mi...Mi..Milo...
Continua...
