As Lágrimas do Luar
- Vamos, Seiya! Vai ser divertido!
- Eu tenho certeza de que sim, cara. Mas eu tô cansado; vou pra casa mesmo...
- Beleza, então. Mas amanhã cedo, a gente passa no seu apartamento. Do futebol você não escapa!
Seiya riu enquanto recebia um soco amigável do amigo em seu ombro. Despediu-se com um rápido aceno para os colegas que se distribuíam em duas caminhonetes, sendo que vários se viam nas carrocerias dos veículos.
Os jovens buzinaram animadamente por diversas vezes, enquanto partiam para a segunda parte da comemoração.
À tarde, estiveram assistindo a uma partida decisiva do time de futebol para que torciam. Com a vitória do seu clube, beberam e comemoraram efusivamente até que o dono do bar demonstrou claramente que preferia que aqueles rapazes baderneiros dessem prosseguimentos às suas comemorações em outro lugar.
Os rapazes, sem que fosse necessário discutir muito, logo decidiram ir para outro local dar continuidade à farra. Após alguns minutos em que sugestões eufóricas foram expostas, todos decidiram por ir à praia, onde planejaram beber e se divertir até amanhecer.
- Eles realmente acham que vão conseguir jogar bola depois de uma noite dessas? – o jovem de cabelos castanhos ria de leve, enquanto via os colegas de faculdade sumirem de seu campo de visão. Quando finalmente se viu sozinho, conseguindo inclusive ouvir seus próprios pensamentos, decidiu ir para casa.
Não estava com sono ou cansado, como tinha alegado. Contudo, sentia uma necessidade de ficar sozinho.
Era difícil explicar o motivo, mas, nos últimos tempos, sua vida não lhe parecia o bastante. Tinha tudo o que um rapaz da sua idade poderia desejar; estava na faculdade, à qual conseguira ingressar devido a uma bolsa adquirida graças ao seu talento no futebol... Era o capitão do time, não decepcionando ao mostrar que podiam confiar em seu talento... Nas outras matérias, esforçava-se o bastante e conseguia, pelo menos, as notas médias para ir levando seu curso...
Estava até próximo de se formar; e já havia propostas para entrar em importantes clubes de futebol... Fazia um enorme sucesso com as garotas... É; ele realmente não podia se queixar de nada.
Entretanto, havia um vazio. Era um vazio que ele não sabia como preencher, mas estava lá e, a cada dia que se passava, era mais difícil ignorá-lo.
Não falava a respeito disso com ninguém. Acabaria passando por idiota se o fizesse. O que ele diria? Que tinha tudo o que poderia querer e, ainda assim, era insatisfeito? Que, mesmo estando numa posição certamente invejada por muitos, ele ainda gostaria de ter algo mais?
Definitivamente não era uma boa ideia se expor assim. Então, tentava simplesmente calar esse vazio crescente em seu peito. Até por que, se lhe perguntassem o que faltava, Seiya não saberia dizer.
Era madrugada e as ruas estavam desertas. O rapaz caminhava pelas calçadas com a cabeça baixa e os pensamentos longe. Estava sóbrio, pois embora estivesse no bar com seus amigos, não tinha sentido vontade de beber. Por algum motivo, nesses dias em que se sentia tão perdido, permanecer consciente parecia algo essencial. Isso significava que embebedar-se não era, obviamente, uma opção.
Ia andando, sem pressa de chegar ao seu apartamento, quando passou por uma livraria que, apesar do horário, ainda estava aberta.
Sem pensar demais, o rapaz entrou ali. E, como era de se esperar, a loja estava vazia.
Na verdade, o local era uma espécie de sebo. Livros diversos, mas antigos, viam-se completamente desorganizados em prateleiras ou jogados sobre algumas mesas dispostas de forma aleatória no ambiente.
- Como é que alguém consegue encontrar alguma coisa por aqui? – o rapaz se perguntou enquanto passava os olhos pelos livros. Não tinha o costume de ler e, na verdade, sentia que estava lá apenas para matar o tempo...
Foi passeando os olhos pelos livros que um deles acabou por lhe chamar a atenção. Era um livro de cavalaria bastante antigo, que Seiya logo tomou em suas mãos para vê-lo melhor.
- Gosta de histórias de cavalaria? – uma voz atrás de si assustou-o, por não ter se dado conta de quando aquele homem havia aparecido.
- Eu... gosto. Ou melhor, gostava. Quando era mais novo, eu curtia essas coisas de cavaleiros da Távola Redonda...
- Interessante. – o homem se colocou ao lado de Seiya, pegando o livro de suas mãos com naturalidade e analisando-o como se o estivesse vendo pela primeira vez.
A loja parecia mais escura que as ruas, que, ao menos, eram clareadas pelos postes de iluminação. Lá dentro, entretanto, toda a luz provinha de uma mesma fonte, que ficava na parte central do teto. Não era uma lâmpada muito potente e a luz amarelada que se derramava dela dava um aspecto melancólico ao ambiente.
Devido a isso, Seiya mal conseguia ver o homem a seu lado. Pôde apenas constatar que se tratava de um homem não muito velho, uns quarenta anos mais ou menos, alto e magro, careca e com um cavanhaque.
- Vai querer levar? – o homem perguntou subitamente, depois de alguns instantes em silêncio.
- Não, eu só estava olhando.
- Tem certeza? Acho que você pode gostar desse livro.
- Eu já passei dessa fase. Livros de fantasia não fazem mais o meu estilo...
- Vamos fazer o seguinte. Eu vou deixá-lo ler um pedaço do livro, antes que se decida.
- Eu já me decidi; não estou interessado em...
- Sente-se aqui. – o homem puxou Seiya pelo braço, sem dar a ele tempo de reagir, e o acomodou sobre uma cadeira – Fique aí, confortável, lendo o livro. Vou cuidar de umas coisas lá dentro, então você terá toda a privacidade para ler.
- Meu senhor, olha só... – Seiya começou a falar, mas o homem deu-lhe as costas sem permitir que continuasse. E, conforme havia dito, seguiu para algum lugar mais afastado, entrando mais para dentro da loja.
- Cara esquisito. - suspirou e olhou o livro que tinha em mãos. Era justamente uma das obras relacionada à história do rei Arthur e de seus cavaleiros. O jovem acabou sorrindo. Aquilo lhe trazia um sentimento gostoso de nostalgia. Realmente, tivera uma fase em que gostara de ler histórias de cavaleiros, imaginando-se um cavaleiro com armadura, espada e escudo, salvando princesas e castelos...
Mas como na vida real não parecia haver espaço para heroísmos cavaleirescos, terminou por se dedicar mais intensamente a outra paixão: jogar futebol.
Era bom naquilo, era excelente com uma bola nos pés, e o sucesso logo veio, fazendo justiça a ele. As garotas torciam ao vê-lo jogando, os rapazes o admiravam e toda a glória que gostaria de alcançar como cavaleiro, sonhada na infância, parecia chegar até ele como jogador de futebol.
No fundo, acreditava que seu sucesso vinha da forma como encarava cada jogo. Não é porque havia deixado seus sonhos de cavaleiro para trás que não podia se imaginar como um enquanto disputasse uma partida. Afinal, julgava que os mesmos valores estavam valendo em um jogo de futebol. Deveria haver lealdade entre os companheiros, liderança, vigor, honra, esperança, um objetivo a ser alcançado, uma vitória pela qual se deveria lutar com todas as forças, com toda a garra, mas sem nunca desmerecer o oponente... Deveria envolver estratégia, mas também sentimento... Enfim, era uma batalha. Cada jogo era, para Seiya, uma verdadeira luta de vida ou morte.
Possivelmente, por dar o sangue em cada partida é que ele houvesse se tornado tão bom.
Sorrindo com esses pensamentos, o rapaz começou a folhear o livro que estava em suas mãos. Os cavaleiros estavam em busca do Santo Graal para trazer a paz ao reino...
Seiya alargou o sorriso. Nas poucas linhas que leu, já se sentia bem. Impressionante como certas lembranças, ao serem acionadas depois de tanto tempo, são capazes de trazer sensações reconfortantes.
Talvez por isso, o rapaz sentiu seu corpo relaxar, como há algum tempo não acontecia. E um cansaço, que pareceu surgir de repente, começou a dominá-lo. Recostou-se mais na cadeira e, percebendo-se vencer pelo sono iminente, fechou os olhos.
Despertou sobressaltado, quando sentiu uma mão pousar-lhe no ombro:
- Ei, rapaz. Acorde.
Seiya abriu os olhos castanhos de uma vez e, tenso, olhou para os lados. Mas não conseguia ver muito, devido à escuridão que o rodeava:
- Onde eu estou? – perguntou um pouco alarmado.
- Calma, meu jovem. Está tudo bem.
A parca claridade não lhe permitia ver muito, mas o homem que lhe falava se aproximou e pôde reconhecer nele o vendedor da loja.
- Ah, desculpe... Eu acabei dormindo. – pegou o livro que estava em seu colo e o estendeu para o homem – Tome; eu não vou levá-lo. E agora preciso ir para casa... – falava enquanto se levantava da cadeira. No entanto, a escuridão, que parecia maior do que se recordava, o impedia de seguir para qualquer lugar.
- Tudo bem. – o homem pegou o livro da mão do outro – Vou guiá-lo lá para fora.
O homem começou a caminhar sem pressa e Seiya se pôs a segui-lo. Ele parecia ir em direção a um pequeno facho de luz que era a única fonte de iluminação ali e que, diferente do que o rapaz se lembrava, não vinha do teto.
À medida em que seguiam aquele trajeto, que pareceu maior do que o tamanho daquele sebo, Seiya começou a se preocupar:
- Que... Que lugar é esse?
O jovem de cabelos castanhos nem sabia explicar o que acontecia; sabia apenas que algo não estava certo ali. Afinal, a escuridão ia diminuindo enquanto caminhavam, o facho de luz ia se tornando maior e a visão começava a lhe permitir ver que não estavam mais no sebo de livros.
- Está preocupado porque os livros sumiram? – perguntou o homem, com uma voz muito tranquila e caminhando sem olhar para trás.
- Não foram só os livros que sumiram! – Seiya olhava para os lados, para o que começava a parecer uma gruta – Ok, o que está havendo aqui? Você me drogou, cara?
- Não. – a resposta foi simples. E, agora que já era possível enxergar perfeitamente, Seiya percebeu que estavam os dois à entrada de uma gruta. O rapaz estancou o passo nesse instante, recusando-se a seguir caminho.
- Chega. Eu não sei o que você fez, mas eu não vou sair daqui até voltar a mim. Não estou a fim de viajar nessa droga que você me deu...
- Eu já disse que não te dei nada, garoto. Agora, quer parar de teimosia? Se deseja voltar para casa, tem de vir comigo. – respondeu o homem, com um semblante severo.
Seiya não sabia por quê, mas aquelas palavras lhe trouxeram um súbito mal-estar. Era como se, de repente, soubesse que voltar para casa não seria algo corriqueiro e banal, como deveria.
O homem deu as costas para o jovem e voltou a caminhar, saindo da gruta. Seiya ainda permaneceu parado, onde estava, mas, ao se ver sozinho, aquele lugar se fez sombrio e assustador demais. Então, acabou se apressando para alcançar o outro.
Saindo da gruta, Seiya pôde ver que era noite. Mas uma noite clara, fortemente iluminada pela luz da lua cheia.
O homem que o guiara até ali estava parado, esperando por ele. E, junto ao homem do sebo, havia mais quatro pessoas.
- Tá, beleza... o que é que está acontecendo aqui afinal? – perguntou o rapaz, uma vez mais, tentando se situar numa situação que lhe parecia surreal.
- O grupo agora está completo. – o homem virou-se para os outros quatro, depois de Seiya chegar – Vocês podem sair agora.
- Espera um pouco! Que diabo é isso? Alguém pode me explicar o que está acontecendo? – Seiya repetia, agora mais exaltado.
- Esse é o cavaleiro que estávamos esperando? – um dos quatro, o de longos e lisos cabelos negros, manifestou-se.
- Sim. Agora, vocês dispõem de todas as armas necessárias para obterem sucesso.
- Cavaleiro? Mas o quê... – só então, ao olhar para seu próprio corpo, Seiya se deu conta de que estava vestido como um cavaleiro medieval. Usava uma cota de malha, por cima da qual vestia uma túnica vermelha. Tinha um escudo preso ao braço esquerdo e uma espada embainhada à sua cintura – Caralho! De onde veio tudo isso?
- Ele tem um linguajar estranho. – riu o que parecia ser o mais jovem, com cabelos cor de esmeralda.
- Cara, o que é isso tudo? – Seiya adiantou-se e apertou com força o braço do homem que o levara até ali.
- Como é a quinta vez que sou obrigado a explicar, darei apenas a versão resumida da história. – disse o homem, parecendo impaciente para ir embora – Você está em outra terra, meu rapaz. Uma terra que, no seu mundo, seria considerada encantada.
- Eu estou numa terra encantada? – Seiya riu – Que coisa ridícula. Por acaso, existem unicórnios e fadas por aqui? – falou, de troça.
- Existem. E dragões e ogros também, então não faça pouco caso disso tudo. – o homem foi sério em suas palavras.
O jovem de cabelos castanhos engoliu em seco e olhou para os outros quatro. O de cabelos esmeralda lhe sorria gentilmente, enquanto o de cabelos compridos e negros parecia querer investigar sua pessoa, com um olhar penetrante.
Havia também um loiro, cuja expressão não dizia absolutamente nada e, ao olhar em seus olhos tão frios, Seiya sentiu um frio a percorrer-lhe a espinha, amedrontando-o.
E o quarto homem, cujos cabelos pretos tinham um tom azulado, possuía uma aparência selvagem, nitidamente hostil e que sequer se dava ao trabalho de olhar em sua direção, parecendo mais interessado em contemplar a lua.
- Bom, não há muito o que explicar. Você certamente viu filmes e leu livros no seu mundo com histórias assim. Você veio para uma terra mágica, há uma missão da qual terá de participar, há aliados com quem deverá contar para ajudá-lo... – o homem falava como se nada daquilo fosse realmente importante, mas Seiya sentia um frio na barriga ouvindo a tudo aquilo, que sentia ser despejado sobre si sem a devida preparação.
- Ei, calma! Pera lá! Explica isso devagar, tá? Não é porque eu conheço histórias assim que você pode sair jogando tudo isso em cima de mim, desse jeito!
O homem passou a mão por seu cavanhaque, enquanto fitava a figura nervosa de Seiya:
- Eu já disse que não há segredos, rapaz. Você foi trazido para cá porque tem de cumprir uma missão que...
- Tá bom. Daqui a pouco vai dizer que existe uma princesa que eu preciso resgatar... – a voz de Seiya era cheia de sarcasmo.
- Na verdade, é exatamente isso que eu vou lhe dizer. – o homem respondeu sem se alterar – Meu rapaz, veja bem. Estamos nas terras de Nalur. Uma terra mágica que entrou em colapso. A princesa herdeira dessa terra, Saori Kido, desapareceu. Era graças a ela que havia harmonia entre todos os mundos.
- Ela foi sequestrada?
- Ela simplesmente desapareceu. E o motivo não importa, porque você está aqui para ajudar a conter o caos que se está instalando em tudo. – o homem do cavanhaque foi categórico.
- O pai de Saori não aceita o desaparecimento de sua filha. Por conta disso, está castigando a tudo e a todos. – o homem de cabelos compridos e olhos de um verde muito escuro explicou, com a voz serena e pausada.
- Quem é o pai dessa garota? – Seiya indagou.
- O Céu. – o jovem de cabelos de esmeralda foi quem respondeu.
- O Céu? Mas como... que coisa louca! – o jovem vestido de cavaleiro falou, sem saber se ria ou se revoltava com aqueles absurdos – E que tipo de castigo o "Céu" está infligindo às pessoas? – perguntou Seiya, ainda incrédulo de tudo aquilo.
- A desarmonia dos mundos. É o Céu quem guarda e separa cada mundo, deixando-o em seu devido lugar. Mas agora, ele não está mais interessado nisso. Desde que a princesa Saori sumiu, os mundos colidiram e começaram a se misturar. – o homem sem cabelos explicava com pressa, e Seiya não se sentia à vontade para se deixar levar por todas essas histórias.
- E como é isso... Como é esse negócio de colidir e misturar...? – o rapaz de cabelos castanhos ainda parecia tentar juntar os fragmentos de informações que recebia.
- Cada mundo vive uma realidade apenas sua, cavaleiro. – foi a vez do loiro se pronunciar, com sua voz tão gélida quanto sua aparência fria – Todos, certamente, já ouviram falar dos outros mundos, às vezes até mesmo convivendo com eles em esparsos momentos. Mas, mesmo assim, cada mundo é o centro de sua realidade.
Seiya ficou olhando para o loiro e tentando entender o que ele dizia. Mas a confusão em seu rosto entregava o quanto ele estava perdido. Por isso, os olhos claros e frios demonstraram enfado: - Ele não compreende. Ainda não entendo porque preciso me juntar a esses que me servirão apenas de fardo durante a busca...
- Eu já disse que todos serão necessários em algum momento. – o homem do cavanhaque falou, nada satisfeito com a forma como o loiro se pronunciou.
- Reconheço que esses dois – apontou com os olhos azuis para o homem de negros cabelos longos e para o de olhos cor de esmeralda - podem me ser até úteis. Mas os outros... – o loiro cruzou os braços, altivamente, e fez uma expressão descontente.
O homem de aspecto mais selvagem riu, levantando-se do tronco de árvore seco em que estava até então – Acha-se mesmo o centro de tudo, não? Acontece que esta não é a sua realidade... Então, loiro... Se eu fosse você, tomaria mais cuidado com o que diz. Porque, em Nalur, a sua realidade não é o centro de tudo. Sabe muito bem o que isso quer dizer, não? – aproximou-se ameaçadoramente do outro, enquanto, com as palavras, parecia desafiar o elegante homem loiro, que respondeu com um simples arquear de sobrancelha.
- Por favor, alguém pode me explicar que droga é essa de mundos, centros das realidade e sei lá mais o quê? – Seiya tentou chamar a atenção.
- Cavaleiro. – o de cabelos lisos e compridos se aproximou e, com a voz tranquila, começou a explicar – Cada um nós vem de um mundo distinto. Entretanto, o fato de esses mundos serem fisicamente separados, não implica que estejam desconectados. Em verdade, são mundos até semelhantes em alguns aspectos, mas que podem ter características mais ressaltadas devido à realidade que mais forte se manifestar nele. – percebendo que a confusão não abandonava os olhos castanhos, o homem sorriu singelo e, jogando os longos cabelos para trás, pareceu buscar uma nova forma de se fazer entender – Você é um cavaleiro. É humano, correto?
- Sim. – Seiya respondeu como se essa fosse a coisa mais óbvia do mundo, sem entender aonde ele queria chegar.
- E como é o seu nome, cavaleiro humano?
- Seiya.
- Muito prazer, Seiya. Meu nome é Shiryu. E eu não sou humano como você.
- Não... não é?
- Não. Eu sou um mago. Mas venho de um mundo em que há humanos também. Ou melhor, sabemos da existência de humanos, mas não interagimos com eles por... ahn... – o rapaz de cabelos negros pareceu pesar a melhor forma de dizer isso – Por acharmos que os humanos não conseguiriam compreender muito bem a nossa existência.
- Você é um mago? Tipo um feiticeiro? – Seiya tinha os olhos arregalados e então olhou para os outros três – Eles também são feiticeiros?
- Por acaso, eu pareço um feiticeiro, humano? – quando Seiya viu, o homem de aparência rude e hostil estava muito próximo, tendo se movimentado de forma assustadora e rápida demais.
- N-não... – gaguejou o jovem, cujos olhos castanhos refletiam o susto sofrido.
- Ótimo. – foi o que o homem de cabelos azulados disse antes de se afastar e voltar a se sentar no tronco, parecendo incrivelmente desinteressado de tudo aquilo.
- Esse é Ikki. – Shiryu continuou a falar – Ele é um lobisomem.
Seiya, surpreso com essa revelação, olhou para o tal Ikki de cima a baixo e constatou, mais apropriadamente, que realmente ele era bem diferente de Shiryu. Enquanto o mago vestia-se todo de preto, com um manto verde-escuro ricamente bordado por cima, Ikki usava uma camisa branca bastante simples e uma calça preta muito surrada.
- Mas ele não parece mais que um camponês nesses trajes, certo? – o loiro falou, enquanto ria levemente, de forma esnobe.
- Esse é o Hyoga. Ele é um vampiro... E, como você deve ter percebido, vampiros e lobisomens não se dão muito bem. – Shiryu prosseguiu, enquanto Ikki lançava um olhar atravessado para o loiro.
- É, eu... já tinha ouvido falar... – Seiya respondeu enquanto analisava a figura de Hyoga. O loiro possuía um ar aristocrático e vestia-se de acordo, como se houvesse saído de algum dos filmes que o rapaz de cabelos castanhos já tinha visto. As roupas do loiro pareciam vindas diretamente do século XVIII, com todas as afetações típicas da época, formando um conjunto azul-marinho refinado e elegante.
- E eu sou o Shun. – o mais novo se aproximou para se apresentar, estendendo sua mão a Seiya – Sou um elfo.
Seiya olhou para o rapaz à sua frente e notou que suas roupas, assim como suas feições, tinham algo de etéreo. A túnica de um tecido tão leve e verde-água ajudava a compor um quadro bastante suave, que era exatamente a sensação que o toque daquela mão lhe transmitiu: suavidade.
- Caramba... eu estou até meio tonto... – falou o jovem vestido de cavaleiro – Eu não sabia que "vocês" – falou num tom que indicava não saber por que palavras chamar aqueles homens – viviam todos numa mesma realidade. Bom, quero dizer... já vi em vários filmes que vampiros e lobisomens coexistem numas histórias; e magos e elfos em outras... Mas tudo junto e misturado é até mesmo...
- ...Caótico. É disso que estamos falando. – o homem do cavanhaque chamou sua atenção - Perceba, rapaz... Em seu mundo, você já tinha ouvido falar de mundos em que todos esses seres existem. Às vezes, até mesmo com esses seres fantásticos compartilhando da mesma realidade... Pois bem; e se eu lhe disser agora que esses mundos são reais? E se eu disser que eles não foram fruto exclusivamente de mentes férteis?
- Como assim...?
- Em seu mundo, meu rapaz, há histórias a respeito desses mundos porque, eventualmente, alguns desses seres sobrenaturais apareceram em sua realidade. Não é comum nem frequente, mas ocorreu. E as pessoas que vivenciaram contatos com esses seres fantásticos contaram suas histórias que acabaram por se tornar mitos, lendas. Aliás, hoje, em seu mundo, esses seres não passam de elementos de ficção porque as histórias, contadas de gerações em gerações, permaneceram. Mas as visitas dos seres desses outros mundos foram ficando escassas em sua realidade e é por isso que atualmente elas se limitam a histórias fantasiosas, nas quais não se crê mais.
- Você tá querendo me dizer que todas essas histórias que eu já ouvi não surgiram do nada? Quer dizer então que vampiros, lobisomens e magos já apareceram no meu mundo? – Seiya questionou, mostrando-se entusiasmado com isso.
- E elfos também... – Shun acrescentou.
- É, tá... mas é que elfos não são tão legais quanto vampiros e lobisomens, por exemplo. – Seiya falava enquanto pensava nos vários filmes que já tinha assistido com esses seres e que, por vezes, imaginara como seria interessante se eles realmente existissem.
- Você gosta de vampiros e lobisomens...? – agora tinha sido Hyoga quem havia se aproximado rapidamente, mal dando tempo a Seiya de pensar numa resposta.
- Gosta daquilo que pode matar você...? Engraçado; você deveria era ter medo... Muito medo. – do outro lado, era Ikki quem aparecia subitamente, deixando Seiya encurralado entre os dois.
- Parem com isso. Não temos tempo para essas coisas agora. – foi Shiryu quem falou, e tanto Hyoga quanto Ikki se afastaram, sorrindo com a expressão de temor que haviam levado ao rosto de Seiya – Cavaleiro, o que estamos tentando lhe explicar é que todos os mundos sabem da existência dos outros. Inclusive o seu. Entretanto, em sua realidade, os outros mundos são vistos como fruto da imaginação e fantasia. Devido a isso, o canal de comunicação com outras realidades foi-se tornando mais fraco. Daí vem a dificuldade de conexão da sua realidade com as outras.
- Está me dizendo que o que os impede de irem para a minha realidade é o fato de nós não acreditarmos em vocês?
- Basicamente, sim. – finalizou Shiryu.
- Poxa, mas... é difícil acreditar nessas coisas... mundos de magia... coisas sobrenaturais... – justificou-se Seiya.
- Na verdade, o seu mundo também é mágico. – atalhou Shun – O problema é que, na sua realidade, as pessoas optaram por racionalizar tudo. Mesmo assim, pequenos milagres ocorrem todos os dias. Há magia no seu mundo também, cavaleiro. – sorriu o elfo.
- Que tipo de magia?
- Ora... quando duas pessoas se apaixonam... quando uma esperança perdida é recobrada... quando uma criança nasce... quando uma pessoa sobrevive a difíceis provações...
- Ah, por favor! – Seiya interrompeu Shun – Está querendo me dizer que isso é magia? Que essas coisas normais são milagres?
- Meu caro, é assim que a magia começa a se perder. – Shiryu falou, em um tom decepcionado – A partir do momento em que você deixa de ver a mágica que ocorre diante de seus olhos, todos os dias, então... é aí que ela começa a se perder de fato. Houve uma época em que o seu mundo transbordava de magia, como o nosso. Mas os humanos passaram a considerar tudo aquilo tão banal que, sem que pudessem perceber, foram perdendo sua magia, pouco a pouco. Até que chegaram ao ponto em que estão hoje.
- E, de toda a magia que uma vez existiu, tão exuberantemente em seu mundo, restaram apenas essas histórias, lendas, mitos, marcando um saudosismo de algo que vocês mal se recordam de terem vivido... – Shun disse, com a voz triste.
Seiya se calou, parecendo sentir a tristeza do elfo em sua pele. E aquela sensação de vazio, que o vinha acompanhando nos últimos dias, se fez ainda mais forte.
- Não fique assim, cavaleiro. – Ikki se manifestou – Esses elfos adoram exagerar em tudo. Eles pregam a mágica no amor e na harmonia como condições essenciais a um mundo ideal, mas... nem todos seguem essa fórmula.
- Por incrível que pareça, ele está certo. – Hyoga continuou, dirigindo-se a Seiya – Os mundos dos vampiros e dos lobisomens não perderam a magia, e não seguimos o caminho que os elfos julgam ser melhor.
- Não são apenas os elfos que acreditam nisso. – o mago cruzou os braços sobre o peito, olhando de forma repreensiva para os dois.
- Certo, os feiticeiros também acreditam nisso. Mas tanto faz; os magos sempre se acharam donos da verdade. Algo que eles não são. – Ikki olhou ferozmente para Shiryu, que permaneceu com o semblante inalterado.
- O que esse ser primitivo está tentando lhe dizer é que você não deveria ficar tão preocupado, cavaleiro. – Hyoga prosseguiu, com sua voz calma e fria – Meu mundo e o seu, por exemplo, não são tão diferentes. O que os distingue é que, na minha realidade, a magia ainda é mais forte. Mas, fora isso, a sede pelo poder, a ambição, o desejo de ser maior, de vencer, de conquistar... Isso é igual. Então, não se preocupe se o seu mundo perder a magia relacionada aos sentimentos enfadonhos que o elfo e o mago tanto exaltam. Porque, enquanto houver em seu mundo as características que acabei de enumerar, vocês ainda têm a chance de desenvolver um outro tipo de magia, futuramente. E, acredite-me... o poder que vem da natureza mais egoísta do homem pode ser muito mais forte do que imagina... – o loiro falava com uma voz que seduzia, com palavras tão venenosas quanto atraentes.
- Que interessante... um vampiro se reconhecendo como igual a um humano? Pensei que vissem neles apenas o alimento de vocês... – provocou Ikki.
- Quem os enxerga assim são vocês. – Hyoga respondeu secamente – Às vezes, há um ou outro com o qual é possível se divertir...
- Ambição nunca foi o problema. – Shiryu novamente cortou os outros dois – O problema é como vocês executam suas ações para atingir seus objetivos. – o olhar do mago era duro para o vampiro e para o lobisomem, que se calaram. Depois, voltou-se para Seiya – Cavaleiro, ignore o que eles dizem. Como Shun bem colocou, em seu mundo, ainda há magia. E muito dessa magia ainda é boa. Devem apenas se preocupar para que ela não se desvirtue e se transforme na magia que prevalece nos mundos tomados pelas trevas, como nos em que eles vivem. – apontou com os olhos para Ikki e Hyoga.
- Eles... eles usam humanos para se alimentar? – perguntou, olhando para os dois que se afastavam um pouco agora.
Shiryu olhou para Shun e ambos pareceram não se sentir à vontade para explicar essa parte. O homem com o cavanhaque então olhou em seu relógio de pulso e bufou:
- Eu explico. Meu jovem, pense em cada mundo como uma realidade paralela, está bem? Em todas elas, há a possibilidade de existência de todos os seres: vampiros, lobisomens, elfos, magos, fadas, ogros, sereias, humanos... Contudo, em cada mundo, um desses grupos se vê como o centro da realidade. Você, por exemplo, vive em um mundo no qual os humanos são o centro de tudo. Hyoga vive num mundo em que os vampiros dominam a realidade. Shiryu faz parte do mundo em que prevalecem os magos... Entendeu até aqui? – o homem careca inquiriu, de forma impaciente.
- Sim. – Seiya respondeu, porque o homem, com os olhos, exigia-lhe essa resposta.
- Pois bem. Sendo cada um desses mundos uma realidade à parte, o grupo que está no centro desse mundo poderá perfeitamente coexistir com outros seres. Bastará que se acredite neles. No mundo de Shiryu, por exemplo, magos coexistem com elfos, vampiros, lobisomens, fadas, e todos os outros seres que você imaginar. Isso porque eles sabem da existência dos outros seres e acreditam neles.
- Tá, isso eu acho que entendi... Todos vocês coexistem porque acreditam na existência uns dos outros... e nós, humanos, por não acreditarmos de verdade em vocês, não compartilhamos nosso mundo com vocês. Pelo que compreendi, é por causa da nossa descrença que não existe um canal que permita que os seres de outros mundos venham até nós, e é por isso que não coexistimos. Estou correto?
- Mais ou menos... – Shun respondeu, timidamente.
- O que eu não entendo é isso. Se o canal que meu mundo tem com outras realidades é fraco, porque não acreditamos em vocês, então, da mesma forma como vocês não podem vir até o meu mundo, os humanos também não deveriam sair da nossa realidade para ir a outras, certo?
- Certo. – Shiryu respondeu com firmeza.
- Então... como é que há humanos na realidade de vocês? Nós não convivemos com vocês, mas vocês podem conviver conosco? A ponto de os humanos servirem de comida para aqueles caras? – Seiya apontou revoltado para Ikki e Hyoga, que escutavam ao que ele dizia sem demonstrarem qualquer comoção – Que diabo de canal é esse, que parece não deixar vocês virem até nós, mas permite que humanos cheguem até o mundo de vocês?
- Não é nada disso, garoto. – o homem passou a mão pela careca e suspirou – Os humanos da sua realidade e os que existem nos outros mundos são diferentes.
- Diferentes? Ah, fala sério... Como assim?
- Os humanos que existem na minha realidade, assim como os elfos, vampiros, lobisomens, ogros e todo o resto, apenas existem na medida em que permitimos que eles existam, cavaleiro. – Shiryu tornou a explicar – Eles existem; e são fortes ou fracos na medida em que permitimos que eles sejam. É como se eles tivessem sido criados pela nossa consciência, tendo sua existência permitida pela nossa vontade e necessidade, uma vez que precisamos da existência de todos para um balanceamento e equilíbrio perfeitos.
- Peraí! Então os humanos do seu mundo não são reais?
- Eles são reais, cavaleiro. – a voz de Shiryu vinha envolta em uma grande paciência – Nós acreditamos que eles sejam reais, então eles são.
Seiya ficou confuso com essa afirmação e o homem de cavanhaque voltou a falar:
- Rapaz, se em seu mundo as pessoas acreditassem verdadeiramente em vampiros e lobisomens, por exemplo, isso não significa que os verdadeiros vampiros e lobisomens sairiam de seus mundos para invadir o seu.
- Com certeza, não! – Ikki se manifestou.
- Definitivamente não. – Hyoga acrescentou.
- O que existiriam seriam vampiros e lobisomens criados pelas crenças de vocês. Os humanos teriam sua própria visão a partir das visitas que recebessem desses seres mágicos e do ocasional contato com eles. Porque não haveria invasão; mas visitas, bem... essas aconteceriam tranquilamente. Sendo o canal de conexão forte o bastante, nada impediria que vampiros e lobisomens de outros mundos aparecessem, vez ou outra.
- Mas eles viriam só para... visitar. Certo? Eles não iriam se alimentar das pessoas do meu mundo, porque eles já têm o bastante nos deles... não é? – Seiya indagava, tentando ver se finalmente compreendia tudo aquilo.
- Ah, cavaleiro... uma viagem dessas cansa. Acha mesmo que faríamos a travessia só para olhar para vocês? – Ikki atestou.
- Mas... mas... – Seiya olhava para Shiryu, para Shun, para o homem careca, parecendo mais perdido – Vocês me disseram que não haveria invasão!
- E não haveria, garoto! Não está prestando atenção no que eu falo? Eu disse que eles não invadiriam, mas poderiam visitar e fazer o que bem entendessem.
- Se poderiam fazer o que bem entendessem, o que os impediria de invadirem e dominarem meu mundo?
- É impossível. – Shun tomou a palavra, com a voz suave – Cada mundo tem um grupo como sendo o seu centro. Os outros não passariam jamais de visitantes. Inclusive, se o grupo central de uma realidade deixar de crer na existência dos outros, esses outros deixam de aparecer por lá. É o que ocorreu na sua realidade, cavaleiro...
- Exato. E isso só prova o quanto o grupo central de um mundo é mais poderoso, a ponto de aniquilar a existência dos outros com seu simples poder de crença. – disse Shiryu.
- Não sei... vocês não me convenceram... vai que isso é possível... – Seiya se mostrava desconfiado com tudo o que ouvia.
- Se fosse possível, os vampiros ou os lobisomens teriam conseguido, Seiya. – Shiryu continuou – Os mundos deles vivem em constante guerra porque, por diversas vezes, um grupo tentou dominar o mundo do outro. Porém, nunca conseguiram.
- E não foi por falta de tentativa. – Shun deixou um olhar triste para Ikki e para Hyoga – Em ambos os mundos, como forma de tentar criar formas efetivas de vencer o outro, eles criaram inimigos fortes para treinar suas habilidades em combates verossímeis...
- Não entendi...
- Vou colocar de forma que você entenda, garoto. – o homem de cavanhaque começou a dizer – No mundo dos vampiros, por exemplo, existem lobisomens como tantos outros seres. E, como nós já dissemos, os seres que existem em seu mundo serão fortes ou fracos, na medida em que for conveniente ao grupo central daquela realidade. Bom, os vampiros criaram lobisomens realmente fortes em sua realidade, contra os quais duelam seguidamente. É claro que a vitória, no mundo deles, é sempre dos vampiros. Com isso, eles tentam encontrar algum meio de subjugar os verdadeiros lobisomens. Já tentaram dominar a realidade deles. Mas é claro que saíram derrotados, pois no mundo dos lobisomens, são eles quem mandam.
Seiya olhou para Hyoga como se achasse um verdadeiro absurdo o que acabava de ouvir.
- Não me olhe assim. Eles fazem a mesma coisa. – o loiro apontou com a cabeça para Ikki.
- Os lobisomens também tentaram invadir o seu mundo? – Seiya questionou o vampiro.
- Tentaram, mas não foram capazes. Os vampiros que existem na realidade deles são muito fracos; se eles pensam que um dia irão nos vencer porque conseguem dominar as cópias malfeitas que projetam de nós em seu mundo... – o loiro parou para rir de forma provocativa – São dignos de pena...
- Não fale assim, loiro. Sabe que na última batalha, nós quase conseguimos...
- Realmente acha que estavam perto da vitória? Faz-me rir, lobo primário.
- Então... – Seiya interrompeu a discussão dos dois – Se nós, humanos, voltássemos a acreditar na existência de outros seres... os vampiros e lobisomens, elfos e magos que existiriam seriam apenas fruto da nossa imaginação? É isso?
- Sim. – Shiryu respondeu, com um semblante plácido.
- Então, não seriam reais...
- Não é porque surgiu da sua imaginação que uma coisa não pode ser real, cavaleiro. – Shun disse, com um sorriso amigável – O que transforma qualquer coisa em realidade é o seu poder de crença nela. Se você acredita que existe, então é real.
- Não! Não é assim que funciona! Se uma coisa existe, então eu acredito porque ela é real! Mas se ela não existe, então eu não vou acreditar porque não é real! E... e... – o jovem de cabelos castanhos dizia, balançando a cabeça, confuso e perdido.
- Vai insistir em inverter a ordem de tudo, garoto? – o homem alisava o cavanhaque, impaciente – Quando se acredita em algo, aquilo se torna real e passa a existir de fato. É simples assim. Mas não tenho mais tempo de discutir isso com você. Os fatos são esses, tudo já lhe foi devidamente explicado e agora, se quer entender ou não, aí já é com você.
Seiya adquiriu uma expressão pensativa antes de dizer:
- Tudo bem, considerando que eu acredite nisso tudo... Então, acho bom que no meu mundo não se acredite mais em vocês e em toda essa baboseira de mundos mágicos. Estamos melhor sem vocês.
- Foi essa arrogância típica dos humanos que fez com que o seu mundo se isolasse de todos os outros, cavaleiro. – Shiryu notificou – Todavia, é também o que pode ser a salvação do seu mundo em meio ao caos que estamos sofrendo agora...
- É mesmo! Vocês disseram que o Céu tá castigando todo mundo porque a princesinha lá desapareceu...
- Sim... – Shun suspirou, preocupado - A separação entre os mundos está se desfazendo. É como se todos os mundos agora estivessem realmente se misturando. Não há mais um mundo para cada grupo e isso, de certa forma, ameaça a sobrevivência de todos. E, se todos os mundos, que agora parecem colidir uns contra os outros, realmente se tornarem um, será como se todos se transformassem em Nalur.
- E isso seria ruim?
- Sim. Entenda, cavaleiro... aqui, somos todos iguais. Não há vantagem de um grupo sobre o outro. Nalur sempre foi um território neutro; aqui, apenas a princesa Saori possuía um poder maior que os outros habitantes dessa terra. – Shun explicava devagar, para que Seiya o acompanhasse.
- Mas há quem viva aqui?
- Sim. Por motivos diversos, alguns seres deixam seus mundos e vêm para cá. Ou seja, nesse reino, você encontra exemplares de todos os povos... – aludiu Shiryu.
- Então, se eu entendi bem... aqui, todos são reais. Reais mesmo. Quero dizer, nenhum dos povos aqui é apenas criação de um grupo ou de outro, porque não há um grupo dominante nessa realidade. Ninguém aqui é forte ou fraco porque foi criado para ser assim... certo?
- Bem... sim... – Shun respondeu, titubeante.
- Vocês dois deveriam gostar disso. Não vivem querendo dominar a realidade um do outro? Pois aqui vocês podem medir forças, de maneira igual e mais justa, já que estariam num território neutro. – Seiya falou olhando diretamente para Ikki e Hyoga.
- Não temos interesse em vencer aqui. – Hyoga respondeu logo.
- Por que não?
- Porque aqui não seria uma batalha apenas entre nós. Haveria outros povos. Isso seria um grave fator de desequilíbrio, cavaleiro. – o loiro disse, de forma cortante.
- Ah. Então vocês só querem vencer um ao outro? Que vitória mesquinha. E pensar que eu cheguei a ter medo de vocês...
- Você deveria continuar nos temendo. – Ikki surgiu de repente, com uma mão no pescoço de Seiya, que rápido sentiu-se asfixiar.
- Largue-o, Ikki. – com um movimento de sua varinha, Shiryu jogou o moreno selvagem para longe de Seiya – Você está bem? – o mago aproximou-se de Seiya e os olhos castanhos encontraram aquele olhar sereno algo preocupado consigo. Sorriu:
- Eu estou bem, obrigado.
- Não provoque aqueles dois, cavaleiro. A disputa deles não é tão simplória. Eles certamente gostariam de dominar os outros mundos, mas têm plena consciência de que somente conseguirão se forem aos poucos. O mundo dos magos e o dos elfos, por exemplo é muito forte. E isso se deve, em grande parte, ao fato de a nossa magia estar relacionada com o amor, a bondade, a amizade. Isso faz com que nosso poder se multiplique e seja mais forte. No caso deles, a magia tem forte ligação com o egoísmo, com a traição, com a maldade... e isso apenas divide, de modo que não conseguiram ainda encontrar um meio de prevalecerem sobre os outros. Contudo, se um deles dominar o outro, a força deles será maior, pois a magia de um se acumulará ao outro, tornando-se talvez grande o suficiente para que consigam derrubar outro povo e dominar outro mundo, acumulando mais energia mágica. E assim, aos poucos, eles pretendem conseguir o que querem... – Shiryu explicava, enquanto, com sua mão, fazia desaparecer lentamente o hematoma que a forte mão de Ikki deixara no pescoço de Seiya.
- Mais um motivo para essa fusão dos mundos ser boa, não? Dessa maneira, os planos desses vampiros e desses lobisomens não têm como se concretizar...
- Cavaleiro, é uma aposta muito alta essa que está fazendo. Se todos os povos coexistirem em um único mundo, em igualdade de condições, ninguém sabe o que pode acontecer. Tudo seria possível, inclusive a destruição de todos. – Shun explicou.
- Ah... acho que entendi. – falou, em tom mais baixo – Mas... você disse que meu mundo estava a salvo, não foi? – Seiya voltou os olhos cor de chocolate para Shiryu, que ainda mantinha sua mão delicadamente por sobre seu pescoço.
- Sim. Devido ao isolamento em que os humanos vivem, seu mundo está tão desconectado dos outros que existe de forma completamente independente. Isso quer dizer que seu mundo não sofre o risco de colidir ou fundir-se com as outras realidades... – o mago foi assertivo.
- Isso é ótimo! – e olhou para o homem de cavanhaque, que estava calado há um bom tempo, com as mãos nos bolsos da calça jeans, apenas escutando – Então não entendo por que me trouxe aqui! Não há motivo para eu participar de sei lá que missão que você pretendia me apresentar! O meu mundo está seguro, não tenho por que me arriscar com esses caras... – e fez questão de olhar para Ikki e Hyoga.
- Eu o trouxe porque você é necessário. Os quatro foram escolhidos por habilidades muito específicas e necessárias a essa missão, assim como você. E, em algum momento, cada um terá de realizar algo que apenas ele poderá fazer; e isso inclui você, garoto.
- Olha... desculpa, mas isso me parece arriscado demais. Eu não sou um cavaleiro, sou só um jogador de futebol...
- Sem você, a missão já terá falhado. Sem você, meu jovem, não haverá qualquer esperança. - declarou o homem sem cabelos.
Nesse momento, Seiya olhou para os outros quatro e os viu apreensivos. Era um grande peso. O homem basicamente lhe dizia que sua decisão de ajudar ou não era simplesmente toda a diferença entre salvar aqueles mundos ou decretar seu fim.
Shun se aproximou e tomou a mão de Seiya entre as suas:
- Por favor, cavaleiro... nós precisamos de você. Não nos tire a única esperança de salvação que ainda temos...
O rapaz de cabelos castanhos suspirou. Aquele elfo sabia falar de um jeito que confundia. O jovem jogador de futebol não se considerava má pessoa, mas achava que mesmo a mais altruísta das pessoas teria dúvidas sobre o que fazer.
- Cavaleiro, eu prometo que não deixarei que nada de mal lhe aconteça. – o mago anunciou e Seiya então olhou para o vampiro e o lobisomem, tentando entender se Shiryu se referia a eles.
- Não seja estúpido. – Ikki disse, rispidamente – Não vamos fazer nada contra você. Nossa única chance depende de sua participação nisso, por mais absurdo que isso possa parecer, humano. E, até onde sei, você precisa estar vivo para isso funcionar. Então, não representamos uma ameaça.
- Ele tem razão. Se eu estou disposto a trabalhar em conjunto com um... lobisomem – olhou com desdém para o moreno -, certamente saberei conviver harmoniosamente com um humano. – Hyoga sorriu de forma comedida.
Seiya pesou tudo aquilo e fez algumas conjecturas. Havia a grande possibilidade de tudo aquilo ser um sonho. E, se fosse, uma hora ele acordaria e estaria tudo bem.
Porém, se não fosse esse o caso... e se tudo aquilo fosse verdade... Bem, se ele optasse por ir embora, o que aconteceria? Ele voltaria à sua vida de sempre. Iria para seu apartamento, dormiria em sua cama, jogaria bola com os amigos no dia seguinte...
Mas, se ficasse... Ele poderia se transformar em um herói. Ele já estava na pele de um cavaleiro e poderia agora viver o que, talvez, pudesse ser a maior aventura de sua vida. Era certo que ele não sabia manejar uma espada, mas quem sabe? Talvez, como aquela fosse uma terra mágica, ele já soubesse. E, mesmo que isso não ocorresse, ele teria a seu lado um vampiro, um lobisomem, um mago e um elfo para ajudá-lo.
- Está bem! Eu fico! Vou ajudar vocês! – anunciou o rapaz, alegremente.
- Que bom. Mas saiba, meu jovem, que você ficaria de qualquer jeito. Eu não o levaria daqui, a não ser que se dispusesse a auxiliá-los nessa missão. – disse, com tranquilidade, o homem do cavanhaque.
- Como é? Mas... e se eu me recusasse?
- Você teria de mudar de opinião, porque só regressará quando cumprirem essa missão. – o homem olhou em seu relógio mais uma vez – Muito bem, hora de eu ir embora...
- Espera aí, cara! E não vai me dizer qual é a missão?
- Seus companheiros já sabem.
- Não interessa. Eu quero ouvir de você. Se é pra eu entrar nesse jogo, quero conhecer as regras direito e prefiro que você mesmo me fale, já que me parece que você tem algum poder especial no meio disso tudo...
- Se quer saber, meu rapaz... eu controlo as conexões entre os mundos. Tenho meus interesses em manter as coisas como estão.
- Ah, sei. Porque, se tudo mudar, você perde seu emprego de porteiro entre os mundos? – o jovem disse, rindo das próprias palavras.
- Não brinque comigo, garoto. – pela primeira vez, o homem lançou um olhar verdadeiramente ameaçador para Seiya – Não ia falar a respeito, já que você tinha aceitado fazer parte de tudo isso de bom grado. No entanto, não vejo mais por que não dizer. – com essas palavras, o rapaz engoliu em seco, até por conta do sorriso que se desenhou por debaixo daquele cavanhaque, que lhe pareceu quase... maldoso – Shiryu lhe disse que a sua realidade escaparia completamente ilesa do conflito entre os mundos... Todavia, acredite-me. Não seria bem assim...
- Não...? – Seiya arregalou os olhos.
- Não. Seu mundo não sairia ileso. E isso é tudo que tenho para dizer. – sem se alongar mais e parecendo realmente apressado, o homem deu meia-volta e, a passos rápidos, voltou para a gruta.
- Ei, volta aqui! Você não pode sair assim! Ainda não me explicou qual é a missão! – Seiya correu atrás do homem, mas, quando adentrou a gruta, não o viu mais. Ele havia simplesmente desaparecido.
Visivelmente chateado, o jovem retornou para perto daqueles que, se tinha entendido bem, eram agora seus "companheiros".
- Não fique assim. Vai dar tudo certo. – Shun foi o primeiro a se aproximar do cabisbaixo cavaleiro.
Seiya levantou o rosto e encontrou o sorriso reconfortante que o elfo lhe oferecia. Sorriu em retorno e então seus olhos buscaram o mago:
- Shiryu, qual é a missão? Aquele cara explicou pra vocês, não foi?
- Sim, ele explicou. De forma vaga, mas explicou.
- E...?
- Vamos ter que ir atrás de um cálice de prata. – Ikki foi quem falou – Parece que esse cálice pertenceu à Saori.
- O que significa que vamos ter de ir ao castelo em que ela vivia. – Hyoga complementou.
- Como vamos reconhecer esse cálice? Quero dizer, deve haver um bando de cálices nesse castelo...
- O cálice tem o sinal da meia-lua, símbolo dessas terras. – Shun apressou-se em dizer.
- E, antes que pergunte, apenas o cálice que buscamos tem esse sinal. Mas, se isso não for o bastante para tranquilizá-lo, cavaleiro, eu lhe asseguro que, ao encontrarmos o cálice, eu terei como saber se ele é o verdadeiro ou não. – Shiryu explanou.
- Ah, tá... Porque você é um feiticeiro e pode sentir essas coisas, né? – Shiryu riu com esse comentário, enquanto Ikki e Hyoga se entreolharam, como se, apesar da gigantesca inimizade entre eles, apenas os dois soubessem o quanto esse protótipo de cavaleiro era lastimável – E depois que encontrarmos o cálice, o que fazemos? – Seiya voltou a indagar.
- As palavras exatas dele foram: "o cálice deverá ser utilizado para colher as lágrimas do luar, a fim de se transformarem na chuva prateada que poderá iluminar a Floresta Negra". – Shun repetiu, cuidadosamente, cada palavra daquele homem.
- Ah... sei... – Seiya fez uma expressão de quem raciocinava sobre o que acabava de ouvir. Ao cabo de alguns segundos, disse: - E o que significa tudo isso?
- Nós não sabemos. – Hyoga falou, enquanto jogava os belos cabelos dourados para trás – Entretanto, compreendemos que primeiro temos de ir ao castelo, para pegarmos o cálice de prata. Depois, iremos à Floresta Negra. Até lá, imagino que já tenhamos descoberto como proceder...
- Como é? Vocês não têm ideia do que vamos fazer?
- Ele acabou de dizer o que vamos fazer, humano. – Ikki falou, com má-vontade, enquanto começava a caminhar, já se distanciando do grupo – Vão ficar aí? Não acham que já perdemos tempo demais?
- Mas não é assim que as coisas funcionam! Não temos um plano? Não sabemos o que vai acontecer? - Seiya chamou a atenção de Shiryu e Shun, que se preparavam para começar a seguir caminho também – E, mesmo que a gente consiga fazer essa chuva prateada cair na tal da Floresta Negra... como isso vai resolver nossos problemas? Como iluminar essa floresta vai nos ajudar a encontrar a princesa? Porque é isso que devemos fazer, certo? – Seiya perguntava, atropeladamente, enquanto Hyoga, parecendo incomodado com o falatório do jovem cavaleiro, andava a passos mais largos, indo na mesma direção de Ikki, que estava já distante do grupo.
- Não sabemos, cavaleiro. – Shiryu riu – Vocês, humanos, são muito impacientes.
- Não é questão de impaciência! É questão de lógica! Como vocês podem aceitar caminhar às cegas assim, numa boa? Nós nem sabemos o que são essas "lágrimas do luar"! Que raio de lágrimas são essas? Por acaso, a lua vai chorar?
- Acalme-se, cavaleiro... É tudo uma questão de fé. No momento propício, descobriremos o significado de tudo. – Shun também sorria, achando muito divertido o comportamento de Seiya.
- Não faz sentido... Vem cá; aquele careca não disse mais nada? De repente, ele falou algo mais que ajude a clarear as coisas pra gente...
- Não; ele disse só isso. – Shiryu respondeu e, súbito, parou de andar– Quero dizer, ele falou mais uma coisa. – e olhou sério para Shun.
- O que ele disse...? – Seiya indagou, mas incerto se gostaria do que iria ouvir, haja vista a repentina expressão de seriedade que tinha despontado na face do mago.
- Ele disse que, em um momento decisivo dessa missão, um de nós cinco irá se mostrar um grande traidor. – e, com essas palavras, o mago, o elfo e o cavaleiro olharam adiante, observando silenciosamente as figuras do vampiro e do lobisomem, que caminhavam mais à frente...
Continua...
