Prólogo

Existem diversas formas de se contar uma história.

Algumas são mais realistas. Outras, fantasiosas.

Entretanto, são todas verdadeiras, até mesmo as histórias alteradas.

Mas esta história não é realista. Não é fantasiosa. Não é alterada. É a história de duas histórias que se cruzam, sem motivos aparentes, sem pretensões. Apenas destino.

Era dia 23 de agosto, em um inverno pesaroso. A neve caía levemente acinzentada, talvez por influência da poluição da cidade, e a essa hora todos estavam voltando para suas casas após um longo dia de trabalho, para se aquecerem no calor da lareira junto com a família, vendo filmes e perguntando às crianças como foi na escola.

Porém, um jovem rapaz de cabelos castanhos e olhos profundos não estava voltando para casa. Trajava um suéter azul de tricô velho e roto, e calça jeans escura e rasgada. Tremia sob a pouca roupa que levava consigo, mas fingia não se importar. Seu rosto, antes delicado e agora repleto de marcas de violência, se contraía contra o vento frio e cortante que vinha ao seu encontro.

Mirou o grande relógio na torre da fábrica têxtil que lhe estava à frente, e viu que marcava quase vinte e uma horas. Estava atrasado.

Arrastava os pés meio sem emoção no fino tapete de neve suja que se alastrava por todo caminho rumo ao clube. Pedira - implorara - para não ter de trabalhar hoje. Ao menos, não hoje. Levara uma surra pelo atrevimento. Agora, cada centímetro de seu tórax e rosto doíam, e ele se sentia um completo idiota pelo pedido tolo que fizera.

Quando finalmente chegou na porta do estabelecimento, levantou o rosto para ler mais uma vez aquele letreiro neon vermelho que o encarava e cumprimentava tão desdenhosamente todos os dias. "Alagaësia Club". Disfarçado de clube comum, mas na verdade um prostíbulo infantil para meninos e meninas que deviam favores a Galbatorix, tais como comida, abrigo e dinheiro. Murtagh se encaixava nos três itens.

Sim, claro que prostíbulos infantis são proibidos e pedofilia é um crime grave, mas as autoridades nada podem fazer contra um homem como esse. Ele tem dinheiro, muito dinheiro, e isso é mais do que o necessário para que não obtivesse problemas. E era para lá que ele tinha de ir toda a noite, assim que o estabelecimento começava a receber seus primeiros fregueses.

Mas hoje seria diferente. Não interessa o que seu pai deixou para trás, agora ele está morto, e não o vai impedir de buscar sua própria felicidade. Esta noite ele não entregaria o dinheiro dos clientes nas mãos daquele cafetão miserável. E nem voltaria na noite seguinte, muito menos nas próximas. Já havia planejado tudo, esta noite iria embora. Seria seu presente de aniversário, para ele mesmo.

A sombra de um sorriso percorreu seu rosto por alguns instantes ante a idéia, mas ele a deixou do lado de fora do clube.

Aqui percebemos que nem todas as histórias são felizes, não é?

Bem, esse garoto sempre mexeu comigo, sentia muita,

muita pena quando o observava andando por aí como o desgraçado que o era.

Não, eu não vou uma pessoa ruim, apenas encaro os fatos.

Enfim, essa história deve lhe estar parecendo tão clichê quanto o possível permite.

Mas nenhuma história é tão repetitiva que não possa ser contada de novo, mas

sempre com um toque a mais que

a faz parecer única..

...E inconfundível.

Veremos o que acontece em outro lugar, com outra pessoa qualquer.

A neve já ameaçava cair e o expediente chegava aos últimos minutos. Mas não para o rapaz que começara o estágio no início da semana. E era recém quarta-feira.

Seu olhar preocupado analisava cada uma das pastas à sua frente, antes de empilhá-las na ordem certa com os devidos anexos. Com a palma de uma das mãos, afastava os cachos levemente dourados de sua testa, enquanto sua outra mão se ocupava em afrouxar a gravata. Estava achando aquilo um saco, mas era necessário.

Juntou suas coisas de qualquer maneira e as enfiou desajeitadamente na maleta de couro marrom. Não gostava de toda essa formalidade, mas seria obrigado a viver com isso. Pediria uma pizza no caminho para casa, e isso era incontestável.

Quando não se tem um carro e a passagem de ônibus é cara demais comparada à distância a se percorrer, usam-se as pernas. E, nessa noite em especial, ele se sentia grato de não morar tão longe. O frio estava de rachar.

Parou na pizzaria enfrente ao prédio onde morava e pediu uma de pepperoni e champignons, sua favorita, e pediu para que chamassem no interfone quando ficasse pronto. "205 é o número", disse à atendente com um decote bastante sugestivo, pensou. Sentia falta de um relacionamento nem que fosse de apenas uma noite, mas já não encontrava tempo nem mesmo para levar as roupas à lavanderia. Era sem dúvida mais fácil há um ano atrás. Sempre fora muito mimado, e gostava disso.

O garoto popular, líder do time da escola e o troféu mais cobiçado por todas as garotas. Essa foi sua vida ginasial. E na faculdade até não era muito diferente, tirando o fato de que as pessoas se tornam ambiciosas e não tem time de futebol.

Ainda com esses pensamentos povoando sua mente ainda imatura, ele adentra o próprio apartamento, o encontrando da mesma forma desorganizada que o deixou pela manhã. O espelho no hall de entrada o faz parar um pouco, observando a si mesmo, apreciando a vista.

Sem dúvidas, em dezenove anos, mudara bastante. Suas feições se tornaram mais masculinas, e o ar juvenil que antes exalava agora fora substituído por formas mais adultas. Não era mais aquele bonito rapaz do colégio, mas sim um belo homem se formando. Ao menos era o que seu narcisismo dizia a ele mesmo.

Largou suas coisas em um sofá já repleto de quinquilharias e foi rumo ao banheiro. Precisava de um banho bem quente.

Após, se agasalhou e ligou a calefação. Comeu sua pizza e dormiu. Mais um dia qualquer em sua vida.

Às vezes nos surpreendemos com o rumo que as coisas tomam.

Como universos tão distintos conseguem se aproximar tanto.

Não são os opostos que se atraem. Nem os corações.

Isso deve ser só alguma peça pregrada pelo tempo.

Nada, além disso.

Mas eu gosto de falar sobre os rastros deixados por essas traquinagens.