DISCLAIMER: Não possuo a série Inu-Yasha ou seus personagens. Só possuo os mangás de mesmo título até o nº 59, e minha imaginação.
N/A: Eu escrevi esse capítulo o fim de 2004 (é, bastante tempo atrás ¬¬), mas eu gosto muito dessa idéia e resolvi aproveitá-la.
"Nunca confie em youkais."
Essa era a frase favorita do vovô. Desde pequenininha Kagome ouvira essas palavras. Era uma rotina: a menina se sentava à mesa para comer ou no sofá para ver televisão e lá vinha ele com sua ladainha, explicando que aqueles monstros que moravam na outra cidade eram perigosos e só se aproximavam dos humanos com a intenção de devorá-los.
Na hora de dormir, ele lhe contaria histórias da carochinha, nas quais o vilão era sempre o youkai. Ele raptava a princesa, ou perseguia os três porquinhos, ou mesmo engolia a avozinha da Chapeuzinho Vermelho.
"Conta uma história de um youkai bonzinho, vovô" pediu Kagome, certa vez, por volta dos seis anos. Ele fizera uma careta de reprovação e lhe dera um sermão de quinze minutos, sobre como ela não ouvia o que ele dizia, que todos os youkais eram maus e que ela nunca deveria chegar perto de um.
"Mas como, se a Terumi-chan é uma youkai?" retorquira a garotinha, inocente. Terumi-chan era sua melhor amiga na escola inteira.
No dia seguinte, vovô persuadira papai a tirar Kagome daquela escola. Era inaceitável que deixassem sua netinha na presença de monstros! Imperdoável!
"Não adianta choramingar" disse ele, ríspido. "Não quero colocar você em perigo."
"Terumi-chan não é perigosa!" gritou Kagome, lágrimas saindo de seus olhos, uma atrás da outra. "Ela nunca me machucou, ela é mais legal que todas as outras meninas normais da sala!"
"Kagome, não levante a voz para o seu avô!" repreendeu papai, logo depois colocando-a de castigo. Pôde-se ouvir o choro desconsolado da menina durante toda a tarde.
É preciso entender que mamãe não concordava com nada daquilo. Ela sempre incentivara Kagome a conviver com youkais, mesmo porque ela conhecia alguns de sua época de escola e sabia que eram todos boas pessoas. Claro, um ou outro era violento, mau, assassino; mas também existiam humanos assim. Era tudo questão de boa índole.
Mas seu sogro criara o filho sob um regime quase ditatorial, onde ele aprendera que youkais eram uma raça demoníaca que devia ser varrida da face da terra. E foi com esse homem que ela se casou. Ela o amava profundamente, mesmo sabendo que ele e ela tinham convicções muito diferentes.
Quando Kagome nasceu, ela soube que seu marido faria de tudo para que a criança seguisse seus passos. Iria querer que ela odiasse tanto os youkais como ele mesmo.
Mas mamãe não permitiria isso. Papai trabalhava fora, o que deixava a mulher sozinha em casa para criar Kagome do jeito certo. O problema era que papai tinha um espião em casa: vovô.
Quando Kagome fez oito anos, mamãe lhe deu uma grande notícia: ela ia ter um irmãozinho. A garotinha foi ao delírio. Um irmãozinho! Finalmente alguém com quem brincar em casa! Podia fazê-lo de boneco: quando ela fosse brincar de casinha, ele seria seu filhinho.
Porém, quando Souta nasceu, ela percebeu que não era nada disso. O bebê era muito frágil e pequeno pra que ela o carregasse pra lá e pra cá. Ele acordava no meio da noite e gritava com todas as forças. Ele ganhava todos os presentes da casa. Entre Kagome e ele, ele vinha sempre em primeiro lugar, por precisava de muito cuidado e a tenção. Ele sujava a fralda e mamãe pedia que Kagome o trocasse para ela, enquanto ela cozinhava.
Não era nada divertido. Ela achava que ia ganhar um irmão, e não que ia perder a atenção de papai e mamãe.
Então, um dia, quando Souta já tinha uns seis meses, ligaram para a escola de Kagome. Chamaram a menina no meio da aula de japonês e a levaram até a diretoria. Ela estava muito nervosa, se perguntando o que fizera de errado (ela nunca tinha sido chamada à diretoria antes), quando encontrou um amigo de vovô, o monge Mushin, sentado à frente da velha diretora.
"Mushin-sama?", disse Kagome, confusa, olhando para o ancião redondo à sua frente. A coordenadora a conduziu até a outra cadeira, à frente da diretora, e a fez sentar, saindo logo depois. Mushin olhou para ela como quem pede desculpas, os olhinhos injetados muito tristes.
"Mushin-sama veio aqui para levá-la para casa, Higurashi-chan", disse a diretora, num tom suave e gentil, que Kagome nunca a ouvira usar. Os olhos dela tinham uma expressão esquisita. Pena? De quem? "Pelo que ele me contou..."
"Perdão, Ishihara-san", interrompeu Mushin, erguendo uma mão, desconfortável. "Creio que seria melhor para Kagome-chan que a mãe dela lhe explicasse a situação."
"Sim, tem razão", suspirou a diretora.
Alguns minutos depois, Mushin guiava uma Kagome extremamente curiosa pelas ruas de Tóquio. Ela se apressava a acompanhar os passos rápidos do monge, ao mesmo tempo em que lhe disparava perguntas.
"Mushin-sama, por favor, me conta o que aconteceu", implorava a menina, puxando-lhe a manga do quimono sacerdotal. "O que houve? Aconteceu alguma coisa com a mamãe, ou com o Souta?"
"Não, minha criança, não é isso", murmurou ele, ansioso. "Tenha paciência... já estamos chegando lá."
Kagome achava que "lá" fosse sua casa.
Eis o motivo de seu espanto quando o monge adorador de saquê a levou até o hospital. Ela sabia! Alguém tinha ficado doente, ou se acidentado, ou...
"Mamãe!", gritou Kagome, correndo para os braços da mãe, que estava sentada num banco ao lado da sala de emergência, com Souta ao lado dela, no carrinho de bebê. A mulher abraçou a filha com força, as mãos trêmulas. "O que foi, mamãe, o que aconteceu, Mushin-sama não quis me contar nada, por que... por que está chorando!"
Kagome levou um choque imenso ao ver a mãe chorando, simplesmente porque ela sempre era tão forte e sorridente. Sempre tão segura de si. E agora parecia uma criança desamparada, como se quisesse que alguém lhe desse colo. Kagome não sabia o que fazer, ou dizer.
"Mamãe..."
Mas tudo o que sua mãe fez foi apertá-la mais ainda contra o peito. Mushin sentou-se ao lado dela e lhe colocou uma mão no ombro.
"Não tenha medo, Kasumi-san, ele é forte", disse ele, meio perdido.
Mamãe soltou Kagome, enxugou o rosto molhado de lágrimas com as mãos e ajeitou os cabelos de Kagome, depois o uniforme ao estilo marinheira. A menina ainda estava muda.
"Kagome-chan, não ligue pra mim, sua mãe é uma bobona", disse ela, tentando sorrir e falhando. "Não tenha medo, meu bem, vai dar tudo certo."
Medo? Kagome não sabia se era medo o que ela estava sentindo. Era mais uma confusão sem tamanho. Ninguém ia explicar o que estava acontecendo?
"Cadê o vovô?", perguntou a menina, sua voz falhando, perguntando-se se era ele que estava na sala de emergência. A mera possibilidade a assustava.
"Ele foi me pegar um chá na lanchonete do hospital", disse sua mãe, soluçando.
"Então... quem está ali dentro?"
Kagome apontou para as portas duplas da sala de emergência, com uma grande cruz vermelha pintada entre as duas. Mamãe levou uma mão à boca, fechando os olhos e se controlando para não chorar de novo.
"Seu pai está lá dentro", murmurou ela. A menina arregalou os olhos.
"P... papai! O que aconteceu com o papai!" perguntou Kagome, de repente muito amedrontada. Mamãe olhou tristemente para a filha e acariciou-lhe os cabelos.
"Ele teve um problema respiratório... eu sempre disse para ele parar de fumar, mas ele nunca me ouviu..." Mamãe fechou os olhos com força e abraçou Kagome mais uma vez. "Seu pai é grande tolo, minha filha..."
Souta começou a chorar. Mushin correu a pegá-lo no colo, para que mamãe não tivesse que soltar Kagome.
Apesar de mamãe e Mushin terem garantido a Kagome que papai sairia bem do hospital, aconteceu exatamente o contrário. Papai nunca saiu do hospital. Mamãe nunca chorou tanto como naquele dia. E, apesar de Kagome também sentir uma imensa vontade de chorar, não conseguia derramar uma lágrima sequer; parecia que o choque a impedia de fazê-lo.
Mais tarde, quando Kagome tentasse se lembrar do dia em que seu pai fora enterrado, só lembraria de uma tarde cinzenta, do rosto cheio de tristeza de mamãe, do choro de Souta e das orações de vovô. Lembraria-se também de outras pessoas, que dançavam em sua memória como vultos sem rosto. Mas não se recordaria do momento em que o caixão de seu pai fora colocado dentro do buraco e coberto por terra. Só ficaria um grande vazio em sua memória.
Seria de se esperar que vovô aquietasse depois que seu filho morreu, e deixasse Kagome e seus amigos youkais em paz. Mas, ao contrário, parecia que agora ele tinha mais fervor ainda. E mamãe, inconsolável com a morte do marido, não tinha forças para repreendê-lo, fazendo com que ele tivesse toda a autonomia para com Kagome e Souta.
Kagome ainda estava menos vulnerável, já que, até ali, sua mãe sempre lhe ensinara que o preconceito que vovô tentava lhe incutir era errado. Mas Souta, ainda muito pequeno, a partir dali cresceria sob os dogmas do avô. E, pouco a pouco, Kagome também ia sucumbindo.
Aquele seria o ano em que Kagome faria dezesseis anos, e também o ano em que começaria o colegial. Passara no exame de um grande colégio, que era localizado em Osaka; por isso, teria que se mudar para a casa da prima, que tinha a mesma idade que ela e entrara no mesmo colégio.
"É uma coincidência muito conveniente, não acha?", disse Sango, ao telefone. "Assim não vai ser tão difícil para você mudar de cidade. Eu vou te mostrar as imediações, as lojas, os points, a biblioteca, tudo, tudo, tudo!"
"Vai ser muito bom mudar de ares, sabe", comentou Kagome, tão animada quanto a prima. "Não agüento mais a mamãe se lamentando, o Souta me enchendo, o vovô e a ladainha dele..."
"Não sei qual é o seu problema com o seu irmão, Kagome-chan", disse Sango, soltando um muxoxo. "Eu adoro o Kohaku. Se eu tivesse que sair de perto dele, acho que meu coração viraria caquinhos!..."
"É porque o Kohaku não é um chato de galocha metidinho que vive tentando te irritar."
"Ah, mas ainda assim... ele é seu irmão, poxa."
"Grande coisa."
"Tá, vamos parar de falar disso. Quando você vem pra cá?"
"Acho que no fim do mês mesmo eu vou praí, eu tenho que fazer logo a matrícula e tudo mais..."
Apesar de ela querer ir pra longe de casa, foi bem mais difícil se despedir do que Kagome pensara. Vovô sempre fora severo com ela, mas era seu avô e ela o amava... mamãe tinha uma expressão tão profundamente triste ao abraçar Kagome, e não a soltara por um longo tempo... e Souta – bem, Souta lhe entregou um de seus bonequinhos articulados de luta, o que ele mais gostava, que era do Wolverine.
"Pra você não se esquecer de mim enquanto estiver em Osaka", murmurou ele, olhando para o chão. Kagome sentiu os olhos encherem de lágrimas enquanto apertava o bonequinho na mão. Ajoelhando-se, ela deu um abraço apertado no irmão – coisa que ela não fazia muito freqüentemente.
"Não vou me esquecer de você, maninho, nunca", disse ela, dando-lhe um beijo na bochecha. Souta fez cara de choro.
"Tchau, mamãe, vovô, Souta... vou sentir saudades de vocês!" E, entrando dentro do táxi que a levaria à estação do metrô, Kagome partiu.
Dentro do carro, ela guardou carinhosamente o Wolverine dentro de sua bolsa.
