A garota acorda assustada no meio da madrugada, sonhou novamente com gritos, morte e prisão. Passou a mão insistentemente pelo pescoço até encontrar o pingente de couro que sempre carregava. Um grande "V" ladeado a esquerda por um pequeno "E" e a direita um diminuto "A" formavam o seu nome, Eva. Um nome maldito que ela detestava, um nome que a fazia ter ânsias.

-Um nome para mulheres estúpidas.-Murmurou.

Já tinha doze anos e nenhuma pista de quem tinha sido antes de perder a memória. Puxou o único cacho do cabelo louro e liso que insistia em cair sobre seu olho esquerdo para trás da orelha e se aprumou.

Não vou conseguir voltar a dormir mesmo...-Bufou de forma irritada.

Recolheu algumas coisas que tinha afanado no dia anterior e se preparou para vendê-las. Deu um sorriso sarcástico ao lembrar das palavras que ouvira a mulher do padeiro entoar a alguns dias atrás.

É, roubar é feio mesmo, mas eu não roubo. Pego emprestado sem pedir e sem a intenção de devolver...

Ajeitou o capote que usava sobre a roupa para se proteger do frio intenso que fazia no inverno em Prontera.

Samael, um menino esguio, de braços, pernas, pés, mãos e dedos compridos, pálido, magro, de longos cabelos negros, até o ombro, repicados, e olhos da mesma cor, tinha só dez anos e estava sentado numa mesa com uma pilha de livros a sua frente e seu lado.

-Por Favor, Mestre, deixe-me tentar só uma vez o feitiço "Petrificar".- Rogou Samael a seu Tutor Ezequiel, o maior sábio de toda Rune-Midgard em todos os tempos.

-Não Samael. Você ainda tem muito que aprender. Vamos, qual é o nome da energia interior que todos temos?

-Chi.-Bufou o jovem aprendiz.

-O que disse, Samael?- Perguntou Ezequiel educadamente.

-Chi, mestre.- Retrucou, completamente sem paciência o menino.

Um sonoro tapa ecoou pelo sótão da morada dos dois.

-Perdoe-me mestre.

-Já que você está tão interessado em usar "Petrificar", me diga em que parte do corpo se deve concentrar o Chi?

-Nas mãos.- Disse com ousadia o garoto, como se quisesse mostrar a seu mestre que é superior.

-Não, Samael, leia, leia, quantas vezes eu terei de dizer? Para lançar qualquer magia com perfeição você não poderá continuar tendo a mente lenta e terá que aguçar todos os seus sentidos e sua P.E.S. Ou então a magia não será conjurada e ficará na mão do inimigo mesmo sendo forte. Ele te verá como uma formiga que só se precisa colocar o pé em cima e ela é esmagada.

-Perdoe minha falha, mestre.

-Sim meu filho, agora volte a ler e se concentre.

Samael espiou pela fresta de uma porta o seu mestre travar um diálogo com uma garota loira não muito mais velha do que ele.

-...E procure Kadmon, ele terá mais respostas do que eu, criança. A propósito, quando encontrar o meu aprendiz que está ouvindo pela fresta, peça-lhe mantimentos.

A menina espichou o pescoço, como se quisesse vê-lo. Samael ficou parado, esperando-a sair. Um ruflar de tecidos fê-lo perceber que ela se aproximava da porta. Andavam em silêncio pelos longos corredores.

-Como se chama, aprendiz?

-Samael. E você?

-Sou Salomé. Tenho treze anos e estou indo ver Kadmon. Se contar isso a alguém você é um cara morto. Eu sei alguma coisa de palavras de poder, saca?

-T-tá. -disse Samael acenando com a cabeça afirmativamente. Engoliu em seco e se aprumou -Eu tenho onze. -e deu um sorriso nervoso.

Samael destrancou uma porta com magia e se preparou para entrar. Porém a garota foi mais rápida e agarrou uma sacola pendurada no outro lado da porta e foi, com movimentos muito rápidos, afanando comida.

-Hey! Isso é um fruto de mastela? –Indagou a menina cobiçosa se aproximando de uma frutinha roxa.

-Porque você quer saber? Se for, isso não está no "pacote" mantimentos teria de pagar, é muito raro arranjar uma mastela descente por aqui.

-Tá bom, tá bom, que estresse...Vamos embora, já peguei todo o necessário.-E foi empurrando o menino em direção a porta. Depois de a garota se despedir e sumir de vista quando Samael foi ver na dispensa o que ela havia levado, descobriu que não só teriam um gasto enorme para repor tudo, mas também levara muitos frutos de mastela.

-Hey! Mestre aquela gatuna levou uns frutos de mastela e o equivalente a 20.000 zenys! -Gritou Samael para Ezequiel.

-Acalme-se pelo menos não levou L'Sacre Core ou L'Petit Fleur ou L'Petit Core...

-Le sacrê quer? O senhor sempre fala disso e nunca me explica o que é, afinal o que é esse negócio aí que eu não sei falar o nome direito?

-Fale de forma correta, Samael. Com o tempo você descobrirá, no momento, é mais seguro ficar na ignorância.

-Sim, mestre.-e deu um suspiro.

Eu nunca vou saber o que são esses tais de le saque quer, le peti fler e le peti quer.

Um dia Ezequiel chamou Samael para um quartinho que ele nunca pudera entrar. O acesso a este se dava pelo quarto do mestre, outro aposento proibido. O quarto era decorado com tapeçarias de batalhas e quadros e em todos apareciam a mesma mulher loura de olhos verdes. Às vezes em trajes de batalha, às vezes de vestido, às vezes sozinha, outras com homens diferentes, outras com crianças...No centro do aposento havia três mesas com três redomas de vidro em cima. Na mais a esquerda estava um pequeno broche, ao centro, uma espada reluzente e mais a direita uma pequena adaga. Samael olhava admirado para tudo e, de repente, se focou em uma menininha no único quadro que não era da mulher.

Eu conheço essa garota de algum lugar...

-Samael, você deve ter reparado que ando diferente...Talvez mais introspectivo.

Deu um sorriso gentil.

-A verdade, Samael, é que a minha hora se aproxima. Nem vou pedir para não guardar rancor de meus algozes que eu sei que não vai adiantar...

Pôs a mão no ombro do rapaz.

-Veja -disse o velho apontando para o broche -L'Petit Fleur. Esse broche é sagrado, Samael, grave bem isso. No centro temos L'Sacre Core, uma das mais poderosas espadas já concebidas pelos Alfs. E a direita temos L'Petit Core, uma adaga que já tirou muitas vidas. Esta foi presente de casamento dos Anões. Minha Missão foi protegê-las. Sua Missão é devolvê-las à sua verdadeira dona. No melhor momento, Samael. No melhor momento.-O velho o encarava com os profundos olhos azuis, como se esperasse que o menino compreendesse algo.

-Mas como saberei qual é o melhor momento? E para quem eu devo entregá-los?

-Para Evah, a renegada. E, quanto ao momento, você apenas saberá.

-O senhor quis dizer Eva, mestre.

-Não, quis dizer Evah. Lembre-se "Pecados antigos têm sombras compridas", ela vai se denunciar. Nem ela mesma sabe quem é, jovem aprendiz. Mire-se na imagem dos quadros.

-E... Quem é Evah?

-Talmude. Na parte em que Adão e Eva são banidos do paraíso.(procurar "A história de Lilith", no Google)

-Mas... Eu quero saber quem é a nova Evah... Não é possível que ela ainda esteja viva, se existir.

-Oh sim, a nova Brunhilde você quer dizer...

-...Continuo na mesma...

-Você já tem treze anos, Samael, já deveria ser capaz de compreender certas coisas...- e se retirou- vá para o seu quarto e faça uma bolsa com roupas, livros e armas e pegue suprimentos para a viagem.

-O senhor também virá?

-Não Samael. Estarei fazendo uma viagem sem volta que todos um dia farão.

E se afastou, deixando-o sozinho com seus pensamentos.

Depois de uns dias, Ezequiel despacha Samael para sua viagem para a capital. De noite, na estalagem, Samael acorda assustado de um pesadelo onde ele via seu mestre ser morto por seres encapuzados. A última imagem foi de um rapaz, não muito mais velho que si, usando uma armadura de esqueleto ainda suja de sangue, virando, olhando em sua direção como se soubesse que ele estava ali. A imagem daqueles olhos verdes e frios ficou marcada em seus pesadelos durante anos. Com o desejo de vingança fermentando em seu peito, as lágrimas de raiva escorriam com força...Porém o rapaz não ligava para o controle de suas emoções, no momento.

-Eu queria que fosse só um pesadelo...Malditos sejam...

...os Algozes.