—Nós-vamos-ser-pegos-nós-vamos-ser-pegos-nós-vamos -ser-pegos — repetia o jovem ao lado de Arthur.
—Dá para parar de ser tão covarde, Bern? Sinceramente, você é o servo mais inútil que eu podia ter arranjado! —reclamou Arthur.
O príncipe deu passos silenciosos e observou a entrada da biblioteca real.
—Mas será que esse infeliz nunca sai daí? —reclamou vendo o idoso bibliotecário.
—Dizem que ele já era velho na época do seu pai, não tenho certeza que ele pode se mover daí!
Arthur olhou o servo como se ele sempre viesse com ideias absurdas:
—É lógico que ele tem que sair daí de vez em quando! Mas, tudo bem, não podemos deixar passar essa chance. Já deu muito trabalho chegar até aqui sem nenhum dos guardas nos verem. Não podemos perder essa oportunidade — e, pronunciando uma palavra que Bern não foi capaz de ouvir, os olhos de Arthur ganharam uma cor alaranjada e o bibliotecário pareceu ter sido dominado por um sono incontrolável. Caiu em cima dos livros que lia e iniciou um ronco alto.
—Ele-usou-magia-nós-vamos-morrer-ele-usou-magia-nó s-vamos-morrer-ele-usou-magia-nós-vamos-morrer — começou a balbuciar Bern, em pânico.
Arthur o puxou pelos ombros e o empurrou para dentro da biblioteca:
—Ele não vai acordar cedo, mas ande logo! Ajude-me a procurar o que viemos buscar!
Bern e Arthur meteram-se no meio das estantes e começaram a procurar. Mas, logo o servo voltou ao encalço de Arthur:
—Senhor, sinceramente, mesmo que a existência do mago Emrys não seja uma lenda, seria absurdo pensar que ele vivia em Camelot. Ainda por cima que teria acesso aos arquivos reais!
—Eu sei que é um tiro no escuro—disse, pensativo: —Mas, é a única coisa que eu consigo pensar em tentar por aqui. De qualquer maneira, se eu não encontrar nada, vamos até a floresta procurar por druidas!
—O QUE?
—Shiu! Não podemos ser pegos! —reclamou dando um tapa na nuca de Bern.
—Ai! Senhor, dizem que os druidas sumiram desde antes de nascermos! Não seria tarefa fácil encontrar com um deles. Além do que, mesmo que fosse, seria completamente insano!
Mas, Arthur já não prestava mais atenção ao servo. Seu olhar foi atraído por um livro na estante. Teve uma estranha sensação sobre ele, puxou-o, mas ao invés de retirá-lo da estante, a parede se moveu revelando, do outro lado, uma pequena câmara.
O príncipe entrou, seguido de seu servo.
—E o que acha disso, heim, Bern?
As estantes, muito mais antigas que as da biblioteca, estavam cobertas por teias de aranhas. Podia-se perceber alguns livros e frascos, mas antes que pudessem tocar em qualquer coisa, ouviram um som de algo se chocando.
Arthur desviou seu olhar em busca do que fazia aquele som e notou uma caixa de couro que se balançava de um lado para o outro. O olhar de empolgação do príncipe cruzou com o olhar de espanto de Bern.
—Senhor, eu não acho que isso é uma boa ideia!
—Dá para parar de ser pessimista o tempo inteiro? — pediu, avançando para abrir a caixa.
—Não sou só eu quem diz isso! Veja! —apontou ele, havia um bilhete aproximo à caixa, devia ter-se desprendido de tanto que ela balançava de um lado para o outro.
O bilhete parecia ter quase duas décadas, a julgar pelo seu estado. Numa letra fina podia-se ler: "Não abra, goblin preso!".
Arthur deu quatro batidas na caixa:
—Ei! Goblin! Está me ouvindo?
Bern girou os olhos, pensando que seu senhor perdera o juízo de vez:
—Estou preso! — respondeu a voz que vinha de dentro da caixa.
—Goblin, você conhece um homem chamado Emrys?
A goblin parou de balançar a caixa:
—Sim. Se me tirar daqui conto tudo o que quiser!
—Eu não vou te tirar daí!
—Então eu não vou te contar nada!
—Então eu vou afundar essa caixa no lago, o que acha?
—Rá! Isso jamais me mataria! Vamos, manterei a minha palavra. Liberte-me!
Arthur se agachou do lado da caixa.
—Senhor! Não faça isso! —gemeu Bern, mas ao invés de abrir a caixa, o príncipe a pegou nas mãos e começou a chacoalhá-la:
—Vamos! Me conte! Me conte tudo! Me conte onde eu posso encontrá-lo!
Depois de um tempo e de muitas possíveis contusões, o goblin começou a espernear e a choramingar:
—Está bem! Está bem! Pare com isso!
Arthur colocou a caixa de volta no chão:
—Emrys é o nome dele ligado à magia, mas aqui na corte ele usava outro nome.
—Qual nome?
—Merlin.
—Hum... Nunca ouvi falar.
—Isso não é problema meu! Se não vai me libertar me deixe em paz!
—Tenho mais uma pergunta para você, goblin!
—Azar o seu! Não vou falar mais nada!
Arthur deu um pontapé na caixa e puderam ouvir um gemido de dor.
—Esses livros, essa câmara... Eram de Emrys?
—Não — respondeu choramingando. —Ele veio aqui uma vez e me libertou, por isso o conheci. Mas, esses livros são de antes do tempo dele. Você devia seguir o exemplo dele e me libertar também!
Arthur deu uma risadinha de desdém e apanhou o bilhete.
—Vamos — disse para Bern, e ambos saíram da câmara.
Indo direto até o bibliotecário, o príncipe desfez a magia e o homem começou a acordar. Colocou o bilhete na frente dele:
—Você conhece a caligrafia de muita gente do reino, não?
Ainda um pouco sonolento, sem imaginar de onde o príncipe havia surgido, abaixou o olhar para o bilhete:
—Sim, sim, meu senhor. E esta caligrafia eu conheço muitíssimo bem!
—É mesmo?! A quem pertence?
—Pertence a Gaius!
.o.
—Senhor, eu não acho que foi sábio mostrar para aquele homem um papel escrito 'goblin'!
—Bem, então da próxima vez, ao invés de me criticar tenha uma ideia melhor! — retrucou, subindo as escadas para a casa de Gaius.
Deu duas batidas fortes na porta. Após algum tempo, um idoso de mais de noventa anos abriu a porta. Um pouco corcunda e andando com o auxílio de um cajado, elevou os olhos azuis para Arthur e abriu caminho para que entrassem:
—Senhor, à que devo a honra da sua visita?
Há até poucos anos ele ainda era o curandeiro pessoal da Rainha e do príncipe. Entretanto, com o avançar da idade, até mesmo manter poucos pacientes parecia uma tarefa árdua. Aposentou-se, mas ainda fazia um ou outro atendimento quando o diagnóstico parecia impossível para qualquer outro curandeiro da corte.
—Fico feliz em vê-lo bem, Gaius! —disse Arthur, entrando naquela pequena casa. Bern veio logo atrás e fechou a porta para eles.
Gaius se sentou, nas quase duas décadas que se passaram após a morte do rei Arthur aquele lugar não mudara quase nada. Era quase como se o idoso ainda esperasse que Merlin entrasse por aquela porta a qualquer momento. Observou Arthur e seu servo. Sorriu: ambos lhe lembraram de quando o rei ainda era vivo, quando ainda tinha ao seu lado seu fiel servo...
—Gaius, vim lhe fazer uma pergunta, porque você conhece muita gente nesse reino, não?
—Sim, conheço.
—Você já ouviu falar de um homem chamado Merlin?
Gaius riu:
—É evidente. Ele morou comigo por muitos anos, na época em que ele servia ao seu pai.
—O que?
—Merlin era servo do rei.
Parecia que Arthur não esperava aquilo.
—O que houve? Porque quer saber de Merlin?
—Ah, eu... Eu estava apenas reunindo informações sobre o meu pai, você sabe...
Aquela desculpa parecia não ter convencido o idoso. Mas, não insistiu, esperando que Arthur lhe dissesse mais alguma coisa.
—Gaius, você sabe onde eu posso encontrar Merlin?
—Hum... Sinto muito, Arthur. Sinceramente, eu mesmo gostaria de saber onde ele está.
—Mas, quando foi que o viu pela última vez?
—Há alguns meses ele veio me visitar. Ele volta de vez em quando para Camelot. Mas, creio que dessa vez ele poderá demorar muito para retornar. Ele não mora mais aqui há muitos anos. Você ainda nem era nascido quando ele saiu dessa casa. Poucas semanas após a morte do seu pai, a Rainha requisitou que os serviços de Merlin fossem prestados em outros lugares do reino. Creio que, se alguém sabe onde Merlin está, essa pessoa é a sua mãe.
.o.
—Eu não preciso repetir o quanto essa ideia é ruim, não é?
—Bern, se eu ouvir mais uma opinião pessimista sua, juro que te faço voltar para o palácio e venho sozinho!
Era noite e ambos andavam a cavalo pela floresta.
—E você não vai dizer onde estamos indo, não é?
—Você sabe onde estamos indo. Não posso perguntar para a minha mãe sobre Merlin. Então só há uma maneira de eu encontrar este homem!
—Ok, eu sei que estamos indo atrás dos druidas, mas como você sabe onde encontrá-los?
—Apenas me siga!
A postura de Arthur era capaz de enganar Bern. A verdade é que ele não tinha muita certeza de onde encontrar os druidas. Mas, sabia que se conseguisse se afastar o suficiente do reino acabaria encontrando, ao menos, alguma pista.
Quando se afastaram o suficiente, decidiram acampar. Ambos estavam ansiosos e não sentiam vontade de dormir. Diferente dos cavalos, que adormeceram quase em seguida.
Em volta da fogueira que Bern acabara de acender, Arthur parecia pensativo:
—Sabe, não vai ser pra sempre assim.
—O que, senhor?
—Mágica ser proibida. Vai chegar o dia em que ela será permitida novamente.
—É possível, meu senhor.
—Quando eu for Rei, eu vou permitir que a mágica retorne. Mas, até lá, eu preciso saber como controlar, ninguém pode descobrir.
—Desde quando você sabe que tem isso, Arthur?
—"Isso"?
—É, mágica.
—Não vi você reclamando da minha mágica no dia em que eu te salvei.
—É claro, não senhor!
Eles ficaram quieto um tempo, depois Arthur contou:
—Faz alguns anos que eu percebi. Coisas estranhas aconteciam à minha volta. Quando eu notei que aconteciam por minha causa, consegui diminuir as ocorrências, mas mesmo assim...
—Na noite de ano novo...
—É.
Aquecidos em volta do fogo, os dois se esticaram sobre a grama.
—É por isso que eu preciso encontrar Merlin—continuou Arthur, finalizando aquela conversa.
O tempo fazia-se de preguiçoso e passava devagar. O príncipe não conseguia dormir, então passou a observar as folhas nas copas das árvores se movendo pela intervenção do vento.
Ouviu um estalo baixo. Ergueu-se silenciosamente e cutucou Bern para que acordasse. Fez sinal para que ficasse em silêncio. Ambos pegaram suas espadas. Alguém se aproximava...
Seis homens caminharam até eles e os rodearam.
—Quem são vocês? São druidas? —perguntou Arthur.
Era difícil ter certeza quando olhava para eles. Sempre que ouvira falar de druidas entendera que era um povo benéfico e pacífico. Imaginava em sua mente pessoas de roupas com cores suaves e limpas, famílias que acampavam a beira de rios e lagos, rostos amigáveis...
Aqueles homens mostravam marcas de ferimentos de batalhas. Suas roupas negras pareciam tentar escondê-los dentro da escuridão da noite e suas expressões mais se assemelhava mais a uma maldade irônica, que a tranquila benevolência.
Os dois rapazes não se sentiram seguros para soltar suas espadas.
—Diga o seu nome, rapaz! —ordenou um dos homens.
—Eu sou Arthur Pendragon, príncipe de Camelot! Ordeno que respondam à minha pergunta!
Os homens se entreolharam e riram. Arthur lançou um olhar para Bern: ambos teriam que lutar por suas vidas. O servo segurou firme a sua espada, criando uma coragem que nunca antes imaginou possuir. Os dois amigos gritaram e avançaram no primeiro homem que os encarara, mas o fio de suas espadas sequer chegou a se aproximar dele. O cabo de ambas as espadas queimou e eles não tiveram escolha senão largá-las.
Os olhos de Arthur tomaram uma cor alaranjada e, através de magia, ele pôde empurrar dois deles para trás. Pôde perceber que os outros quatro ficaram alarmados e imediatamente sentiu algo se chocar contra sua cabeça. Tanto Arthur quanto Bern desmaiaram sem sequer saber o que os atingira.
.o.
—Eu digo que devemos pedir um resgate para Camelot.
—Resgate? Você é estúpido? Estamos com o filho da Rainha! Podemos fazer Camelot inteira se render a nós!
Arthur entreabriu os olhos. Tanto ele quanto Bern, já acordado há algum tempo, estavam em uma cela. Não conseguia identificar aquele tipo de construção.
—Eu acordei pouco antes de nos jogarem aqui—cochichou Bern para Arthur, quando percebeu que este acordava.
—Onde estamos?
—Numa espécie de caverna. Mas, não sei onde. Já era dia, disso eu sei. Podem nos ter levado para bem longe de Camelot!
—O que eles estão discutindo?
—O que vão fazer com você...
Eles ficaram muito quietos para tentar ouvir as vozes que vinham do estreito corredor.
—Esse é o trunfo que precisávamos para vencer essa guerra! Vamos esperar uma semana e reunir forçar. Precisamos avisar a todos os nossos! Quando Camelot cair, o caminho para conquistar os outros reinos será fácil. Logo teremos apenas druidas da nossa estirpe no trono de todos os cinco rein... —mas o homem parecia não ter tido tempo de terminar sua sentença. Houve um estrondo e a terra tremeu: vários gritos surgiram. Em seguida, silêncio...
Arthur e Bern ficaram em pé. Seus ouvidos deixavam claro que alguém se aproximava. Logo, um homem apareceu pelo corredor: alto e meio magricela, orelhas grandes que saltavam para fora do cabelo curto, a sua pele branca contrastava com o negro dos seus cabelos e seus olhos azuis carregavam o peso dos invernos que vira, mesmo que sua aparência enganasse sua idade. O homem interrompeu o seu passo quando viu a imagem do jovem príncipe dentro da cela, era como se visse um fantasma à sua frente.
—Sou Arthur Pendragon, príncipe de Camelot! —anunciou Arthur. —Ordeno que me liberte desta cela neste instante!
O homem abriu um sorriso incontido enquanto tirava duas peças de metal do bolso:
—Sem nem um "por favor", e aposto que depois sem um "obrigado"—agachou na frente da porta e começou a tentar abri-la, lançou um olhar para Bern e completou: —E você tem que aguentar isso todo o dia, não é?
—Como você sabe? —perguntou o servo, mas quando percebeu o olhar de confusão e repreensão em Arthur, retrucou: — Quero dizer... Que quer dizer com isso?
O homem abriu a cela e falou:
—Vamos logo, não vamos querer abusar demais da boa sorte.
Arthur e Bern saíram rápido da cela e seguiram aquela pessoa pelo corredor estreito. Quando chegaram na câmara maior, perceberam que aqueles que os aprisionaram foram atingidos por partes do teto da caverna que se soltaram sobre eles durante o terremoto. Andaram a passos rápidos e logo viram a luz do dia. Três cavalos os esperavam do lado de fora. Eles montaram e o homem os conduziu a até uma distância segura.
—Você é um druida? —perguntou Bern, Arthur lançou um olhar repreensivo para que se calasse.
—Eu? Não.
—Mas, você usou magia lá, não usou? —insistiu o servo, passando por cima da ordem do príncipe.
—Porque pensa isso?
—Você causou o terremoto, não foi?
—Foi apenas sorte.
Arthur interferiu:
—Mas, você foi lá especificamente para nos salvar! Senão porque teria dois cavalos a mais?
—Não pense que esses cavalos ficarão com vocês! Eles são meus, eu estava viajando para vendê-los em um vilarejo quando vi vocês sendo carregados para aquela caverna. Eu vi que tinha chances de entrar lá, então, por sorte daquele terremoto, consegui resgatar vocês.
—E o que pretende?
—O que parece? Estou levando vocês de volta para Camelot! Aqui não é lugar para um príncipe.
—Agradeço a sua ajuda, mas daqui farei o meu caminho! Procuro por druidas, você sabe onde posso encontrá-los?
O homem o olhou concentrado e respondeu:
—Errado, você vai voltar para Camelot. Gwe... A Rainha deve estar muito preocupada com o seu desaparecimento.
—Então aqui me despeço! Já disse que faço o meu caminho!
—Não sobre os meus cavalos—argumentou o desconhecido.
—Ótimo, é ouro que você quer pelos cavalos? —perguntou, atirando um saco farto de moedas, mas o homem assim que o apanhou os atirou de volta para o príncipe.
—O que você quer com os druidas?
—Isso diz respeito apenas a mim e ao povo da magia!
—Você parece determinado.
—E estou!
—É mesmo um cabeça dura! —disse rindo, ajeitou rapidamente o lenço vermelho que envolvia o seu pescoço e, antes que Arthur tivesse tempo de se ofender com a provocação, continuou: — Tudo bem. Tem um acampamento aqui perto. Eu levo vocês até lá. É melhor do que viajarem sozinhos. Essas terras não são mais seguras como antigamente.
Arthur fez um movimento afirmativo com a cabeça, satisfeito:
—Será amplamente recompensado!
—Não estou interessado em recompensas.
O príncipe o observou com estranhamento e surpresa. Nunca conhecera uma pessoa como aquela e notou que ainda não sabia sequer o seu nome:
—Como se chama?
—Meu nome é Merlin.
