Olá;P
Eu li este livro e resolvi adaptá-lo para o mundo de Naruto. O livro chama-se O segredo de Emma Corrigan, e é da Sophie Kinsella.
Bem, nem os personagens de Naruto, muito o menos a história, me pertencem, mas eu não me importaria nem um pouco de tê-los pra mim.
Divirtam-se.
É claro que eu tenho segredos.
Claro que sim. Todo mundo tem. É totalmente normal. Tenho certeza de que não tenho mais do que ninguém.
Não estou falando de segredos enormes, de abalar a terra. Do tipo "o presidente dos EUA vai bombardear o Japão e só Will Smith pode salvar o mundo". Só segredos normais, segredinhos do dia-a-dia.
Por exemplo, aqui estão alguns ao acaso, que me vieram à cabeça:
1-Minha bolsa Kate Spade é falsa.
2-Adoro licor de xerez, a bebida mais cafona do universo.
3-Não faço idéia do que significa a sigla Otan. Nem do que se trata.
4-Peso 61 quilos. Não 56 como meu namorado Kiba acha. (Se bem que, em minha defesa, eu estava planejando fazer dieta quando falei isso. E, para ser justa, são só cinco quilinhos a mais.)
5-Sempre achei que Kiba se parece um pouquinho com o Ken. O da Barbie.
6-Às vezes, quando estou bem no meio de uma transa apaixonada, de repente me dá vontade de soltar uma gargalhada.
7-Perdi minha virgindade no quarto de hóspedes com Danny Nussbaum, enquanto mamãe e papai assistiam a Ben-Hur no andar de baixo.
8-Já bebi o vinho que papai mandou guardar por vinte anos.
9-Sammy, o peixinho dourado da casa dos meus pais, não é o mesmo peixinho dourado que mamãe e papai me pediram para tomar conta quando foram ao Egito.
10-Quando minha colega Karin realmente me chateia, eu molho a planta dela com suco de laranja. (O que acontece praticamente todo dia.)
11-Uma vez tive um estranho sonho lésbico com TenTen, minha colega de apartamento.
12-A calcinha fio-dental está me machucando.
13-Sempre tive uma convicção profunda de que não sou como todo mundo, e que há uma vida nova e incrivelmente empolgante me esperando ali na esquina.
14-Não faço idéia do que esse cara de terno cinza está falando.
15-Além disso já esqueci o nome dele.
E só o conheci há dez minutos.
- Nós acreditamos em alianças logísticas formativas – continua ele numa voz nasalada, ressoante – tanto acima quanto abaixo da linha divisória.
- Sem dúvida! – respondo animada, como se dissesse: todo mundo não concorda?
Logísticas. O que significa isso, afinal?
Meu Deus. E se eles me perguntarem?
Não seja estúpida, Sakura. Eles não vão perguntar de repente: "O que significa logísticas?" Eu também sou uma profissional de marketing, não sou? Obviamente sei dessas coisas.
E, de qualquer modo, se mencionarem isso de novo eu mudo o assunto. Ou digo que sou pós-logística ou algo do tipo.
O importante é continuar confiante e parecer profissional. Esta é minha grande chance e não vou estragá-la.
Estou sentada numa sala na sede da Glen Oil, em Glasgow, e quando olho meu reflexo na janela pareço uma empresária de sucesso. O cabelo está alisado, estou usando brincos discretos como mandam nas matérias sobre "como conseguir aquele emprego", e estou com meu novo conjunto Jigsaw, superelegante. (Pelo menos é praticamente novo. Comprei no bazar da Pesquisa do Câncer e preguei um botão para substituir o que faltava, e mal dá pra notar.)
Estou aqui representando a Corporação Panther, onde trabalho. A reunião é para finalizar um acordo promocional entre a nova bebida esportiva Panther Prime, sabor uva-do-monte, e a Glen Oil. Cheguei especialmente de Londres hoje cedo, de avião. (A empresa pagou e tudo!)
Quando cheguei, os caras do marketing da Glen Oil começaram uma conversa comprida, metida a besta, tipo "quem já viajou mais?", sobre milhas aéreas e o vôo noturno para Washington – e acho que eu blefei de modo bem convincente. (Menos quando disse que tinha ido de Concorde para Ottawa, e por acaso o Concorde não vai a Ottawa.) Mas a verdade é que esta é a primeira vez que tenho de viajar para fechar um acordo.
Certo. A verdade verdadeira é que este é o primeiro acordo em que eu trabalho, e ponto final. Estou na Corporação Panther há onze meses, como assistente de marketing, e até agora só me deixaram digitar comunicados, marcar reuniões para outras pessoas, pegar sanduíches e pegar a roupa do meu chefe na lavanderia a seco.
Ou seja, essa é tipo a minha grande oportunidade. E tenho uma esperançazinha secreta de que, se me der bem, talvez seja promovida. O anúncio para o emprego dizia "possibilidade de promoção em um ano", e na segunda-feira terei a reunião de avaliação anual com meu chefe, Shikamaru. Li a parte de "Avaliações" na apostila de apresentação aos funcionários, e ali dizia "uma oportunidade ideal para discutir possibilidades de avanço na carreira".
Avanço na carreira! Ao pensar nisso sinto uma familiar pontada de saudade no peito. Isso mostraria a papai que eu não sou uma fracassada inútil. E a mamãe. E a Kerry. Se eu pudesse ir para casa e dizer bem casualmente: "Aliás, eu fui promovida a executiva de marketing."
Haruno Sakura, executiva de marketing.
Haruno Sakura, vice-presidente (Marketing).
Se tudo der certo hoje. Shikamaru disse que o acordo estava feito, selado e coisa e tal, e que eu só precisava confirmar com a cabeça e apertar a mão deles, que até eu deveria ser capaz de fazer isso. E até agora admito que a coisa está indo bastante bem.
Certo, eu não entendo noventa por cento do que eles estão falando. Mas também não entendi muito da prova oral de francês no GCSE e mesmo assim tirei B.
- Reestruturação de marca... análise... relação custo-benefício...
O sujeito de terno cinza ainda está arengando sobre alguma coisa. Do modo mais casual possível, estendo a mão e puxo seu crachá alguns centímetros na minha direção, para poder ler.
Doug Hamilton. Isso mesmo. Certo, dá para guardar. Doug. "Dou." Fácil de visualizar. Hamil pode virar "ah, meu" ... e...
Certo, esquece. Vou anotar.
Escrevo "reestruturação de marca" e "Doug Hamilton" em meu bloco e faço um pequeno arabesco. Meu Deus, a calcinha está realmente desconfortável. Puxa, fio-dental nunca é muito confortável, na melhor das hipóteses, mas este está particularmente ruim. Deve ser porque é dois números menor do que deveria.
Com certeza porque Kiba comprou pra mim, dizendo à vendedora que eu pesava 56 quilos. Ela concluiu que meu número devia ser 38. Trinta e oito!
(Francamente, acho que ela estava sendo má. A vendedora devia saber que eu estava cascateando.)
De modo que é noite de Natal, nós estamos trocando presentes, e eu desembrulho uma linda calcinha cor-de-rosa. Tamanho 38. E basicamente tenho duas opções.
A: confesso a verdade: "Ela é pequena demais, eu sou tipo 42, e, por sinal, não peso mesmo 56 quilos." Ou...
B: Me enfio nela nem que tenha de usar calçadeiras.
Na verdade ficou boa. Mal dá para ver as linhas vermelhas na pele depois. E isso significou que eu precisei cortar todas as etiquetas das minhas roupas para Kiba nunca ficar sabendo.
Não preciso dizer que desde então eu praticamente nunca usei essa calcinha. Mas de vez em quando olho para ela, tão lindinha e cara na gaveta, e penso: ah, qual é, não pode ser tão apertada assim, e de algum modo consigo me enfiar nela. E foi o que fiz hoje cedo. Até decidi que devia ter perdido peso, porque a sensação não era tão ruim.
Sou uma imbecil iludida.
- ...infelizmente, desde a reestruturação da marca... grande revisão de conceito... sentimos que precisamos considerar sinergias alternativas...
Até agora só fiquei ali sentada balançando a cabeça, pensando que esse papo de reunião de negócios é moleza total. Mas agora a voz de Doug Hamilton começa a cutucar minha consciência. O que ele está dizendo?
- ...dois produtos divergindo... tornando-se incompatíveis...
Que papo é esse de incompatíveis? O que foi aquilo sobre grande revisão de conceito? Sinto um choque de alarme. Talvez isso não seja só perfumaria. Talvez ele esteja dizendo alguma coisa. Depressa, escute.
- Nós apreciamos a parceria funcional e sinérgica desfrutada pela Panther e a Glen Oil no passado – prossegue Doug Hamilton. – Mas você deve concordar que sem dúvida estamos indo em direções diferentes.
Direções diferentes?
É isso que ele esteve falando todo esse tempo?
Meu estômago dá uma cambalhota ansiosa.
Ele não pode estar...
Ele está tentando cancelar o acordo?
- Com licença, Doug – interrompo com minha voz mais relaxada. – Estou prestando muita atenção em tudo. Claro... – E dou um sorriso amigável, do tipo "somos todos profissionais". – Mas será que você poderia... é... recapitular a situação para nos esclarecer...
Em inglês simples, imploro silenciosamente.
Doug Hamilton e o outro cara trocaram olhares.
- Nós estamos um pouco insatisfeitos com seus valores de marca – despeja Doug Hamilton.
- Os valores de marca do produto – corrige ele, me olhando de modo estranho. – Como estive explicando, nós, da Glen Oil, estamos passando por um processo de reestruturação de marca e vemos nossa nova imagem como uma gasolina que se importa, como demonstra nosso novo logotipo com o narciso. E achamos que a Panther Prime, com sua ênfase em esporte e competição, é simplesmente agressiva demais.
- Agressiva? – encaro-o, perplexa. – Mas... é uma bebida de frutas.
Isso não faz sentido. A Glen Oil é uma gasolina que faz fumaça e arruína o mundo. A Panther Prime é uma inocente bebida com sabor de uva-do-monte. Como pode ser agressiva demais?
- Os valores que ela abarca. – Doug sinaliza para as brochuras de marketing na mesa. – Impulso. Elitismo. Masculinidade. O próprio slogan: "Não pare." Francamente, parece um pouco datado. – Ele dá de ombros. – Nós simplesmente não achamos possível uma iniciativa conjunta.
Não. Não. Isso não pode estar acontecendo. Ele não pode estar tirando da reta
Todo mundo no escritório vai pensar que foi minha culpa. Vai pensar que eu estraguei tudo, que fiz uma merda completa.
Meu coração está martelando. Meu rosto está quente. Não posso deixar que isso aconteça. Mas o que vou dizer? Não preparei nada. Shikamaru disse que estava tudo acertado e que eu só precisava apertar a mão deles.
- Com certeza nós vamos discutir isso de novo antes de tomarmos uma decisão – está dizendo Doug. Ele me dá um sorriso rápido. – E, como eu disse, gostaríamos de continuar nossa parceria com a Corporação Panther. Portanto, esta foi uma reunião útil, de qualquer modo.
Ele está empurrando a cadeira para trás.
Não posso deixar isso escapar! Preciso tentar ganhá-los. Tenho de tentar encerrar o acordo.
Fechar o acordo. É isso que eu quis dizer.
- Esperem! – ouço-me dizendo. – Só... esperem um momento! Eu tenho alguns pontos para levantar.
De que estou falando? Eu não tenho nenhum ponto a levantar.
Há uma lata de Panther Prime sobre a mesa, e eu a seguro procurando inspiração. Tentando ganhar tempo, levanto-me, vou até o centro da sala e ergo a lata para todos poderem ver.
- A Panther Prime é... uma bebida esportiva.
Paro, e há um silêncio educado. Meu rosto está pinicando.
- Ela é... hmm... ela é muito...
Ah, meu Deus. O que eu estou fazendo?
Qual é, Sakura. Pense. Pense na Panther Prime... pense na Panther Cola.. pense.. pense...
É! Claro!
Certo, comece de novo.
- Desde o lançamento da Panther Cola no final dos anos 80, as bebidas Panther têm sido sinônimo de energia, empolgação e excelência – exclamo com fluidez.
Graças a Deus. Esse é discurso padrão de marketing para a Panther Cola. Eu o digitei tantos zilhões de vezes que poderia recitá-lo dormindo.
- As bebidas Panther são um fenômeno de marketing – continuo. – O personagem da pantera é um dos mais reconhecidos no mundo, e o clássico slogan "Não Pare" acabou entrando nos dicionários. Agora nós estamos oferecendo à Glen Oil uma oportunidade exclusiva de se juntar a essa marca valiosa e mundialmente famosa.
Minha confiança está crescendo, começo a andar pela sala, gesticulando com a lata.
- Ao comprar uma bebida Panther, o consumidor está sinalizando que vai aceitar apenas o melhor. – Bato na lata com a outra mão. – Ele espera o máximo de sua bebida energética, espera o máximo de sua gasolina, espera o máximo de si mesmo.
Estou voando! Sou fantástica! Se Shikamaru pudesse me ver agora, iria me dar uma promoção no ato!
Vou até a mesa e olho Doug Hamilton direto no olho.
- Quando o consumidor da Panther abre a lata, está fazendo uma escolha que diz ao mundo quem ele é. Eu estou pedindo que a Glen Oil faça a mesma escolha.
Quando termino de falar, planto a lata com firmeza no meio da mesa, ponho o dedo no anel e, com um sorriso maneiro, puxo-o.
É como um vulcão entrando em erupção.
A bebida espumante com sabor uva-do-monte explode num jorro para fora da lata, pousando na mesa, encharcando os papéis e borradores com um sinistro líquido vermelho e... ah, não, por favor, não... escorrendo por toda a camisa de Doug Hamilton.
- Puta que o pariu! – ofego. – Quero dizer, desculpe...
- Meu Deus! – exclama Doug Hamilton irritado, levantando-se e tirando um lenço do bolso. – Essa coisa mancha?
- Hmm... – seguro a lata, desamparada. – Não sei.
- Vou pegar um pano – anuncia o outro cara e salta de pé.
A porta se fecha atrás dele e há um silêncio, exceto pelo som da bebida de uva-do-monte pingando lentamente no chão.
Olho para Doug Hamilton com o rosto quente e o sangue latejando nas orelhas.
- Por favor... – murmuro e pigarreio, com uma rouquidão terrível -, não conte ao meu chefe.
Depois de tudo... fiz merda.
Arrastando os calcanhares pelo saguão do Aeroporto de Glasgow, sinto-me completamente arrasada. No fim, Doug Hamilton foi um doce. Disse que tinha certeza de que a mancha ia sair e prometeu que não contaria a Shikamaru. Mas não mudou de idéia com relação ao acordo.
Minha primeira reunião importante. Minha primeira grande chance – e é isso que acontece. Sinto vontade de desistir de tudo. Sinto vontade de telefonar para o escritório e dizer: "Chega, nunca mais vou voltar e, a propósito, fui eu que estraguei a copiadora daquela vez."
Mas não posso. É minha terceira carreira em quatro anos. Tem de dar certo. Pelo meu próprio bem. Pela minha auto-estima. E também porque devo quatro mil pratas ao meu pai.
- Então, o que você deseja? – pergunta um cara australiano, e eu levanto a cabeça atordoada. Cheguei ao aeroporto com uma hora de folga e fui direto ao bar.
- Hmm... – Minha mente está vazia. – É... vinho tinto. Não, na verdade uma vodca-tônica. Obrigada.
Enquanto ele se afasta, eu me afrouxo de novo no banco. Uma aeromoça com coque de trança vem e se senta a dois bancos de distância. Sorri para mim, e eu dou um sorriso débil de volta.
Não sei como as outras pessoas administram a carreira, realmente não sei. Como minha amiga mais antiga, Tenten. Ela sempre soube que queria ser advogada – e agora: tchã-ram! É advogada de fraudações. Mas eu saí da faculdade sem a mínima pista. Meu primeiro emprego foi numa corretora de imóveis, e só entrei para lá porque sempre gostei de olhar casas, e conheci uma mulher com incríveis unhas pintadas de vermelho numa feira de carreiras, e ela disse que ganhava tanto dinheiro que poderia se aposentar aos 40 anos.
Mas, no minuto em que comecei, odiei. Odiei todos os outros corretores estagiários. Odiei ter de falar coisas como "uma vista adorável". E odiei ter de dar detalhes de casas que custasse pelo menos quatrocentas mil libras quando os compradores diziam poder comprar uma de trezentas mil libras, depois olhá-los de cima, tipo "Você só tem trezentas mil libras? Meu Deus, coitado de você".
Assim, depois de seis meses anunciei que ia mudar de carreira e ia ser fotógrafa. Foi um momento tremendamente fantástico, como num filme ou sei lá o quê. Meu pai emprestou o dinheiro para um curso de fotografia e a máquina, e eu ia me lançar numa carreira criativa e espantosamente nova, e ia ser o início da vida nova...
Só que não aconteceu exatamente assim.
Quero dizer, para começar, você sabe quanto ganha um assistente de fotógrafo?
Nada. Não é nada.
O que, você sabe, não me importaria se alguém tivesse me oferecido um cargo de assistente de fotógrafo.
Solto um suspiro pesado e olho para minha expressão digna de pena no espelho atrás do balcão. Além de todo o resto, meu cabelo, que eu alisei cuidadosamente com um produto especial hoje cedo, ficou todo crespo. Típico.
Pelo menos não fui a única que não chegou a lugar nenhum. Das oito pessoas do meu curso, uma teve sucesso instantâneo e agora tira fotos para a Vogue e coisa e tal, uma se tornou fotógrafa de casamentos, uma teve um caso com o professor, uma foi viajar, uma teve um bebê, uma trabalha na Snappy Snaps e uma está na Morgan Stanley.
Enquanto isso eu me endividei cada vez mais e comecei fazendo serviços temporários e me candidatando a empregos que pagassem alguma coisa. E por fim, há onze meses, comecei como assistente de marketing na Corporação Panther.
O barman coloca uma vodca-tônica na minha frente e me lança um olhar interrogativo.
- Não fique assim – tenta me consolar. – Não pode ser tão grave!
- Obrigada. – Tomo um gole. A sensação é um pouco melhor. Estou tomando o segundo gole quando meu celular começa a tocar.
Meu estômago dá uma cambalhota nervosa. Se for do escritório, vou fingir que não ouvi.
Mas não é, é o número de minha casa piscando na telinha.
- Oi – atendo, apertando o verde.
- Oi! – É a voz de Tenten. – Sou eu! E aí, como foi?
Tenten é minha colega de apartamento e minha amiga mais antiga. Tem cabelos castanhos e mais ou menos 600 de QI e é a pessoa mais legal do mundo.
- Um desastre – respondo arrasada.
- O que aconteceu? Não conseguiu o contrato?
- Não consegui o contrato e ainda dei um banho no diretor de marketing da Glen Oil com bebida de uva-do-monte.
Mais adiante no balcão vejo a aeromoça escondendo um sorriso, e me sinto ficar vermelha. Ótimo. Agora o mundo inteiro sabe.
- Caramba. – Quase posso sentir Tenten tentando pensar em algo positivo para dizer. – Pelo menos você atraiu a atenção deles – exclama, finalmente. – Pelo menos não vão esquecer você depressa.
- Pode ser – digo com a voz mole. – E aí, tem algum recado para mim?
- Ah! Hmm... não. Quero dizer, o seu pai ligou, mas... hmm... você sabe... não foi... – Ela deixa no ar, evasivamente.
- Tenten. O que ele queria?
Há uma pausa.
- Parece que sua prima ganhou um prêmio profissional – conta ela, como se pedisse desculpas. – Eles vão comemorar no sábado, junto com o aniversário da sua mãe.
- Ah. Que bom.
Afundo ainda mais no banco. É só disso que preciso. Minha prima Kerry segurando em triunfo algum troféu prateado de "melhor agente de viagens do mundo, não, do universo".
- E Kiba também ligou, para ver como você estava – acrescenta Tenten rapidamente. – Ele foi mesmo um amor, disse que não queria ligar para o seu celular durante a reunião, para não atrapalhar você.
- Verdade?
Pela primeira vez, hoje, sinto um leve ânimo.
Kiba. Meu namorado. Meu namorado amoroso e sensível.
- Ele é um doce! – continua Tenten. – Disse que estava preso numa reunião importante a tarde toda, mas que cancelou o jogo de squash e perguntou se você quer jantar esta noite.
- Ah – exclamo com um tremor de prazer. – vai ser legal. Obrigada, Tenten.
Desligo e tomo outro gole de vodca, me sentindo muito mais animada.
Meu namorado.
É como Julie Andrews dizia. Quando o cachorro morde, quando a abelha pica... simplesmente lembro que tenho um namorado – e de repente as coisas não parecem mais uma merda tão completa.
Ou sei lá como ela falava.
E não é um namorado qualquer. Um namorado alto, bonito, inteligente, que a Marketing Week chamou de "uma das mentes mais brilhantes da pesquisa de marketing atual".
Fico sentada acalentando minha vodca, deixando que os pensamentos em Kiba fiquem rolando no cérebro e me consolem. O cabelo espetado dele brilhando ao sol, o sorriso que não sai do rosto. O favor que me fez atualizando todos os programas do meu computador sem que eu nem mesmo pedisse, e o modo como ele... ele...
Minha mente fica vazia. Isso é ridículo. Quero dizer, há muita coisa maravilhosa em Kiba. Tipo... as pernas compridas. É. E os ombros largos. Até a vez em que ele cuidou de mim quando eu fiquei gripada. Puxa, quantos namorados fazem isso? Pois é.
Eu tenho muita sorte, tenho mesmo.
Guardo o telefone, passo os dedos pelo cabelo e olho o relógio atrás do balcão. Faltam quarenta minutos para o vôo. Agora não é muito. O nervosismo começa a se arrastar sobre mim como pequenos insetos, e tomo um gole comprido de vodca, esvaziando o copo.
Vai ficar tudo bem, digo a mim mesma pela zilhonésima vez. Vai ficar totalmente ótimo.
Não estou apavorada. Só estou... só estou...
Certo. Estou apavorada.
Eu morro de medo de avião.
Nunca disse a ninguém que tenho medo de avião. É que parece tão idiota! E, puxa, não é que eu tenha fobia nem nada. Não é que eu não consiga entrar no avião. É só que... se pudesse, só ficava em terra.
Antigamente eu não sentia medo. Mas nos últimos anos fui ficando cada vez mais nervosa. Sei que é totalmente irracional. Sei que milhares de pessoas andam de avião todo dia e é praticamente mais seguro do que ficar deitada na cama. A gente tem menos chance de sofrer um acidente aéreo do que... do que de achar um homem em Londres, ou algo do tipo.
Mas mesmo assim. Simplesmente não gosto.
Acho que vou pedir outra vodca rápida.
Quando o vôo é anunciado, já tomei mais duas vodcas e estou me sentindo mais positiva. Quero dizer, Tenten está certa. Pelo menos causei uma impressão, não foi? Pelo menos eles vão se lembrar de quem eu sou. Enquanto vou para o portão de embarque, segurando minha pasta, quase começo a me sentir de novo uma empresária confiante. Algumas pessoas sorriem para mim quando passam, e eu dou um largo sorriso de volta, sentindo um calor de amizade. Veja bem. O mundo não é tão ruim, afinal de contas. É só uma questão de ser positiva. Qualquer coisa pode acontecer na vida, não é? Nunca se sabe o que há depois da próxima esquina.
Chego à porta do avião, e ali, pegando os cartões de embarque, está a aeromoça com coque de trança que eu vi sentada no bar, antes.
- Oi, de novo – digo sorrindo. – Que coincidência!
A aeromoça me encara.
- Oi. Hmm...
- O quê?
Por que ela parece sem graça?
- Desculpe. É só que... você viu que... – Ela sinaliza sem jeito para a minha frente.
- O que é? – pergunto, em um tom agradável. Olho para baixo e congelo, pasma.
Não sei como, minha blusa de seda foi se desabotoando enquanto eu andava. Três botões se abriram e ela ficou toda escancarada na frente.
Meu sutiã está aparecendo. O sutiã de renda cor-de-rosa. O que ficou meio frouxo depois da lavagem.
Era por isso que todo mundo estava sorrindo para mim. Não porque o mundo é um lugar bom, mas porque eu sou a mulher do sutiã cor-de-rosa deformado.
- Obrigada – murmuro, e abotôo a blusa com os dedos desajeitados, o rosto quente de humilhação.
- Não está sendo seu dia de sorte, não é? – consola a aeromoça com simpatia, estendendo a mão para meu cartão de embarque. – Desculpe, eu não pude deixar de ouvir.
- Tudo bem. – Forço um meio sorriso. – É, não está sendo o melhor dia da minha vida. – Há um silêncio curto enquanto ela examina meu cartão de embarque.
- Vou sugerir uma coisa – ela baixa a voz. – Você gostaria de ficar numa classe melhor?
- O quê? – Encaro-a como rosto vazio.
- Anda! Você merece uma folga.
- Verdade. Mas... vocês podem trocar as pessoas de classe, assim?
- Se houver lugares vazios, podemos. Nós usamos nosso critério. E este vôo é muito curto. – Ela me dá um sorriso conspiratório. – Só não espalha, certo?
Ela me leva para a parte da frente do avião e aponta para uma poltrona grande, larga, confortável. Nunca me puseram numa classe melhor na vida! Nem posso acreditar que ela está me proporcionando isso.
- Aqui é a primeira classe? – sussurro, absorvendo a atmosfera calma e luxuosa. Um homem de terno elegantes está digitando num laptop à minha direita, e duas senhoras idosas no canto estão colocando fones de ouvido.
- Classe executiva. Não há primeira classe neste vôo. – Ela ergue a voz até o volume normal. – Está tudo bem para você?
- Perfeito! Muito obrigada.
- Tudo bem. – Ela sorri de novo e se afasta, e eu enfio a pasta embaixo da poltrona da frente.
Uau. Isso é realmente um barato. Poltronas grandes e largas, descansos para os pés e tudo. Vai ser uma experiência completamente prazerosa do início ao fim, digo a mim mesma com firmeza. Puxo o cinto de segurança e o fecho com um gesto casual, tentando ignorar os tremores de apreensão na barriga.
- Gostaria de champanha?
É minha amiga aeromoça, rindo.
- Seria ótimo. Obrigada!
Champanha!
- E para o senhor? Champanha?
O homem na poltrona ao lado da minha ainda nem levantou a cabeça. Está usando jeans e um suéter velho e olha pela janela. Quando se vira para responder eu capto um vislumbre de olhos escuros, barba crescida; um franzido vertical desenhado na testa.
- Não, obrigado. Só um conhaque. Obrigado.
Sua voz é seca e tem sotaque americano. Estou para perguntar educadamente de onde ele é, mas logo ele se vira de volta e olha pela janela outra vez.
O que é ótimo porque, para ser honesta, também não estou muito no clima para conversar.
Certo. A verdade é a seguinte: não gosto disso.
Sei que é classe executiva, sei que tudo é um luxo maravilhoso. Mas mesmo assim meu estômago está com um nó de medo.
Enquanto decolávamos eu contei muito devagar, com os olhos fechados, e isso meio que deu certo. Mas fiquei sem fôlego mais ou menos o 350. Então fico só sentada, bebericando champanha, lendo uma matéria na Cosmopolitan sobre "30 coisas para fazer antes de você fazer 30 anos". Estou me esforçando um bocado para parecer uma alta executiva de marketing na classe executiva. Mas, ah, meu Deus. Cada sonzinho minúsculo me assusta; cada tremor me faz prender o fôlego.
Com um verniz externo de calma, pego o cartão plastificado de instruções e passo o olhar por elas. Saídas de emergência. Posição cabeça entre as pernas. Se for necessário colete salva-vidas, por favor ajude primeiro os idosos e as crianças. Ah, meu Deus...
Por que eu estou olhando isso? Em que vai me ajudar ficar olhando as imagens de pessoazinhas pulando no oceano com o avião explodindo atrás? Enfio as instruções de segurança rapidamente de volta na bolsa da poltrona e tomo um gole de champanha.
- Com licença, senhora. – Uma aeromoça de cachos ruivos apareceu ao meu lado. – A senhora está viajando a negócios?
- Sim – respondo, alisando o cabelo com uma pontada de orgulho. – estou.
Ela me entregou um folheto intitulado "Instalações executivas", onde há uma foto de empresários conversando animadamente na frente de uma tabuleta com um gráfico.
- São informações sobre nossa nova sala da classe executiva no aeroporto de Gatwick. Nós oferecemos instalações para teleconferências e salas de reunião. Estaria interessada?
Certo. Eu sou uma alta executiva. Sou uma alta executiva viajando em classe executiva.
- É possível – respondo, olhando casualmente para o panfleto. – Sim, eu poderia usar uma dessas salas para... passar informações para minha equipe. Eu tenho uma equipe grande, e obviamente eles precisam de muitas informações. Sobre negócios. – Pigarreio. – Principalmente... logísticas.
- Gostaria de que eu marcasse uma sala para a senhora agora? – sugere a aeromoça, solícita.
- Hmm, não, obrigada – digo depois de uma pausa. – No momento minha equipe está... em casa. Eu dei o dia de folga a todo mundo.
- Certo. – A aeromoça parece meio perplexa.
- Mas quem sabe em outra ocasião – continuo, rapidamente. – E já que você veio aqui, eu estava imaginando. Esse som é normal?
- Que som? – A aeromoça inclina a cabeça.
- Esse. Esse zumbido, vindo da asa.
- Não estou ouvindo nada. – Ela me olha com simpatia. – A senhora fica nervosa em aviões?
- Não! – exclamo imediatamente, e dou um risinho. – Não, não fico nervosa! Só... estava imaginando. Só por interesse.
- Verei se consigo descobrir para a senhora – promete ela, gentil. – Aqui está, senhor. Algumas informações sobre nossas instalações executivas no Gatwick.
O americano pega seu folheto sem dizer nada e o deixa de lado sem ao menos olhar, e a aeromoça vai em frente, cambaleando um pouco quando o avião dá uma sacudida.
Por que o avião está sacudindo?
Ah, meu Deus. Um súbito jorro de medo me ataca sem aviso. Isso é loucura. Loucura! Ficar sentada nessa caixa enorme e pesada, sem ter como sair, milhares e milhares de metros acima do chão...
Não consigo suportar sozinha. Tenho uma necessidade avassaladora de falar com alguém. Alguém que me tranqüilize. Alguém seguro.
Kiba.
Instintivamente pesco o celular, mas a aeromoça vem correndo.
- Sinto muito, mas não é permitido usar o aparelho a bordo do avião – informa ela com um sorriso luminoso. – Poderia deixá-lo desligado?
- Ah... desculpe.
Claro que não posso usar o celular. Eles só disseram isso mais ou menos cinqüenta e cinco zilhões de vezes. Sou uma retardada. De qualquer modo, não faz mal. Não importa. Eu estou bem. Guardo o telefone na bolsa e tento me concentrar num velho episódio de Fawlty Towers que está passando no telão.
Talvez eu comece a contar de novo. Trezentos e quarenta e nove. Trezentos e cinqüenta. Trezentos e...
Porra. Minha cabeça levanta bruscamente. O que foi essa sacudida? Alguma coisa bateu na gente?
Certo, não entre em pânico. Foi só uma sacudida. Tenho certeza de que está tudo bem. Onde é que eu estava?
Trezentos e cinqüenta e um. Trezentos e cinqüenta e dois. Trezentos e cinqüenta...
E é isso aí.
Esse é o momento.
Tudo parece se fragmentar.
Ouço os gritos como uma onda na cabeça, quase antes de perceber o que está acontecendo.
Ah meu Deus. Ah meu Deus Ah meu Deus Ah meu Deus Ah meu Deus Ah... Ah... NÃO. NÃO. NÃO.
Estamos caindo. Ah, meu Deus, estamos caindo.
Estamos mergulhando. O avião está caindo pelo ar como uma cabeça no teto. Está sangrando. Eu estou ofegando, agarrando-me a poltrona, tentando não fazer a mesma coisa, mas me sinto sendo levada para cima, é como se alguém estivesse me puxando, como se a gravidade subitamente tivesse se invertido... Malas voam, bebidas se derramam, uma tripulante caiu, está agarrando uma poltrona...
Ah meu Deus. Ah meu Deus. Certo, agora está ficando mais devagar. Está... está melhor.
Porra. Eu simplesmente... eu simplesmente não posso. Eu...
Olho para o americano, e ele está segurando o assento com tanta força quanto eu.
Estou com vontade de vomitar. Acho que vou vomitar. Ah meu Deus.
Certo. Está... está meio que... voltando ao normal.
- Senhoras e senhores – vem uma voz pelo auto-falante, e a cabeça de todo mundo se levanta bruscamente. – Aqui fala o capitão.
Meu coração está dando cambalhotas. Não consigo ouvir. Não consigo pensar.
- Estamos enfrentando um pouco de turbulência, e as coisas podem ficar agitadas durante algum tempo. Liguei os avisos para apertar os cintos e gostaria que todos voltassem aos seus lugares o mais rápido poss...
Há outro repelão enorme, e a voz dele é abafada por gritos em todo o avião.
É como um pesadelo. Um pesadelo de montanha-russa.
Os tripulantes estão se sentando e prendendo os cintos. Uma das aeromoças está enxugando sangue no rosto. Há um minuto elas estavam todas felizes distribuindo amendoim doce.
É isso que acontece com outras pessoas em outros aviões. Pessoas nos vídeos sobre segurança. Não comigo.
- Por favor, fiquem calmos – insiste o capitão. – Assim que tivermos mais informações...
Ficar calma? Eu não consigo respirar, quanto mais ficar calma. O que nós vamos fazer? Temos de ficar aqui sentados enquanto o avião corcoveia feito um cavalo descontrolado?
Ouço alguém atrás de mim recitando "Ave Maria cheia de graça..." e um novo pânico de causar engasgo me domina. Tem gente rezando. É sério.
A gente vai morrer.
A gente vai morrer.
- O que foi? – O americano ao lado olha para mim, com o rosto tenso e branco.
Eu falei aquilo em voz alta?
- A gente vai morrer.
Encaro o rosto dele. Talvez esta seja a última pessoa que eu verei ainda viva. Observo as rugas desenhadas em volta dos olhos escuros; o queixo forte, sombreado pela barba crescida.
De repente o avião cai de novo, e eu dou um grito involuntário.
- Não acho que a gente vá morrer – afirma ele. Mas também está agarrando os braços da poltrona. – Eles disseram que era só turbulência...
- Claro que disseram! – Posso ouvir a histeria na minha voz. – Eles não diriam exatamente: "Certo, pessoal, é isso aí, vocês todos vão pro beleléu!" – O avião dá outro salto aterrorizantes e eu me pego agarrando a mão do sujeito, em pânico. – A gente não vai sobreviver. Sei que não. É isso. Estou com 25 anos, pelo amor de Deus. Não estou pronta. Não realizei nada. Não tive filhos. Nunca salvei uma vida... – Meu olhar cai aleatoriamente na matéria sobre "30 coisas para fazer antes de fazer 30 anos". – Eu ainda não escalei uma montanha, não fiz tatuagens, eu nem sei se tenho um ponto G...
- Perdão? – diz o homem, parecendo pasmo, mas eu mal escuto.
- Minha carreira é uma piada completa. Eu não sou uma alta executiva. – Aponto meio lacrimosa para o meu tailleur. – Eu não tenho uma equipe! Sou apenas uma assistente de merda e acabei de ter minha primeira reunião importante, e foi um desastre completo. Não entendo quase nada do que as pessoas estão falando, não sei o que significa logística, nunca vou ser promovida, devo quatro mil pratas ao meu pai e nunca me apaixonei de verdade...
Paro de repente, com um tremor.
- Desculpe – falo, e solto o ar com força. – Você não quer ouvir essas coisas.
- Está tudo bem – responde o sujeito.
Meu Deus. Eu estou pirando de vez.
E, de qualquer modo, o que eu acabo de dizer não é verdade. Porque estou apaixonada por Kiba. Deve ser a altitude ou alguma coisa confundindo minha mente.
Ruborizada, tiro o cabelo do rosto e tento me controlar. Certo, vamos tentar ir em frente de novo. Trezentos e cinqüenta e... seis. Trezentos e...
Ah meu Deus. Ah meu Deus. Não. Por favor. O avião está pulando de novo. Estamos mergulhando.
- Eu nunca fiz nada para orgulhar meus pais. – As palavras se derramam da minha boca antes que eu possa impedir. – Nunca.
- Tenho certeza de que não é verdade – responde o homem, com gentileza.
- É sim. Talvez eles tivessem orgulho de mim antigamente. Mas aí minha prima Kerry veio morar conosco e de repente meus pais não agüentavam mais me ver. Só conseguiam olhar para ela. Kerry estava com 14 anos quando chegou, e eu tinha 10, e achei que ia ser superlegal, sabe. Tipo ter uma irmã mais velha. Mas não foi...
Não consigo para de falar. Simplesmente não consigo.
Toda vez que o avião treme ou dá um pulo outra torrente de palavras sai aleatoriamente da minha boca, como água jorrando numa cachoeira.
É falar ou gritar.
- ...ela era campeã de natação e de tudo, e eu só era... nada, em comparação...
"...curso de fotografia, e eu achei mesmo que ia mudar minha vida...
"... 56 quilos, e achei mesmo que ia fazer dieta...
"Me candidatei a todos os empregos do mundo. Estava tão desesperada que me candidatei até...
"...garota horrorosa chamada Karin. Chegou uma mesa nova um dia desses, e ela simplesmente pegou, mesmo sabendo que a minha mesa é um negociozinho ridículo e minúsculo...
"...às vezes eu molho aquela planta dela com suco de laranja, para ela ver o que é bom...
"...um doce de garota, a Hinata, do departamento pessoal. A gente tem um código secreto. Ela vem e diz: 'Posso checar uns números com você, Sakura?' E na verdade significa: 'Vamos dar um pulo no Starbucks...'
"...presentes medonhos, e eu tenho de fingir que gosto deles...
"...o café no trabalho é a coisa mais nojenta que alguém já bebeu, um veneno absoluto...
"...coloquei no meu currículo "Nota A na prova de matemática do GCSE", mas na verdade só tirei C. Sei que foi desonesto. Sei que não deveria ter feito isso, mas eu queria tanto conseguir o emprego...
O que aconteceu comigo? Normalmente há uma espécie de filtro que me impede de falar tudo em que estou pensando; que me mantém controlada.
Mas o filtro parou de funcionar. Tudo está se empilhando num jorro enorme e aleatório, e não consigo parar.
- Às vezes acho que acredito em Deus, porque senão, de onde foi que nós viemos? Mas então penso: é, mas e a guerra e as outras coisas...
"...uso calcinhas fio-dental porque não marcam. Mas é tão desconfortável...
"...tamanho 38, e eu não sabia o que fazer, por isso falei: 'Uau, é maravilhosa...'
"...pimentão assado, minha comida predileta...
"...entrei para um grupo de leitura, mas não consegui ler Grandes Esperanças. Por isso só folheei o final e fingi que tinha lido.
"...dei toda a comida para o peixe, sinceramente não sei o que aconteceu...
"...é só escutar aquela música dos Carpenters, 'Close to you', e eu caio no choro...
"...realmente queria ter peitos maiores. Quero dizer, não tamanho Extra GGG, não enormes e estúpidos, mas você sabe, maiores. Só para saber como é...
"...o encontro perfeito começaria com o champanha simplesmente aparecendo na mesa, como se por mágica...
"...eu simplesmente pirei, comprei escondido um pote enorme de sorvete Häagen-Dazs e comi tudo, e nunca contei a Tenten.
Não percebo nada em volta. O mundo se reduziu a mim e a esse estranho, a minha boca cuspindo todos os pensamentos e segredos mais íntimos.
Mal sei o que estou dizendo agora. Só sei que a sensação é boa.
Terapia é assim?
- ...o nome dele era Danny Nussbaum. Mamãe e papai estavam embaixo vendo Ben-Hur, e eu me lembro de ter pensado, se é por causa disso que o mundo fica tão abalado, então o mundo é maluco...
"...deitar de lado, porque assim a fenda entre os seios parece maior...
"...trabalha com pesquisa de marketing. Eu me lembro de ter pensado na primeira vez em que o vi: uau, ele é bonito. É muito alto e largo, porque é meio americano, e tem uns olhos incríveis. E ai ele me convidou para sair.
"...sempre tomo um copo de licor de xerez antes de um encontro, só para acalmar os nervos...
"Ele é maravilhoso. Kiba é maravilhoso. Eu tenho muita sorte. Todo mundo vive dizendo que ele é ótimo. É gentil, bom, bem-sucedido e todo mundo fala que nós somos o casal perfeito...
"...eu nunca contaria isso a ninguém, nem em um milhão de anos. Mas às vezes acho que ele é bonito demais. Meio tipo um boneco daqueles, sabe? Tipo o Ken da Barbie.
E agora que cheguei ao assunto Kiba, estou dizendo coisas que nunca disse a ninguém. Coisas que nem sabia que estavam na minha cabeça.
- ...dei um lindo relógio de couro no Natal, mas ele usa um negócio digital laranja, porque dá a temperatura na Polônia, um negócio idiota desses...
"...me levou a um monte de shows de jazz e eu fingi que gostei para ser educada, e agora ele acha que eu adoro jazz...
"...todos os filmes do Woody Allen de cor, e diz todas as falas antes da hora, e me deixa pirada...
"...me olha como se eu estivesse falando uma língua estrangeira...
"...decididos a achar meu ponto G, por isso a gente passou a semana inteira transando em posições diferentes, e no fim eu estava acabada, só queria uma pizza e assistir ao Friends.
"...ele ficava dizendo: como foi, como foi? E no fim eu simplesmente inventei qualquer coisa, disse que foi absolutamente incrível, que pareceu que meu corpo inteiro estava se abrindo como uma flor, e ele perguntou que tipo de flor, e eu disse uma begônia...
"...não dá para esperar que a paixão do começo dure. Mas como dá para saber se a paixão se desbotou virando um compromisso bom e de longo prazo ou uma merda do tipo 'a gente não se gosta mais'...
"...cavaleiro de armadura brilhante não é uma opção realista. Mas há uma parte minha que quer um romance gigantesco, espantoso. Quero paixão. Quero ser tirada do chão. Quero um terremoto ou... não sei, um redemoinho enorme... alguma coisa empolgante. Às vezes parece que tem uma vida nova e cheia de aventura me esperando ali adiante, e se ao menos eu pudesse...
- Com licença, senhorita?
- O quê? – Levanto a cabeça atordoada. – O que é? – A aeromoça com coque de trança está sorrindo para mim.
- Nós pousamos.
Encaro-a.
- Nós pousamos?
Isso não faz sentido. Como podemos ter pousado? Olho em volta – e, realmente, o avião está parado. Estamos no chão.
Sinto-me como Dorothy. Há um segundo estava girando em Oz, batendo os calcanhares, e agora acordei chapada, quieta e normal de novo.
- Não estamos mais pulando – murmuro estupidamente.
- Paramos de pular há um bom tempo – observa o americano.
- Nós... nós não vamos morrer.
- Não vamos morrer – ele concorda.
Olho-o como se fosse a primeira vez – e a coisa bate. Eu estive expondo os bofes há uma hora para esse completo estranho. Só Deus sabe o que falei.
Acho que quero sair do avião agora mesmo.
- Desculpe – falo sem jeito. – Você deveria ter me parado.
- Ia ser difícil. – Há um sorriso minúsculo nos olhos dele. – Você estava meio empolgada.
- Estou tão sem graça! – Tento sorrir, mas nem consigo encarar o sujeito. Puxa, eu contei a ele sobre a calcinha. Falei do meu ponto G.
- Não se preocupe. Todos nós ficamos estressados. Foi um tremendo vôo. – Ele pega sua mochila e se levanta. Depois me olha. – Você consegue ir para casa numa boa?
- Sim. Vou ficar numa boa. Obrigada. Boa sorte! – grito para suas costas, mas não creio que ele tenha ouvido.
Lentamente junto minhas coisas e saio do avião. Estou suando, meu cabelo está espalhado por todo canto e a cabeça está começando a latejar.
O aeroporto parece luminoso, imóvel e calmo depois da atmosfera intensa do avião. O chão parece tão firme! Sento-me quieta numa cadeira de plástico durante um tempo, tentando recuperar o controle, mas, quando finalmente me levanto, ainda me sinto tonta. Ando com uma sensação turva, mal acreditando que estou aqui. Estou viva. Sinceramente não pensei que voltaria ao chão.
- Sakura! – ouço alguém gritando quando saio do portão de desembarque, mas não levanto os olhos. Há um monte de Sakuras no mundo.
- Sakura! Aqui!
Levanto a cabeça incrédula. Será...
Não. Não pode ser, não pode...
É o Kiba.
Ele está lindo de morrer. Sua pele tem aquele bronzeado escandinavo, e os olhos estão mais lindos do que nunca, e ele está correndo para mim. Isso não faz sentido. O que ele está fazendo aqui? Quando nos encontramos ele me agarra e me aperta com força.
- Graças a Deus – murmura ele com a voz rouca. – Graças a Deus. Você está bem?
- Kiba, o que... o que você está fazendo aqui?
- Eu telefonei para a companhia aérea para perguntar a que horas você chegaria, e eles disseram que o avião encontrou uma turbulência terrível. Eu simplesmente tive de vir ao aeroporto. – Ele me olha. – Sakura, eu vi seu avião pousar. Eles mandaram uma ambulância direto para lá. Pensei... – Ele engole em seco. – Não sei exatamente o que pensei.
- Eu estou bem. Só estava... tentando me recuperar. Ah, meu Deus, Kiba, foi aterrorizante. – De repente minha voz ficou toda trêmula, o que é ridículo, porque agora estou em perfeita segurança. – Chegou uma hora em que eu pensei que ia morrer.
- Quando você não passou pelo portão... – Kiba pára e me olha em silêncio por alguns segundos. – Acho que percebi pela primeira vez a profundidade do meu sentimento por você.
- Verdade? – hesito.
Meu coração está martelando. Parece que vou cair a qualquer momento.
- Sakura, eu acho que a gente deveria...
Se casar? Meu coração pula de medo. Ah, meu Deus. Ele vai me pedir em casamento, bem aqui no aeroporto. O que vou dizer? Não estou preparada para me casar. Mas se eu disse não ele vai embora com raiva. Merda. Certo. O que vou dizer é: nossa, Kiba, eu preciso de um tempo para...
- ...morar junto – termina ele.
Sou uma imbecil iludida. Obviamente ele não ia me pedir em casamento.
- O que você acha? – Ele acaricia meu cabelo gentilmente.
- Hrm... – Coço meu rosto seco, tentando ganhar tempo, incapaz de pensar direito. Morar com Kiba. Meio que faz sentido. Há algum motivo para recusar? Estou me sentindo toda confusa. Alguma coisa está cutucando meu cérebro; tentando me mandar uma mensagem.
E surgem na minha cabeça algumas coisas que eu falei no avião. Alguma coisa sobre nunca ter me apaixonado de verdade. Alguma coisa sobre Kiba não me entender realmente.
Mas então... aquilo não passou de papo furado, não foi? Quero dizer, eu achei que ia morrer, pelo amor de Deus. Não estava na minha condição mais lúcida.
- Kiba, e a sua reunião importante? – lembro-me de súbito.
- Cancelei.
- Cancelou? – Encaro-o. – Por minha causa?
Agora estou me sentindo realmente tonta. As pernas mal me sustentam. Não sei se é resultado da viagem de avião ou amor.
Meu Deus, olha só para ele. É alto, bonito e cancelou uma reunião importante e veio me resgatar.
É amor. Tem de ser amor.
- Eu adoraria morar com você, Kiba – sussurro e, para minha total perplexidade, caio no choro.
Acordo na manhã seguinte com o sol ofuscando as pálpebras e um delicioso cheiro de café no ar.
- Bom dia! – ouço a voz de Kiba, lá do alto.
- Bom dia – murmuro, sem abrir os olhos.
- Quer café?
- Quero, por favor.
Viro-me e enterro a cabeça latejante no travesseiro, tentando afundar no sono de novo por alguns minutos. O que normalmente eu acharia muito fácil. Mas hoje há algo me incomodando. Será que me esqueci de alguma coisa?
Enquanto escuto Kiba fazendo barulho na cozinha e o minúsculo som da televisão ao fundo, minha mente tateia em busca de pistas. É manhã de sábado. Eu estou na cama de Kiba. Nós saímos para jantar – ah, meu Deus, aquela viagem de avião medonha... ele foi ao aeroporto, e disse...
Nós vamos morar juntos!
Sento-me no momento em que Kiba entra com duas canecas e um bule de café. Está lindo com um roupão branco felpudo. Sinto uma pontada de orgulho e me estico para lhe dar um beijo.
- Oi – diz ele rindo. – Cuidado. – E me entrega o café. – Como está se sentindo?
- Tudo bem. – Afasto o cabelo do rosto. – Meio grogue.
- Não me surpreende. – Kiba levanta as sobrancelhas. – Ontem foi um dia incrível.
- Sem dúvida – confirmo com a cabeça e tomo um gole de café. – E então. Nós vamos... morar juntos!
- Se você ainda estiver a fim.
E é verdade. Estou.
Sinto-me como se tivesse ficado adulta de um dia para o outro. Vou morar com meu namorado. Finalmente minha vida está indo para onde devia!
- Vou ter que dar a notícia ao Shino... – Kiba sinaliza para a parede, na direção do quarto de seu colega de apartamento.
- E eu, a Tenten e Ino.
- E vamos ter de achar o lugar certo. E você vai ter de prometer que vai manter tudo arrumado. – Ele me dá um riso provocador.
- Até parece! – Finjo ultraje. – Você é que tem cinqüenta milhões de CDs.
- Isso é diferente!
- Diferente como, se é que posso perguntar? – Planto a mão no quadril, como um personagem de seriado de TV, e Kiba ri.
Há uma pausa, como se os dois tivéssemos ficado sem gás, e tomamos um gole de café.
- Bom – diz Kiba depois de um tempo -, preciso ir. – Ele está fazendo um curso de computação neste fim de semana. – Sinto muito, não vou poder ver os seus pais.
E sente mesmo. Quero dizer, como se já não fosse o namorado perfeito, ele gosta de visitar meus pais.
- Tudo bem – respondo, benevolente. – Não faz mal.
- Ah, e eu esqueci de dizer. – KIba me dá um riso misterioso. – Adivinha para que eu consegui bilhetes?
- Aah! – exclamo empolgada. – Hmm...
Estou para dizer "Paris!".
O festival de jazz! – Kiba ri de orelha a orelha. – O Quarteto Dennisson! É o último show deles este ano. Lembra que a gente viu um show deles no Ronnie Scott's?
Por um momento não consigo falar.
- Uau! – consigo, finalmente. – O... Quarteto Denisson! Eu lembro.
Eles tocaram clarinetas. Ininterruptamente, durante umas duas horas, sem parar para tomar fôlego.
- Sabia que você ia gostar. – Kiba toca meu braço com afeto, e eu lhe dou um sorriso débil.
- Ah, gostei!
O negócio é que eu provavelmente vou acabar gostando de jazz um dia. Na verdade, tenho certeza de que vou.
Olho orgulhosa enquanto ele se veste, escova os dentes e pega a pasta.
- Você usou o meu presente – observa ele com um sorriso satisfeito, olhando para minha calcinha caída no chão.
- Ah... eu uso sempre – exclamo, cruzando os dedos às costas. – Ela é linda!
- Tenha um ótimo dia com sua família. – Kiba vem até a cama e me beija, e então hesita. – Sakura?
- Sim?
Ele se senta na cama e me olha sério. Meu Deus, os olhos dele são tão azuis!
- Tem uma coisa que eu queria dizer. – Ele morde o lábio. – Você sabe que nós sempre falamos francamente sobre nosso relacionamento.
- É... sim – concordo, meio apreensiva.
- É só uma idéia. Talvez você não goste. Quero dizer... você é que decide.
Olho perplexa para Kiba. O rosto dele está ficando rosado, e ele está realmente sem graça.
- Ah, meu Deus. Será que ele vai começar a mostrar alguma tara? Será que ele quer que eu vista alguma fantasia ou sei lá o quê?
Eu não me importaria de bancar uma enfermeira. A mulher-gato do Batman. Seria maneiro. Eu arranjaria umas botas brilhantes...
- Eu estava pensando que... talvez... a gente poderia... – Ele pára sem jeito.
- Sim? – Coloco a mão em seu braço, dando força.
- A gente poderia... – Ele pára de novo.
- Sim?
Há outro silêncio. Quase não consigo respirar. O que ele quer que a gente faça? O quê?
- A gente podia começar a se chamar de "querido" e "querida" – desabafa, num jorro sem graça.
- O quê – respondo com a voz chapada.
- É só que... – Kibafica mais rosado ainda. – Nós vamos morar juntos. É um tremendo compromisso. E eu notei recentemente que a gente nunca usa nenhuma... palavra carinhosa para chamar o outro.
Encaro-o, sentindo-me deslocada.
- Não?
- Não.
- Ah. – Tomo um gole de café. Pensando bem, ele está certo. A gente não usa. Por que não?
- Então, o que você acha? Só se você quiser.
- Sem dúvida! – concordo, rapidamente. – Quero dizer, você está certo. Claro que a gente deveria. – Pigarreio. – Querido.
- Obrigada, querida – ele se abre em um sorriso amoroso, e eu sorrio de volta, tentando ignorar os minúsculos protestos dentro da cabeça.
Isso não está direito.
Eu não me sinto uma querida.
Querida é uma pessoa casada, com pérolas e um carro com tração nas quatro rodas.
- Sakura? –Kiba está me encarando. – Alguma coisa errada?
- Não sei bem! – Dou um riso sem jeito. – Só não sei se eu me sinto uma "querida". Mas... você sabe. Eu posso acabar me acostumando.
- Verdade? Bem, a gente pode usar outra coisa. Que tal "amor"?
Amor? Ele está falando sério?
- Não – respondo. – "Querida" é melhor.
- Ou "meu doce"... "docinho"... "anjo"...
- Talvez. Olha, a gente não pode deixar isso para depois?
O queixo de Kiba cai, e eu me sinto mal. Qual é, eu consigo chamar meu namorado de "querido", pelo amor de Deus. É isso que é ser adulta. Só vou ter de me acostumar.
- Kiba, desculpe. Não sei o que há de errado comigo. Talvez eu ainda esteja meio tensa por causa daquele vôo. – Seguro a mão dele. – Querido.
- Tudo bem, querida. – Ele sorri outra vez para mim, com a expressão ensolarada de volta, e me dá um beijo. – Vejo você mais tarde.
Está vendo? É fácil.
Ah meu Deus.
Tanto faz. Não importa. Imagino que todos os casais tenham esse tipo de momento incômodo. Na certa é perfeitamente normal.
Demoro quase meia hora para ir do apartamento de Kiba em Maida Vale a Islington, onde moro. E quando abro a porta encontro Tenten no sofá. Está rodeada de papéis e tem a testa concentrada. Tenten trabalha demais. Algumas vezes realmente passa do ponto.
- Em que está trabalhando? – pergunto com simpatia. – Aquele processo de fraude?
- Não, é essa matéria – comenta Tenten abstratamente, e levanta uma revista colorida. – Diz que desde a época de Cleópatra as proporções da beleza são as mesmas, e que há um modo científico de saber o quanto a gente é bonita. A gente toma um monte de medidas...
- Ah, sei! – exclamo, interessada. – Você tirou quanto?
- Estou fazendo as contas. – Ela franze a vista para a página outra vez. – 53... menos 20... são... Ah meu Deus! – Ela olha a página, consternada. – Tirei só 33!
- Qual é a nota máxima?
- Cem! Tirei 33, em cem!
- Ah, Tenten. Isso aí é uma merda.
- Eu sei – responde Tenten, séria. – Eu sou feia. Eu sabia. Você sabe, no fundo, durante toda a vida eu sempre soube mas...
- Não! – exclamo tentando não rir. – Eu quis dizer que a revista é uma merda! Não se pode medir a beleza com alguma tabela estúpida. Olha pra você! – Faço um gesto em direção a Tenten, que tem os maiores olhos castanhos do mundo, uma pele clara e estupenda e é francamente estonteante, mesmo que o último corte de cabelo seja um pouco demais. – Puxa, em quem você vai acreditar? No espelho ou numa revista estúpida e insensata?
- Numa revista estúpida e insensata – insiste Tenten, como se isso fosse perfeitamente óbvio.
Sei que ela está meio brincando. Mas Tenten está com pouca auto-estima desde que seu namorado Lee lhe deu o pé na bunda. Na verdade estou meio preocupada com ela.
Isso é a proporção áurea da beleza? – pergunta nossa outra colega de apartamento, Ino, batendo no piso da sala com os saltos altos. Está usando jeans rosa-claros e uma blusa branca e justa. E, como sempre, está perfeitamente bronzeada e arrumada. Em teoria, Ino tem um emprego numa galeria de esculturas. Mas parece passar a vida depilando, repuxando e massageando partes do corpo e saindo com banqueiros cujo salário ela sempre verifica antes de dizer sim.
Eu me dou bem com Ino. Mais ou menos. Só que ela tem a mania de começar todas as frases com "Se você quiser uma pedra no dedo" e "Se você quer morar num endereço com SW3" e "Se você quiser ser conhecida como uma anfitriã realmente boa".
Quero dizer, eu não me incomodaria em ser conhecida como uma anfitriã realmente boa. Você sabe. Só que não é bem esse o item principal na minha lista de prioridades.
Além disso, a idéia de Ino para uma anfitriã realmente boa é convidar um monte de amigos ricos, decorar todo o apartamento com coisas cheias de frescura, encomendar um monte de comida gostosa em bufês e dizer a todo mundo que ela é que fez, e depois mandar as colegas de apartamento (eu e Tenten) ao cinema e ficar afrontada quando elas ousam se esgueirar de volta no meio da noite e preparar um chocolate quente para tomar.
- Eu também fiz esse teste – informa ela, pegando sua bolsa Louis Vuitton cor-de-rosa. Seu pai lhe deu de presente quando ela rompeu com um cara depois de três encontros. Como se estivesse de coração partido.
Veja bem, ele tinha um iate, então acho que ela ficou mesmo de coração partido.
- Quanto você tirou? – pergunta Tenten.
- Tirei 89. – Ela se borrifa com perfume, joga o cabelo louro e comprido para trás e sorri para si mesma ao espelho. – Então, Sakura, é verdade que você vai morar com o Kiba?
Olho-a boquiaberta.
- Como você sabe?
- É o papo que corre na rua. Shino ligou para Rupes hoje, falando de críquete, e contou a ele.
- Você vai morar com o Kiba? – pergunta Tenten incrédula. – Por que não me contou?
- Eu ia contar, claro. Não é maravilhoso.
- Mau passo, Sakura. – Ino balança a cabeça. – Tática muito ruim.
- Tática? – exclama Tenten, revirando os olhos. – Tática? Ino, eles estão namorando, e não jogando xadrez.
- O namoro é um jogo de xadrez – retruca Ino, passando rímel nos cílios. – Mamãe diz que a gente sempre tem de olhar adiante. Tem de planejar estrategicamente. Se der o passo errado, você se ferra.
- Besteira – retruca Tenten em desafio. – Namoro é encontro. Encontro de almas gêmeas.
- Almas gêmeas... – ecoa Ino, desconsiderando o argumento, e me olha. – Só se lembre, Sakura, que se você quer uma pedra no dedo, não vá morar com o Kiba.
Seus olhos dão um olhar rápido, para a fotografia sobre a lareira, em que ela está ao lado do príncipe William num jogo de pólo de caridade.
- Ainda está se guardando para a realeza? – pergunta Tenten. – Quantos anos mesmo ele é mais novo do que você, Ino?
- Deixa de ser boba! – reage ela bruscamente, como rosto tingido de vermelho. – Às vezes você é tão imatura, Tenten!
- De qualquer modo, eu não quero uma pedra no dedo – respondo.
Ino levanta suas sobrancelhas perfeitamente arqueadas como se dissesse "sua coitada ignorante", e pega a bolsa.
- Ah – acrescenta ela de súbito, com os olhos se estreitando. – Alguma de vocês duas pegou emprestado meu casaco Joseph?
- Não – respondo inocentemente.
- Eu nem sei qual é – Tenten dá de ombros.
Não posso olhar para Tenten. Tenho certeza de que a vi com ele.
Os olhos azuis de Ino estão examinando nós duas como se fossem algum tipo de radar.
- Porque eu tenho braços muito finos – avisa ela – e não quero que as mangas fiquem frouxas. E não pensem que não vou notar, porque vou. Tchau.
No minuto em que ela saiu, Tenten e eu nos entreolhamos.
- Merda – diz Tenten. – Acho que deixei no trabalho. Ah, tudo bem, eu pego na segunda. – Ela dá de ombros e volta a ler a revista.
Certo Então a verdade é que de vez em quando nós duas pegamos emprestadas as roupas de Ino. Sem pedir. Mas, em nossa defesa, ela tem roupas demais, quase nunca nota. Além do mais, segundo Tenten, é um direito humano básico pegar roupas emprestadas de colegas de apartamento. Ela diz que praticamente faz parte da constituição britânica não-escrita.
- E, de qualquer modo – acrescenta Tenten -, IOno tem uma dívida comigo, por eu ter escrito uma carta ao conselho sobre aquelas multas de estacionamento. Sabe, ela nem me agradeceu. – Tenten ergue o olhar de um artigo sobre Nicole Kidman. – Então, o que você vai fazer mais tarde? Quer ver um filme?
- Não posso – respondo relutante. – Hoje vai ter o almoço de aniversário da minha mãe.
- Ah, é. – Ela faz uma cara simpática. – Boa sorte. Espero que seja legal.
Tenten é a única pessoa no mundo que faz alguma idéia de como me sinto quando vou à casa dos meus pais. E nem ela sabe de tudo.
