Adeus
Eles haviam discutido, isso nem era exatamente uma novidade já que as brigas entre eles ocorriam quase que diariamente, mas desta vez foi diferente. Não que ele tivesse gritado com ela, ou feito qualquer movimento para agredi-la, ele era educado de mais para isso. A grande diferença foi o fato de ela o ter magoado, assim como ele a havia magoado também.
Começou com a chegada do embaixador da Calormânia. Era neste tipo de ocasião que Aravis tinha a oportunidade de saber de seus conterrâneos o que se passava no país e mendigar notícias de sua família que ela a muito havia deixado para trás. Ela sabia que Cor não aprovava inteiramente os longos questionários que ela impunha aos emissários do Tisroc e era por isso que ela acabou desenvolvendo o hábito da discrição.
Aqueles homens costumavam encará-la de forma desagradável e reprovadora, como se tentassem passar um sermão silencioso nela. Não era direito, nem era aceito o fato de uma garota calormana, uma tarcaína de alta estirpe, desobedecer ao pai e fugir de casa mediante grande mentira e ir parar num país bárbaro. Ver uma garota como ela, usando roupas da corte da Arquelândia, se comportando como uma forasteira e servindo de companhia constante a dois príncipes era um escândalo e Aravis sabia que só era respeitada graças à proteção do rei Lune.
Ela já estava acostumada a ser olhada de forma estranha por embaixadores e emissários, mas aquele em especial parecia diferente. Ele não a encarava com reprovação e moralismos, nos olhos negros daquele senhor pairava uma sombra de pena dirigida a ela e Aravis não estava acostumada a este sentimento.
Quando ela perguntou ao embaixador sobre seu pai, ele fez uma breve reverência a ela e disse ser o portador de notícias ruins. Kidrask Tarcaã, seu velho pai, estava terrivelmente doente e mesmo os médicos do Tisroc não tinham esperanças de que ele recuperasse a saúde. Esta informação foi tudo o que ela precisou para decidir voltar à casa de seu pai, nem que fosse para vê-lo uma ultima vez e implorar seu perdão.
Foi ai que as coisas entre ela e Cor ficaram delicadas. Talvez fosse pelo fato de que ele agora era Príncipe Regente em função do rei Lune estar em idade muito avançada para dar conta dos assuntos de Estado, talvez fosse a memória muito nítida dos insultos que Kidrask Tarcaã havia lançado a ela na presença de toda família real. A verdade é que quando ela comunicou ao príncipe e amigo suas intenções a resposta estava muito longe daquilo que ela esperava.
- Você não vai voltar a Calormânia. – ele disse firme, olhando diretamente para ela com uma frieza adquirida com o tempo.
- Meu pai está morrendo! – ela falou exasperada – Por tudo o que é sagrado, eu preciso vê-lo, Cor!
- Não vou permitir que atravesse o deserto, muito menos que volte àquela casa! Você sabe exatamente o tipo de barbaridade que vai ouvir de toda sua família. – ele disse se levantando de uma vez. Cor havia se tornado um rapaz de determinação, um príncipe exemplar e ela sabia que se continuassem naquele ritmo tudo o que ela conseguiria era uma dor de cabeça.
- Cor, você não pode me impedir de tentar buscar o perdão do meu pai. Ele está velho, talvez seja a ultima chance que terei para vê-lo. – ela abaixou o tom e tentou ser persuasiva. Olhou para o príncipe com olhos piedosos e tentou aproximar-se. Ela havia notado, que quando fazia isso, as bochechas dele ficavam coradas e ele dificilmente conseguia dizer não a ela. Alguns diziam que ela havia aprendido a domar o príncipe, outros mais atrevidos diziam que ela havia aprendido a seduzi-lo com promessas falsas.
Cor pareceu vacilar por um instante. Encarou-a com olhos cheios de duvida, mordeu o lábio inferior, sentiu a boca secar e então virou o rosto para que a face de feiticeira dela parasse de confundi-lo. Ele era um príncipe que se esforçava para fazer aquilo que era certo, lutava para proteger a todos aqueles que dependiam dele e Aravis se encaixava nessa condição. Ele a protegeria, não importava como, nem que ele tivesse que protegê-la de toda uma família de tarcaãs.
- Isso não vai acontecer, Aravis. – ele disse fechando os olhos para não ver a indignação estampada no rosto dela – Não só indefiro seu pedido, como também a proíbo de ir por conta própria. – ele não estava vendo, mas sabia que a esta altura ela estava chorando e muito provavelmente o odiava. Seria melhor que ele a fizesse chorar, que ele a magoasse com palavras duras, do que permitir que sua amiga fosse lançada aos cães ferozes sem nenhuma proteção. Ele só queria que ela entendesse que tudo aquilo era para o bem dela.
- Quem você pensa que é para dizer o que posso e o que não posso fazer, Shasta? – ela rosnou furiosa, em meio a lagrimas descontroladas. Cor se virou para encará-la, tão raivoso quanto ela. Aravis o chamou pelo antigo nome calormano, ela raramente fazia isso e quando fez o objetivo era bem claro. Ela tentava se reafirmar como uma nobre, como alguém que por muitos anos foi superior a ele e que por mais que as coisas tivessem mudado ele jamais deixaria de ser o escravo fugitivo, assim como ela jamais deixaria de ser uma tarcaína.
- Eu sou Cor, o Príncipe Regente e Herdeiro Coroado do trono da Arquelândia. – ele disse sério, encarando-a com determinação e inflexibilidade – Dentro destas terras, dentro deste palácio, eu tenho toda autoridade para dizer o que você pode ou não fazer! E eu digo que não permito que saia deste palácio para ir a Calormânia.
- Me dê um bom motivo. – ela exigiu. A expressão no rosto dele suavizou, ao ponto dela pensar que ele esta preste a implorar a ela que fosse razoável.
- Só estou tentando fazer o melhor pra você. – e para ela aquela justificativa soou muito parecida com a que ouvi da boca do próprio pai quando este decidiu casá-la com Achosta Tarcaã. Foi tudo o que ela precisou para dar as costas a Cor, enquanto a raiva e a decepção tomavam conta dela.
Por mais que fossem amigos há anos e quisessem bem um ao outro, Aravis não suportava a idéia de ter de acatar ordens dele, mesmo que fosse um príncipe. Foi quando ela percebeu que a liberdade que ela tanto sonhou e conseguiu desfrutar por anos estava desaparecendo à medida que Cor tomava consciência de seu poder e que insistia em afirmar que sabia o que era melhor para ela.
Se por um lado ele tinha razão ao afirmar que ela não era bem vinda na casa do pai, ela não podia evitar a necessidade de revê-lo, ainda que fosse para sofrer mais. Sua consciência só estaria em paz no dia em que conseguisse o perdão dele e ela não desejava que o velho tarcaã fosse para a cova com este terrível desentendimento pensando em seu peito.
Ela não aceitaria isso, nem mesmo vindo de Cor. Não importava se ela lhe devia tudo, até mesmo a própria vida. Ela não entregaria a ele sua liberdade e se fosse preciso ela fugiria, exatamente como estava determinada a fazer naquele momento.
Aravis preparou uma sacola com dinheiro, mantimentos, duas mudas de roupa ao estilo calormano e ordenou a um dos garotos do estábulo que selasse seu cavalo sem que ninguém visse. Ela tinha certeza que Cor ficaria com raiva dela quando descobrisse, mas já estavam tão habituados a brigar e fazer as pazes que ela esperava que o desentendimento passasse rapidamente.
Já estava tarde e o palácio estava silencioso. Aravis pegou a bolsa, pronta para sair, mas ela não havia notado que Cor estava em pé, escorado na porta do quarto, olhando para ela com a expressão mais sofrida que ela já vira no rosto dele. Os olhos azuis, sempre tão límpidos, estavam turvos pela decepção, seus ombros pareciam pesar, o cabelo dourado estava desarrumado de baixo da pequena coroa. Ela notou que ele parecia mais velho do que realmente era. Ele havia se tornado um rapaz bonito.
Ela respirou fundo e jogou a bolsa novamente sobre a cama. Não havia sentido em tentar passar por ele, quando Cor havia deixado bem claro que ela estava proibida de deixar o palácio para voltar a Calormânia. Nem que ela implorasse, coisa que não ia acontecer, ele permitiria que ela saísse do quarto.
- O que está fazendo nos meus aposentos? – ela tentou não abordar o assunto diretamente.
- Eu tinha a intenção de lhe pedir desculpas por hoje, mas acho que mudei de idéia. – ele disse num tom doloroso de ouvir – Me desculpe por entrar em seus aposentos sem permissão. – ele deu as costas a ela e fez menção a deixar o quarto.
- Já faz um bom tempo que você deixou de vir até aqui. – ela disse numa constatação um tanto saudosa.
- Nós crescemos, era adequado que você tivesse sua privacidade respeitada. – ele disse se virando para ela mais uma vez. – Você sempre prezou sua liberdade, achei que assim estaria assegurando ela a você. – aquilo doeu nela como um tapa na cara. Aravis se sentiu envergonhada como há anos não se sentia. – Se você precisa tanto ir então vá, mas espere até amanhã e eu terei uma escolta adequada para acompanhá-la. Corin já concordou em ir com você.
- Isso tudo é desnecessário. – ela respondeu constrangida – Posso ir sozinha.
- Não diga bobagens. É uma viagem perigosa para se fazer sozinha. – ele disse – Se tenho de aceitar isso, então me deixe estipular algumas condições para a minha tranqüilidade.
- Está bem. – ela respondeu quase num sussurro. Um longo momento de silêncio se seguiu, tornando a situação ainda mais desconfortável para ambos. Ela se sentou sobre a cama e ouviu os passos cuidadosos dele até ela. Os dedos longos de Shasta seguraram uma mecha do cabelo escuro e encaracolado dela, algo que ele costumava fazer quando estavam sozinhos. Ela pensava que isso era mais um sinal de reafirmação do poder dele. No passado, se ele tocasse uma tarcaína, estaria sujeito a morte.
- Eu achei que nunca veria o dia em que você sentiria necessidade de fugir de mim. – Cor quebrou o silêncio e ela preferiu que ele não o tivesse feito. Em todos estes anos, em meio a todas as discussões, nada nunca pareceu tão terrível quanto vê-lo magoado como estava agora e a culpa era dela. – Só espero não viver para ver o dia em que você sentirá necessidade de tirar a própria vida para se livrar de mim. – ele disse enquanto cheirava a mecha do cabelo dela. – Só por precaução, Corin foi ordenado a não permitir que você chegue perto de qualquer arma. Nem mesmo sua adaga e sua cimitarra você poderá carregar.
- Eu não quero me livrar de você, Cor. – ela disse enquanto secava uma lágrima traiçoeira – E essas proibições são ridículas.
- Não faz diferença agora. Você ia fugir de qualquer jeito e eu sofreria exatamente como estou sofrendo agora. – ele disse – Achei que fossemos amigos, que você confiava em mim. – ela não conseguiu pensar em uma defesa para si e diante do silêncio dela o príncipe Cor foi embora.
Ela dormiu muito mal naquela noite, entregue a um choro baixo e convulsivo. Não sabia por que estava se sentindo tão infeliz, tão miseravelmente infeliz, quando tinha um quarto luxuoso e pessoas que se preocupavam com ela, tratando-a como alguém da família. Ela tinha Cor, se é que ele ainda a queria por perto depois de tudo, e talvez fosse isso, a mera perspectiva de perder seu grande amigo que trazia aqueles sentimentos. Talvez amizade não fosse mais o bastante para ela, como já aparentava não ser o bastante para ele.
Agora ela cavalgava, de cabeça erguida, tentando fazer de conta que nada poderia abalar sua confiança, quando na verdade estava totalmente inconsolável. Cor não foi se despedir dela, mas em uma noite providenciou uma escolta de dez soldados, quatro criados, entre eles um conselheiro real, e duas servas para ela. Corin vinha cavalgando ao lado dela, sorridente como de costume.
A pesar da aparência, dois irmãos jamais foram tão diferentes quanto eram os dois príncipes da Arquelândia. Enquanto Cor era comedido, tímido, quieto, sério e responsável, Corin era brincalhão, falante e espalhafatoso, sempre disposto a comprar uma briga e um imã para confusões. O mais novo sempre foi o companheiro mais divertido, mas ela nunca conseguiu se sentir tão segura com ele quanto se sentia com o príncipe herdeiro.
Corin encarava aquela viagem com entusiasmo. A pesar de não gostar de calormanos de forma geral, por causa do incidente envolvendo a rainha Susan, Corin desenvolveu um gosto peculiar por garotas calormanas. Ele costumava dizer que elas eram exóticas, pareciam saídas de um conto de fadas, usando suas roupas estranhas e cheirando a jasmim e especiarias, mas Aravis havia se tornado muito arquelona para o gosto dele.
A viagem com toda comitiva demorava um pouco mais. Os príncipes insistiam em levar a jornada a ritmo lento, alegando que era o mais adequado para uma dama. Quando Cor decretou aquilo ela teve vontade de rir na cara dele e lembrá-lo de que ambos haviam atravessado o deserto em condições muito piores anos atrás. Outra coisa que a irritava era a proibição às armas. Corin, seguindo as ordens do irmão, não permitia que ela usasse nem uma faca para passar manteiga no pão.
Já estavam na altura do Grande Oasis, logo estariam em Tashban, onde o pai dela se encontrava. Sentir o ar pesado do deserto era angustiante e a ausência de Cor piorava tudo. Ela estava habituada a ele, estar ali, sozinha, com um outro príncipe fanfarrão, simplesmente não parecia certo.
Ela substituiu os vestidos da corte por roupas calormanas, próprias para cavaleiros. Corin olhava para ela de forma estranha enquanto ela se sentava dentro da tenda improvisada, quando o acampamento era montado. Ele havia se habituado a ver Aravis como uma lady e não como uma tarcaína, com turbante, alpargatas de bico fino e curvo, usando calças de tecido fino e túnica. Ela parecia uma figura que ele conhecia das histórias que contavam sobre o harém do Tisroc, uma concubina, uma odalisca.
Ela tentava ignorar o olhar insistente dele, sentia-se desconfortável com a forma como ele a cercava de cuidados. Parecia que Corin a via pela primeira vez na vida e acabara ficando meio bobo com o calor do deserto. Na cabeça do jovem príncipe, por mais que seu irmão tivesse uma inclinação em especial pela garota, não havia mau nenhum em observá-la de perto. Se um dia Cor decidisse que a queria, então Corin não daria qualquer passo na direção da tarcaína, mas naquele exato momento a idéia de ter alguém como Aravis parecia instigante.
Chegaram à Tashban no quarto dia de viagem, o que a deixou muito satisfeita, e foram surpreendidos por notícias muito piores do que se imaginava. Aravis não conseguiria falar com seu pai uma ultima vez. O tarcaã havia falecido e seu corpo seria sepultado naquele mesmo dia. Por se tratar de um homem importante, o próprio Tisroc estaria presente na cerimônia.
Assim que se instalaram no palácio, como era apropriado a uma comitiva real, Aravis desapareceu por uma hora, se trancou no quarto e quando saiu parecia alguém totalmente diferente. Corin a encarou assustado. As roupas coloridas e vivas foram substituídas por vestes brancas, um manto branco cobria a cabeça dela, não havia qualquer sinal de maquiagem ou jóias. Os olhos dela estavam vermelhos e pontuados por uma dor profunda. Não havia nela nenhum sinal de esperança, nenhum traço de vida. Aravis era como um pergaminho em branco.
Preocupado, ele a acompanhou até a propriedade da família dentro dos muros da capital. A mansão suntuosa estava lotada de nobres e servos que prestavam seus sentimentos a viúva do tarcaã. No centro do salão de festas, o corpo de um homem idoso, vestido ricamente, descansava dentro de um caixão branco. Ao lado do defunto, uma mulher ainda jovem e de aparência elegante, estava vestida como Aravis e recebia saudações.
Os olhos de Aravis se cruzaram com os olhos da mulher. Os nobres abriram espaço para que a filha do tarcaã passasse, acompanhada do príncipe. Corin se sentiu incomodado com os olhares e os comentários feitos em voz baixa. A mulher que ele presumiu ser a viúva se colocou entre Aravis e o corpo de Kidrask, encarando a garota como se fosse portadora de uma doença contagiosa.
- O que faz aqui? – a mulher perguntou indignada.
- Vim me despedir do meu pai. Que a paz dos deuses o acompanhe. – Aravis respondeu lançando um olhar breve ao caixão.
- Você não tem este direito! Não é mais filha dele! – a viúva esbravejou – Dês do dia que deixou esta casa você se tornou uma completa estranha, uma mulher bárbara!
- O sangue dele corre nas minhas veias. É meu direito de sangue poder dizer a ele o meu adeus. – Aravis encarou sua madrasta com firmeza. Os convidados, estarrecidos com a discussão, apenas cochichavam entre si. – Saia da minha frente.
- SAIA DA MINHA CASA! – a madrasta gritou e Corin deu um passo a frente, involuntariamente, com os punhos em posição.
- Não devia falar assim com a tarcaína, senhora. – Corin disse entre dentes.
- Tarcaína? – a mulher debochou – Olhe para ela! Nem calormana mais ela pode se considerar! Ela não passa de uma vadia bárbara! A concubina de dois príncipes que será atirada ao vento quando se cansarem dela! Ela não é uma tarcaína! Ela é uma vergonha que nenhum homem descente aceitaria por esposa! Nem mesmo um arquelonio aceitaria!
Corin estava prestes a avançar sobre a mulher venenosa, como um touro enfurecido e descontrolado, mas Aravis o impediu, segurando-o pelo braço. Ele olhou para ela. Não havia nenhum sinal de revolta, nenhum sinal de indignação ou discordância. Aravis concordava com cada insulto, cada ofensa, de forma resignada. Ela secou uma lágrima que escapou de seus olhos escuros. Ignorando a madrasta, ela avançou até o caixão silenciosamente e ninguém ousou pará-la.
Ela se curvou sobre o corpo do pai e beijou-lhe a testa fria. Ela acariciou o rosto velho e imóvel com cuidado. Ela chorou silenciosa, lágrimas de saudade.
- Adeus, luz do meu dia, deleite dos meus olhos. Adeus, pai. – ela se despediu com dignidade.
Afastou-se do corpo e voltou a encarar a madrasta, de uma maneira quase submissa. Corin não se conformava com o desrespeito que sua amiga era tratada. Era humilhante, era repulsivo. Cor tinha razão quando quis impedi-la de voltar a Calormânia, ele tinha todas as razões do mundo.
Aravis estava pronta para deixar a casa, mas Corin a segurou antes que pudesse dar mais um passo. Ele encarou a madrasta da garota com olhos determinados, tão determinados que fizeram a viúva recuar um passo.
- Não vamos sair daqui antes que a senhora peça desculpas por suas ofensas. – Corin disse firme.
- Eu não farei isso. Ela não merece! – a mulher retrucou defensiva.
- A senhora não só ofendeu lady Aravis como ofendeu um príncipe da Arquelandia. – Corin disse furioso – Teve a audácia de chamá-la de concubina de dois príncipes, na minha frente. Pois que fique claro, isso é uma grande calúnia. Ela não é uma concubina, é a noiva de um príncipe da Arquelandia! Peça perdão à minha noiva! – Corin falou convicto, tão convicto que Aravis levou um susto com a súbita mentira.
Ignorando o fato de que tudo não passava de uma farsa, Corin se sentiu vitorioso ao ver aquela mulher desprezível gaguejar diante dele, enquanto a alta nobreza calormana presente encarava tudo com grande espanto e medo da reação do príncipe.
- Estou esperando pelo pedido de desculpas a minha noiva. – ele insistiu – E já que Kidrask Tarcaã está morto, aproveito e reclamo pelos direitos de Aravis enquanto filha.
- Do que está falando? – a viúva perguntou. Seu rosto havia perdido toda cor. Corin trincou os dentes e Aravis o encarou surpresa.
- O dote. – Corin disse – Aravis ainda não é casada. A lei calormana determina que a herança passa para os filhos varões, mas às filhas solteiras fica assegurado o dote correspondente ao seu status. Como se trata de uma tarcaína, é direito que ela receba pelo menos um quinto da fortuna do pai.
- Ela não pertence mais a esta família. – a mulher rebateu com a voz débil.
- O sangue dela não deixou de ser o de uma filha de Kidrask Tarcaã só porque ela deixou esta casa. Lady Aravis é, possivelmente, o maior motivo de orgulho que esta casa tem. Ela será a esposa de um príncipe e isso reforçará a paz entre calormanos e arquelonios. – Corin nunca foi tão determinado, nem tão seguro de si. Aravis estava habituado a vê-lo como um príncipe devotado as facilidades da realeza, nunca o imaginou capaz de defender qualquer coisa e aquela demonstração a fez sentir segurança. – Pague o que é direito e peça perdão à minha noiva.
- Este não é o melhor lugar para se falar em herança e dote. Quanto a sua noiva. Mil perdões, senhora. – a mulher murmurou, enquanto fuzilava Aravis com os olhos – Eu não fazia idéia do que estava dizendo.
- Esqueça isso. – Aravis murmurou.
- Acho que devemos ir, minha amada noiva. – Corin falou, segurando a mão de Aravis e posicionando-a na curda de seu braço.
- Sim, nós devemos. – ela respondeu em voz baixa e eles deixaram o funeral e uma grande algazarra para trás.
Analisando seus motivos para ter dito tudo aquilo, Corin percebeu num instante de iluminação divina que havia um motivo para que ele estivesse junto de Aravis naquela viagem. Cor havia confiado a ele a tarefa de protegê-la, não importava o que. Isso significava protegê-la das calúnias, protegê-la das humilhações e injustiças.
Pela primeira vez ele percebeu que Aravis tinha uma existência trágica. Para Cor, a fuga da Calormânia representava o início de uma vida plena, a maior conquista que ele havia alcançado. Enquanto era conhecido como Shasta, ele não tinha nada a perder e fugir para o norte era a única chance de melhora. Para Aravis, a fuga foi proveitosa, porque evitara um casamento arranjado, mas ao mesmo tempo desastrosa. Ao deixar a Calormânia ela deixou tudo o que mais amava.
E agora ela estava sentada na pequena sala destinada a comitiva real, diante dele. O choro não havia parado nem por um minuto. Ela cruzou os braços sobre o tronco, numa tentativa de se segurar, de mostrar algum controle sobre suas emoções. Os soluços o estavam enlouquecendo e Corin não conseguiu mais observar tanta tristeza sem tentar oferecer a ela algum conforto.
Ele foi até ela, num movimento brusco, e a abraçou. A princípio ela tentou afastá-lo, tentou mantê-lo longe de sua miséria, mas ele era forte e ela não tinha mais forças. Sem ter o que fazer, Aravis chorou livremente, molhando com suas lágrimas a túnica que ele usava.
- Por favor, pare. – ele implorou – Eu sei que está sofrendo, sei que está infeliz, mas eu não sei o que fazer para ajudar. E não consigo vê-la tão desolada. – ele beijou a testa dela e afagou os cabelos ondulados e negros.
- Você não precisava ter dito aquilo. – ela disse num soluço – Ela estava certa em me acusar.
- Não, ela não estava. E eu não podia permitir que você fosse humilhada daquela maneira. – Corin disse – Fui encarregado de protegê-la, e faço isso com prazer.
- Cor mandou que mentisse pra me salvar? – ela questionou. A nota de mau humor deu a ele esperança de que ela estava se recuperando.
- Cor não me disse nada do tipo. Fiz porque era o certo. – Corin disse tranqüilo – Talvez tenha sido meio impensado, mas para mim faz sentido.
- Do que está falando?
- Você é a filha que meu pai nunca teve. – Corin disse sorrindo – É uma nobre e possivelmente minha melhor amiga. Já nos vimos nos piores e melhores momentos e partilhamos tanta coisa...Se Cor não teve a decência de fazer isso, então cabe a mim corrigir essa falha. – Corin sussurrou de uma maneira carinhosa. Ela não se lembrava de vê-lo agir assim, parecia muito diferente do rapaz que ganhou o título de "Punhos de Aço" e muito semelhante ao jeito tranqüilo que ela associava a figura de Cor. – Casa comigo. Isso calaria a boca do mundo inteiro e faria meu pai muito feliz.
- Isso não faz sentido, Corin. – ela disse cansada – Você está fazendo isso por pena de mim e, se eu aceitasse, seria por pura fraqueza.
- Pense de outra maneira. – ele disse segurando o rosto dela entre as mãos – Se eu estou fazendo isso é porque não me incomodo em imaginar uma vida com você do meu lado. Chega a ser um pensamento agradável, eu seria muito feliz assim. Antes de ser minha esposa você seria uma grande amiga. E se você aceitar, será porque se sente da mesma maneira. Pense o quanto quiser a respeito. Enquanto isso deixe que pensem que tudo é verdade.
- Você não tem nada dentro dessa sua cabeça. – ela murmurou esboçando um sorriso fraco. Ele se sentiu satisfeito com a reação dela.
- Pelo menos sou capaz de fazê-la sorrir. É um ponto a meu favor neste pedido. – Corin disse amistoso – Mandei o mensageiro voltar à sua casa e requerer seu dote.
- Por que está insistindo nisso? – ela questionou secando as lágrimas.
- Imagino como deva se sentir. Vivendo na corte e praticamente dependendo de nós, isso deve ser desconfortável pra alguém tão orgulhosa e determinada quanto você. – Corin disse sorrindo e ela corou – Você não tem que se sentir culpada, fazemos isso de coração e por gratidão a tudo o que fez por nós. Mas ter seus próprios pertences e renda, isso a deixaria feliz, não é?
- Me agradaria muito. – ela murmurou.
- Então está decidido. É um direito seu, vou assegurar que usufrua dele. – Corin sorriu. – Assim que recebermos uma resposta voltaremos para Anvar. Não quero ficar aqui mais do que o necessário. – ele disse convicto – E Cor tinha razão sobre manter você no palácio. Se eu tivesse a menor noção das ofensas absurdas que você ouviria, teria sido o primeiro a ir contra suas ambições.
Dois dias depois do funeral e depois de muitas negociações, a madrasta de Aravis permitiu que o dote fosse enviado para Anvar. Aravis e Corin cavalgaram todo caminho de volta e fizeram um tempo excepcional durante a viagem. Foi quando chegaram ao castelo que as coisas estremeceram mais uma vez.
Cor esperava por eles nos portões do castelo, sua expressão era grave e solene. Os olhos dele pareceram analisá-la minuciosamente em suas roupas calormanas. Um lampejo de melancolia passou pelo rosto pálido dele. Era como se ele estivesse diante de uma miragem ou algo assim. Corin foi até ele, sorridente e disposto a cumprimentar o irmão, mas a recepção de Cor foi um tanto fria.
Ele se dirigiu a ela como um raio, ou um tornado. Ríspido, caótico e veloz.
- Meus pêsames pela morte de seu pai, my Lady. – ele disse solene, mas ainda carinhoso.
- Obrigada, alteza. – ela respondeu – Obrigada por ter providenciado a minha viagem.
- Espero que tenha corrido tudo bem. – ele falava como se falasse com um emissário totalmente desconhecido e isso a incomodava.
- Perfeitamente. Foi uma viagem tranqüila. – ela falou melancólica.
- Eu sinto muito por ter tentado impedi-la. – ele sussurrou – Mas também não me agrada nem um pouco as informações que chegaram aos meus ouvidos.
- Mais tarde podemos falar a respeito. Eu me sinto exausta. – ele concordou com a cabeça.
- É claro. Descanse o quanto quiser. – ela deu um paço em direção ao palácio, mas Cor a segurou pelo braço de leve – Essas roupas que você está usando... Elas lhe caem tão bem quanto eu me lembrava. – ele sussurrou para ela. O príncipe herdeiro não notou, mas seu irmão lhe lançou um olhar de reprovação.
- Obrigada, alteza. – ela agradeceu e se foi para o quarto, dando as costas a ele. Uma vez que Aravis não estava mais ali, agora Cor podia encarar o próprio irmão, seu mais novo rival.
Nota da autora: Quando estava lendo as crônicas, O Cavalo e Seu Menino foi a que mais me cativou, não só pelos personagens, mas pelo ambiente em que se passa a história. Aravis e Cor são personagens consistentes e intrigantes. Esta é minha visão de como as coisas mudaram para eles ao longo do tempo e eles passaram de amigos à...Vocês sabem, me falta uma palavra adequada, "sweethearts" seria o mais próximo do significado que eu quero XD. Não acho que a vida de Aravis foi fácil ao mudar para a Arquelândia, como eu já disse, ela perdeu tudo o que era familiar e querido a ela. Cor, por outro lado, ganhou uma vida nova e muito melhor do que a que tinha. E o Corin...Bem, o Corin é um caso a parte XD.
Espero que gostem e comentem.
Bjux
Bee
