A Profecia Secreta de Valfodr
"Peço silêncio a todo o povo sagrado, dos mais nobres aos mais humildes, todos os filhos de Heimdallr. Eu, Valfodr, contarei-lhes histórias dos homens... sim, aquelas que primeiro me recordo. Lembro dos gigantes, nascidos no princípio... Aqueles que com o tempo me geraram. Me lembro dos mundos, nove sustentados pela grande árvore.
Asgardr, o mundo dos guerreiros divinos, Vanaheimr, o mundo dos senhores da natureza, Alfheimr, terra dos elfos tão brilhantes quanto o sol, Svartalfheimr, as entranhas terrestres onde vivem os elfos escuros, Jotunheimr, onde vivem os gigantes do frio, Muspellheimr, o mundo dos gigantes das chamas, Nidavellir, onde vivem os ferreiros anões, Niflheimr, a terra daqueles que já se foram, e Midgardr, a morada da humanidade, forjada por minhas próprias mãos, e pelas mãos de meus irmãos.
Para cada mundo, criado um artefato sagrado, capaz de dar grande poder para um monarca digno. Um dia, os nove monarcas irão surgir, e com eles, o fim... Ragnarök.
Nío heimr, nío riddari."
Eco 01
Frio! Surge o primeiro dos nove!
O dia amanhecia calmo em Midterst City, uma pequena cidade escondida pelos bosques do território japonês. Grande pólo de plantio de grãos, Midterst era todos os dias visitada por diversos empreendedores, interessados em comprar as mais diversas quantidades dos produtos ali cultivados e levá-los para as grandes cidades do país. Os pobres agricultores, é claro, cobravam preços baixíssimos, com o único objetivo de levar mais rapidamente o sustento para suas famílias.
Hokuo despertou ali quando os primeiros raios de sol banharam sua face suja e feriu os olhos fechados, tanta era sua intensidade. Ele se virou e abriu os olhos, observando a sarjeta que rodeava o rio que cortava a cidade, um lugarzinho triste que chamava de lar. Se levantou do chão e bateu nas roupas, tentando expulsar os grãos de poeira, mesmo que isso fosse o menor de seus problemas. Estava usando um grande casaco que um dia fora bege, mas agora estava escuro e desbotado, sua calça jeans estava rasgada em vários pontos e seus coturnos pretos estavam lascados e um dos pés não tinha sola. Seu aroma não era nada agradável.
Ele inspirou o cheiro da manhã e mesmo com os cabelos escuros e curtos estarem sujos e ensebados e o corte em sua bochecha direita sangrava ameaçando uma infecção, Hokuo sorriu.
– Acordou então, Hokuo!
O garoto olhou para cima do barranco que terminava na margem do rio e avistou um homem de meia-idade, baixa estatura, usando bermuda caqui, uma camisa florida e um chapéu de palha. Seu par de óculos de armação redonda e dourada escondiam olhos miúdos e tiravam a atenção da coleção de rugas no rosto, e levava nas mãos frágeis uma sacola plástica. Era o Sr. Sakuraba, um aposentado que vivia por ali e sempre que possível presenteava Hokuo com algum alimento. Subindo o barranco com cuidado, Hokuo se aproximou do velho e lhe cumprimentou com um aperto de mão.
– Teve uma noite agitada para sair com um corte desses no rosto, não? – perguntou Sakuraba.
Hokuo enrusbeceu.
– Não foi nada Sr. Sakuraba... Eu escorreguei.
– Ora, ora... Não adianta mentir para mim garoto.
Sakuraba sorriu e ergueu a sacola.
– Pegue... Alguns curativos, pão, água e algumas frutas.
– Já disse várias vezes que o senhor não precisa me ajudar...
– E eu já disse várias vezes que faço isso porque quero. Pegue.
Hokuo suspirou e pegou a sacola com relutância.
– Ótimo. E lembre-se, se a noite não estiver boa, pode ir até minha casa. – disse o Sr. Sakuraba, acenando e continuando seu caminho pela rua vazia.
Hokuo não se lembrava de onde tinha vindo, e nem se ao menos tinha alguma família. Ele apenas se lembra de acordar no bosque que circunda Midterst quando criança, talvez com cerca de 12 anos, vivendo pelas ruas desde então, tentando não chamar atenção ou atrapalhar as pessoas. Algumas almas caridosas lhe doavam comida, roupas e curativos para quando se feria, mas nenhuma pessoa o ajudou tanto quanto o Sr. Sakuraba. Ele até mesmo ofereceu-se para tomar a guarda do pequeno garoto, mas Hokuo veemente negou. Por outro lado, outras pessoas detestavam sua presença e se sentiam de alguma forma ameaçados, como os jovens que o espancaram na noite anterior e lhe presentearam com um corte no rosto.
As vezes ele sonhava durante o repouso, talvez lembranças antigas, talvez apenas ilusões criadas por sua cabeça, mostrando lugares distantes e mágicos, talvez o que sua mente interpretava de seu antigo lar, quando não era nada além de uma criança. Naquela noite, depois de um dia comum limpando a sujeira dos outros nas ruas, ajudando cães perdidos a encontrarem seus donos e fugindo de gangues de rua, Hokuo teve um desses sonhos.
Primeiro viu um grande palácio dourado, com centenas de torres gigantescas, portas duplas pesadas de ouro puro, brilhando na luz do sol. Em seguida, viu-se minúsculo, apenas um bebê nos braços de uma mulher, conseguindo ver apenas seu rosto cansado porém sorridente. Viu campos verdejantes, lagos cristalinos, um adolescente de cabelos longos e ruivos correndo na beira de um rio.
O sonho então mudou completamente, e parecia muito mais real do que jamais fora. Hokuo conseguia sentir sua presença ali, sentia uma angústia terrível e um medo insuportável, mas sabia, mesmo não vendo o próprio rosto, que sorria como se estivesse explodindo de alegria. Estava em um longo salão comprido, com dezenas de vultos escuros o observando com interesse, contrastando com todo o esplendor das luzes do salão. Hokuo notou que não podia se mover, como se não fosse nada além de um espectador macabro, e sentiu algo quente escorrendo por sua cabeça, saindo da testa, passando entre os olhos, chegando até a ponta do nariz e dali para o chão polido.
Sangue.
Um dos vultos começou a se aproximar e lentamente estava tomando forma. Hokuo tentou gritar, mas nenhum som foi emitido, e foi então que ele vislumbrou a face de um velho, enrugado, usando uma longa capa acinzentada, cabelos brancos longos e desgrenhados. Novamente, o garoto tentou berrar de pavor ao ver que uma das órbitas do velho estava vazia, oca, sem o globo ocular. O homem estava tão próximo que seus narizes quase se tocavam. Hokuo tentou desviar o olhar daquele olhar horripilante, mas não conseguia, nem mesmo seus olhos se moviam.
O velho abriu um sorriso e com uma voz estridente, falou.
– Acorde.
Hokuo acordou sentindo uma dor lancinante em suas costelas.
– Acorda seu merdinha! Levanta!
Abrindo os olhos e erguendo a cabeça, ele se viu embaixo da Terceira Ponte, uma das oito que ligavam a parte oeste à parte leste da cidade, passando por cima do rio Nanboku que dividia Midterst City ao meio, nascendo ao norte nos bosques e continuando pelo sul até o mar, além dos limites das cidades vizinhas. O ambiente era horrível, cheio de latas velhas de cerveja pelo chão, caixas de papelão mofadas nos cantos e uma fogueira apagada próxima de onde Hokuo estava deitado, com três adolescentes o cercando, segurando facas curtas.
– Vai, levanta! – tornou a gritar um deles, cuspindo nas roupas esfarrapadas do garoto.
Hokuo se levantou devagar, levantando as mãos em sinal de rendição. O garoto que berrava, lembrou-se, foi o mesmo que lhe fizera o corte no rosto na noite anterior, com a mesma faca. Era alto, forte, talvez um atleta, as roupas esfarrapadas, a jaqueta de couro e o cabelo ensebado de gel davam a impressão dele ter caído em um lapso temporal nos anos 50 e caíra ali. O sorriso sádico estampado no rosto quadrado mostrava a falta de dois dentes da frente.
Os outros dois garotos pareciam bobões. Um era baixo, gordo, claramente desconfortável com a situação, mantendo a cabeça baixa com os cabelos crespos e loiros cobrindo os olhos. O outro era mais magro, ossudo, de pele tão branca quanto papel. Tremia tanto que parecia que uma simples brisa poderia levá-lo embora.
– Eu não tenho nada, já te falei isso ontem. – disse Hokuo tentando se manter o mais calmo possível. – Sou só um sem-teto qualquer.
O grandalhão grunhiu.
– E como te disse ontem, isso é só diversão. – seu sorriso se alargou. – E você me deve dois dentes, mendigo imundo.
Com a faca nas mãos, ele avançou para uma estocada, mas com habilidade beirando o impossível, Hokuo desviou, aproveitando o impulso do oponente para lhe dar um belo chute na canela direita, o desequilibrando. Em seguida, chutou as brasas da fogueira que foram direto para o rosto do grandalhão, que urrou em dor e se estabacou no chão. Seus comparsas apenas observaram horrorizados, enquanto Hokuo se preparava para escapar, quando algo chamou sua atenção: em seu caminho, havia uma bela garota, usando um longo vestido branco, os cabelos dourados caindo em cachos pelos ombros, e os olhos brilhando em um verde intenso. Ela não disse nada, apenas apontou para os pés de Hokuo. Ele seguiu sua indicação com os olhos e viu no chão a sacola de suprimentos que o Sr. Sakuraba lhe entregara mais cedo, agora com um pedaço mísero de pão, uma garrafa vazia de água e algo brilhante que ele não conseguiu identificar.
Apanhou a sacola, procurou a garota, mas ela havia desaparecido.
– EU VOU MATAR ESSE DESGRAÇADO!
Hokuo olhou por cima do ombro e viu os dois palermas ajudando seu líder ferido a se levantar. Era sua deixa.
O garoto correu com a sacola balançando pesadamente, subiu o barranco que separava o rio da rua com passos largos e disparou pelas ruas escuras sem pensar. Lembrou-se subitamente daquela órbita vazia do velho em seu sonho e se sentiu pela primeira vez na vida em perigo de verdade. A cada esquina, uma nova expectativa de que algo estaria ali, espreitando.
Não, não era só medo. Era frio.
Um frio congelante. Mesmo correndo em disparada e seu corpo esquentando cada vez mais, ele parecia esfriar ainda mais rápido, sua respiração logo começou a soltar vapor, e notou as vidraças das casas e lojas se esbranquiçando. Ele parou na rua Kanagawa, uma pequena travessa residencial de duas mãos e começou a esfregar as mãos nas pernas, tentando se esquentar, mas aquele frio...
Passos apressados.
Em questão de segundos, os três adolescentes que o perseguiam apareceram vindo pela rua por onde viera. Como o encontraram? Hokuo não saberia responder, mas ali estavam, irados, os olhos do garoto maior estavam vermelhos e o rosto sujo de fuligem de carvão.
– Agora você já era! – disse o grandalhão, ofegante.
No primeiro passo para avançar contra Hokuo, já era tarde demais. O garoto sem-teto tentou gritar ao ver a gigantesca figura arrancar do chão os dois garotos assustados e esmagá-los um contra o outro, e em seguida acertar o grandalhão com a palma da colossal mão direita ainda imunda pelos restos do garoto gorducho, transformando-o em uma massa disforme de carne, pele e sangue.
Hokuo se sentiu apenas um inseto diante daquela coisa. Tinha no mínimo 8 metros de altura, seu corpo era formado por blocos cristalinos de gelo, os órgãos podiam ser vistos através da camada transparente, um coração negro gigantesco pulsava e o som era tão alto quanto uma britadeira. Seu olhos eram vermelhos e cruéis, e quando abriu a bocarra em uma espécie de sorriso macabro, era como se estivesse encarando a entrada para uma caverna cheia de estalactites e estalagmites prestes a mastigá-lo no primeiro movimento em falso. O que quer que fosse, o frio insuportável emanava daquilo, mas um calor reconfortante chegou a Hokuo, um brilho o cegou: era a sacola que segurava nas mãos.
Rapidamente, Hokuo rasgou a sacola plástica, derrubando a garrafa e o resto de pão no chão, mas não apenas isso. Também derrubou algo que não estava lá antes: um cinto mecânico branco. Era obviamente mecânico, mas parecia ter sido feito de pedras polidas, e no centro, havia uma grande orbe avermelhada com um símbolo encravado. O monstro pareceu surpreso e avançou.
Instintivamente, Hokuo colocou aquele dispositivo ao redor de sua cintura e ele se fechou perfeitamente, colocou a mão sobre a orbe, a girou e gritou a plenos pulmões:
– Henshin!
Abriu as mãos e o símbolo brilhou em um tom amarelado.
O primeiro dos nove nasceu.
