N.A. - Spiral não me pertence... Não é triste?



História de Fantasma

Este era para ser apenas mais um final de semana normal. Normal, tedioso, sem nada para fazer além de assistir aquele especial de chefs internacionais que passei os dois últimos meses esperando ansioso.

- Ayumu, pare de ficar se mexendo.

Suspiro, apoiando as costas no muro. Fecho mais a jaqueta, revirando os olhos sem me dignar a responder. Onde eu estava mesmo? Ah sim! No que pretendia fazer nesse final de semana...

Na sexta-feira, ignorei a conversa, como sempre, sem sentido de Hiyono enquanto saíamos da escola. Passei pelo mercado, e propositalmente peguei alguns ingredientes para fazer o bolo que ela tanto gosta, na esperança que isso a fizesse se calar.

Não funcionou.

Hiyono continuou tagarelando sobre umas informações quentes que tinha conseguido sabe-se lá com quem, e que provavelmente a distrairiam no final de semana ou pelo menos no sábado. - Isso era mais do que eu podia desejar, nada para me impedir de ficar a toa e assistir meu programa. - Sorri, concordando efusivamente. Não que estivesse realmente interessado sobre boatos sobre o velho parque de diversões, mas a perspectiva de ter paz era tão boa, que eu até mesmo me ofereci para fazer o almoço dela no dia seguinte.

Eu deveria ter desconfiado quando ela voltou àqueles grandes olhos castanhos na minha direção, parecendo estar contemplando a última barra de chocolate na hora do lanche, que aquela mente totalmente lunática dela tinha compreendido outra coisa. Ou talvez eu apenas devesse ter prestado mais atenção no que exatamente estava concordando efusivamente...

Ok, admito. Deixei o orgulho falar mais alto e presumi que ela estava animada demais com a perspectiva de não ter que me convencer a preparar sua comida, ou, para ser mais especifico, não precisar gastar energia em uma luta pela posse do meu almoço.

Tá bom. Eu só estava ocupado demais imaginando quais seriam as receitas que poderia aprender naquele programa do dia seguinte.

- Sério, Ayumu. Você pode fazer mais barulho?

- Estou apenas respirando, Hiyono. – Cruzo os braços na frente do peito, finalmente virando para fitá-la. – Você não quer que eu prenda a respiração, certo?

- Não se conseguir fazer isso de maneira mais silenciosa.

-...

'Ignorar. A melhor coisa a fazer é ignorá-la.'

Meu sábado começou normal. Bem, tão normal quanto todos os outros sábados desde que conheci Hiyono, e isso quer dizer: Fui rudemente acordado quando estava tendo um maravilhoso sonho. - Algo envolvendo a cozinha perfeita, e uma certa garota trancada do lado de fora... Ok, ela não estava trancada do lado de fora. Apenas ocupada demais saboreando o que eu tinha preparado, a boca cheia impedindo-a de continuar falando sem parar sobre coisas que não me interessam. - Reclamei, é claro. Desde o momento em que abri os olhos, continuando enquanto era puxado para fora da cama e empurrado para o banheiro. Continuei resmungando, de maneira nada discreta, enquanto tomava banho e a ouvia gritando do lado de fora para que eu me apressasse.

Certo. Talvez tenha sido nesse momento em que finalmente me arrependi de ter prometido aquele almoço.

Consegui ignorá-la por gloriosa meia hora, enquanto o som da água correndo ajudava a abafar o som de sua voz. Quando Hiyono começou a esmurrar a porta, ameaçando arrombá-la se eu não saísse logo percebi que não poderia mais adiar a tortura.

Ignorei a expressão contrariada dela enquanto caminhava pelo corredor na direção da cozinha. Madoka não estava em lugar nenhum que eu pudesse ver, e imaginei que como sempre minha adorável cunhada havia deixado aquele pequeno terremoto – Também conhecido como Hiyono Yuizaki – entrar e depois desaparecido antes que eu pudesse me vingar queimando sua comida e... Bem, basta dizer que Madoka tinha desaparecido.

Tentei ser positivo, pensando que poderia preparar o almoço da tagarela lunática o mais rápido possível, e depois, quem sabe, voltar a dormir por mais algumas horas.

Estava enganado novamente.

Hiyono não me deixou chegar perto da cozinha, agarrando meu braço e puxando na direção da saída enquanto continuava a repetir que estávamos atrasados. Por alguns momentos imaginei que ela pudesse ser aquele coelho de Alice no País das Maravilhas...

- Ayumu... – Ouço a voz de Hiyono novamente, juntando-se aos puxões na manga da minha jaqueta que estive tentando ignorar nos últimos dez minutos. – Ayumu! Está me ouvindo?

- Pensei que não deveríamos fazer barulho. – Suspiro quando ela larga meu braço e senta ao meu lado, encostando a cabeça em meu ombro.

- Acho que fomos enganados!

- Fomos? – 'Quando exatamente disse que acreditava em algo que ela tenha dito?' – Não quer dizer: Você foi enganada?

- Eu tinha tanta certeza que era verdade... – Ela suspira frustrada, aninhando-se contra meu corpo. – Por que mais um parque de diversões que foi abandonado?

- Talvez porque não fizesse dinheiro o suficiente?

- Bobagem! Eu sei de fonte segura que faturavam muito bem.

- Mais uma de suas informações quentes?

Passei o resto da tarde seguindo Hiyono, enquanto ela fazia seu serviço de espionagem. Eu não sei como explicar a razão por ter concordado com isso. Acho que estava ainda estava com sono demais para protestar, e não é como se eu conseguisse ganhar uma discussão com Hiyono com uma frase simples com 'Não quero fazer isso'. Principalmente quando ela está tão determinada.

No final da tarde finalmente voltamos para casa, e eu cheguei a imaginar, por um breve momento, que me livraria dela depois de preparar seu jantar. Mas claro, isso foi antes de alimentá-la, e dar forças ao monstrinho que passou os próximos quarenta minutos, enquanto eu preparava seu lanche, usando aquela expressão 'sou uma pobre garota indefesa' a me convencer a abandonar meu plano de assistir o programa que esperei por meses apenas para acompanhá-la e protegê-la de... Fantasmas.

- Estou com fome.

- E a novidade é?

- Ainda tem lanche?

- Não.

- Eu vi você guardar, Ayumu!

- Minha parte, você comeu a sua.

- Ayumu!!

Esqueci de mencionar que não é qualquer tipo de fantasma. São fantasmas de um parque de diversões abandonado. Não cheguei a perguntar quem seriam os espíritos, mas acho que tem a ver com algum palhaço asfixiado na própria roupa e... Ok, estou inventando isso. Bem, ao menos seria interessante. Mas imagino que deva ser algo mais comum e completamente sem noção, como a pessoa que me obrigou a acompanhá-la a um parque de diversões no meio da noite mais fria do ano.

Acho que tenho que começar a prestar atenção quando ela começa a tagarelar sem parar.

- Estou com fome!

- Azar seu?

- Qual a sua serventia se não vai me alimentar?

- Dar-lhe o prazer da minha adorável companhia?

- Ok, agora fale sério.

Acho que deveria me sentir ofendido com isso... Se eu me considerasse uma companhia agradável, é claro.

- Protegê-la.

- Do quê?

- Fantasmas... – Falo entre-dentes.

Ela sorri. Não, ela ri. E nem ao menos disfarça. Maldita garota tola, forçando-me a falar coisas absurdas.

- Sim, sim. – Ela força uma expressão séria. – Agora se não quiser que eu vire um fantasma, me alimente!

Eu não sei dizer o que me deixa mais chocado. O olhar dela, a frase, ou o fato dela pular sobre mim, tentando pegar a mochila em seguida.

Certo, pode ser uma combinação de tudo.

- Pensei que não deveríamos fazer barulho para não espantar os... Fantasmas. – Tento impedi-la de chegar à mochila que ainda tem minha parte dos lanches. – Hiyono, pare com isso!

- Seu mesquinho, me alimente!

- E quem vai me alimentar se eu deixar você comer tudo?

- Você é forte, agüenta algumas horas de jejum.

'E eu sou o mesquinho...'

Empurro a mochila para longe, e a seguro pela cintura. Imagino o que fantasmas pensariam se nos vissem agora... Isso é, se fantasmas realmente existissem.

- Juro que se você pegar essa mochila, vou embora e te deixo sozinha!

Como imaginei, a ameaça funciona, por uns dez segundos. Aqueles grandes olhos castanhos viram em minha direção, e ela me fita em silêncio. Espero que ela faça aquela cara de 'Sou uma garota irritante, mas indefesa. Você não pode me abandonar!', e estou preparado para isso.

Verdade! Estou!

Não importa que meu coração tenha disparado no segundo que ela parou de lutar e virou em minha direção. Sim, não estou afetado pela perfeição dos traços ou nada parecido... É só... foi pela luta! Isso! Meu coração acelerou por causa da luta pela mochila!

Sou perfeitamente capaz de resistir a qualquer um dos truques dessa abilolada e...

- Se você for embora ficarei com a sua parte... – Ela fala distraída, parecendo considerar a possibilidade. No momento seguinte um grande sorriso se abre. – Ok, pode ir!

Eu acho que não estou ouvindo direito... Ela realmente escolheu a comida? Não se importa de ficar sozinha? E os palhaços fantasmas?

- Você vai embora ou não?

Acho que quero matá-la.

- Não.

Empurro-a para a antiga posição, sentada ao meu lado em vez de sobre mim, tentando agarrar a mochila. Alcanço a mochila, apanho um lanche e começo a comer lentamente, saboreando e ignorando a expressão ultrajada dela.

- Ei, estou com fome!

-...

Continuo a comer sem me dignar a responder. Ok, ela feriu meu orgulho. Como... Como depois de me alugar o dia todo... Arrastar por lugares estranhos... Encontrar com pessoas estranhas... Fazer com que eu perdesse o programa que estava esperando ansiosamente para ver... Como? Por que ela escolheu a comida em vez da minha companhia?

- Você é tão malvado comigo. – Ela finalmente parece se dar por vencida porque não tenta roubar minha comida, apenas se encolhe, apertando o casaco contra o corpo, afastando-se de mim alguns centímetros.

- Eu sou malvado? – Dou outra mordida no lanche e mastigo antes de continuar. – Você escolheu a comida! Sem hesitar!

- Estou com fome.

- Isso não é problema meu.

Olho para ela disfarçadamente, que continua encolhida. Afastada de mim. Será que magoei seus sentimentos? Não, isso é impossível.

- Quanto tempo ainda vamos ficar aqui?

- Até que eu morra de fome e possa assombrá-lo!

-...

'Criatura vingativa.'

Baixo a cabeça, escondendo o riso. Pego outro lanche de dentro da mochila e jogo em seu colo. Vejo ela pegar o embrulho e virar para me encarar, dou de ombros.

- Prefiro que me incomode em vida.

- Sentiria minha falta, não é? – Ela sorri, desembrulhando o lanche. – Sei que não pode viver sem minha presença.

- Você não disse que ia me assombrar? Como poderia sentir sua falta?

- Hum...

Espero que ela dê uma grande mordida no sanduíche antes de continuar.

- Pelo menos viva posso te trancar do lado de fora. – Tento permanecer sério quando ela me olha revoltada, mastigando rapidamente e tentando engolir o bocado de sanduíche para me dar uma resposta. – Fantasmas podem atravessar paredes e portas, certo? Eu nunca me livraria de você.

- Ayumu!

Ela finalmente consegue falar, mas engasga assim que meu nome deixa seus lábios, e sou forçado a lhe dar tapas leves nas costas antes que acabe asfixiada. Que maneira estúpida de morrer...

- Eu disse para não morrer! – Mordo o lábio tentando não ceder à tentação de rir enquanto ela murmura algumas palavras indignadas que eu não consigo compreender porque ela ainda está tossindo. – Aposto como está tentada a virar fantasmas apenas para me espionar...

- Eu não—

- Maluca pervertida. – Procuro uma lata de refrigerante dentro da mochila. – Aposto como não me deixaria em paz nem quando estivesse tomando banho. Ou trocando de roupa!

Ela engasga novamente, lançando um olhar mortal em minha direção. Eu ficaria preocupado se não fosse o desejo dela me matar enquanto toma o liquido lentamente.

- Você está bem? – Pergunto quando ela finalmente respira, sem tossir em seguida.

- Vamos embora. – Ela joga a lata vazia no meu peito, e levanta.

- E os fantasmas?

- Não existem fantasmas.

- Mas você...

- Você não acredita em fantasma. Deve ter espantado todos com essas vibrações negativas!

-...

Sério, será que exagerei? Nunca a vi desistir de nada antes. Ao menos não sem ser, literalmente, arrastada para fora. Observo-a em silêncio, apanhar a própria mochila, e arrumar o casaco antes de virar para mim.

- O que está esperando, Ayumu?

- Minha perna adormeceu. – Ok, estou mentindo, mas ela me torturou o dia todo, por que tenho que fazer o que ela quer? Novamente?

- Eu te ajudo, vamos embora logo. – Hiyono estende a mão para mim, sem me encarar. Posso ver o rubor tingindo suas bochechas, e não consigo decidir seainda é efeito de ter engasgado ou porque está envergonhada pelo que eu disse.

- Não, é só esperar um pouco.

- Não quero esperar. – Ela balança a mão na frente do meu rosto. – Vamos logo!

- Sou pesado demais para você. – Afasto a mão dela com um tapa leve. – Espere.

- Ao menos fique de pé! – A mão dela se aproxima novamente, e eu volto a afastá-la. – Não vou te derrubar.

- Claro que não...

- Ayumu... – Ela respira fundo. – Vamos logo ou te deixo aqui sozinho.

- Não acredito em fantasmas, lembra? – Dou de ombros. – Essa ameaça não faz efeito.

Observo-a em silencio, tentando não demonstrar que estou me divertindo com a situação. Hiyono abre e fecha a boca algumas vezes, sem conseguir dizer nada. – Isso por si só já um milagre. – Balança a cabeça. Caminha de um lado para o outro. Vira minha direção e aponta um dedo acusador para mim

- Sim? – Tento soar inocente, mas acho que falho miseravelmente.

Vejo a testa dela franzir. As sobrancelhas quase desaparecem sobre a franja. Ela coloca as mãos na cintura. Abre e fecha a boca algumas vezes, novamente sem proferir nenhuma palavra.

Puxa, ela deve mesmo estar muito irritada... Ou possuída por um palhaço fantasma. Se fantasmas existissem, é claro.

- O que está fazendo, Ayumu?

Ainda estou pensando na possibilidade dela estar possuída por um palhaço fantasma, e por isso ouvi-la chega a me assustar.

- Não sei do que está falando.

Na verdade eu sei. Em qualquer outro dia eu não hesitaria em sair do local para o qual ela me arrastou, contra minha vontade, o mais rápido possível. Nada me faria enrolar. Então, o que estou fazendo?

- Tenho quase cem por cento de certeza que sua perna não está adormecida.

- Sério?

- Sério.

Ok, talvez eu esteja apenas tentando me vingar. Puxa, ela me fez perder o programa daqueles chefs internacionais! Imagine só quantas receitas e técnicas eu poderia ter aprendido. E agora quer ir embora? Só por causa de uma piadinha?

Recuso-me a sair daqui sem ver um fantasma!

- Bem, está enganada.

Não, espere. Esqueci que não acredito em fantasmas. Muito menos palhaços fantasmas. Assombrando um parque de diversões.

Ok, enlouqueci. O que estou fazendo?

- Eu conheço você! – Ela fala de repente, dá meia volta e começa a caminhar de um lado para o outro novamente. – Sei como essa sua mente doente trabalha...

- Eu tenho uma mente doente? – Giro os olhos.

- Está tentando se vingar. Tem algum plano maligno para se vingar de mim!

Isso seria uma boa razão. Se eu tivesse uma mente doente a ponto de me vingar com algum plano maligno... Certo, preciso impedi-la de ficar assistindo filmes B.

- É assim que acontece no Scooby-doo.

-...

'Ela não pode estar falando sério!' Pisco, sem conseguir pensar em nada para dizer. Como assim 'é assim que acontece no Scooby-doo'? Ela está se baseando em um desenho animado?

- Acho que minha perna melhorou.

- Mudei de idéia.

- O quê?

Hiyono volta para o meu lado e senta. Cruza os braços, parecendo decidida.

- Se você quer ir, vamos ficar!

- Você não está fazendo sentido, Hiyono...

Acho que estou ficando com dor de cabeça. Deve ser meu pagamento por tentar compreender a mente dessa lunática.

- Vai ficar sem comer.

- Não me importo.

Droga, ela está mesmo decidida. Eu conheço essa expressão.

Suspiro desanimado, voltando a encostar-me no muro. Ela disse que não se importa de ficar sem comer. Definitivamente está doente ou possuída!

- Estou com...

Antes que ela termine de falar eu já peguei um sanduíche e joguei em seu colo. Previsível, ela só estava sendo cabeça-dura como sempre.

- Obrigada.

- Quanto tempo...?

- Até amanhecer. Ou um fantasma aparecer.

- Hiyono, fantasmas não existem!

- Tenho certeza que existem!

- Já viu um?

- Não.

- Então não tem certeza de nada.

Hiyono me encara em silencio por alguns minutos, com aquela expressão zangada que eu acho tão adorável e... Hum... Bem, eu chego a pensar que ela vai ao menos se calar, mas é óbvio que isso seria esperar demais.

- Existem!

- Não existem!

- Existem!

O que diabo estou fazendo? Ela não vai concordar comigo nunca, nem que seja para me irritar. Nem que concorde, ela simplesmente nunca vai admitir em voz alta.

- Hiyono, seja razoável... – O que estou dizendo? Hiyono? Razoável?

- Tantas pessoas não podem estar erradas!

- Pessoas lunáticas podem e normalmente estão erradas!

- Acha que sou lunática também?

Eu não deveria responder isso. Eu sei que não deveria, mas é mais forte do que eu.

- Bem...

Droga! Sobrancelhas desaparecendo sob a franja novamente. Eu sabia que não devia ter respondido!

- Ótimo, vá embora e deixe a lunática aqui sozinha.

- Não vou te deixar sozinha!

- Por quê? Não acabou de dizer que não existem fantasmas?

- Fantasmas não existem, mas ladrões são algo bem real. – Suspiro. – Qual é o seu problema? Por que não pode agir como uma pessoa normal e...

- Você não gosta de pessoas normais.

- O que isso quer dizer?

- Nada. – Hiyono estende a mão e segura a mochila. – Entregue a comida e dê o fora.

Isso me daria medo se ela não estivesse tentando ficar com a comida. Que tipo de frase é 'entregue a comida e dê o fora'? Tem algo muito errado quando garotas bonitinhas tentam parecer más e dizem coisas como 'entreguem a comida'. O que virá a seguir? 'Entregue o ursinho de pelúcia'?

- Está deixando seu estomago falar mais alto que seu cérebro. – Liberto a mochila das mãos delicadas com um puxão. – Não vou embora, e não vou deixar a comida com você.

- Você realmente me ama, não é, Ayumu? – Hiyono ri. – Estou libertando você, volte para casa para ver aquele programa sobre detetives famosos.

- Claro que não!

- Não quer mais? – Ela vira para mim. – Mas passou a tarde toda reclamando que...

- Não amo você.

-...

-...

Ok, da onde veio isso?

Enquanto o silencio se prolonga, tento imaginar algo que possa consertar a situação. Por que eu disse isso?

- Eu só estava—

- O programa era de chefs internacionais, não detetives! – Ahá! Lembrei de algo.

- Que seja. – Hiyono dá de ombros, parecendo tão disposta quanto eu a insistir no assunto de ser amada ou não. – Vá para casa e...

- Eu não sei como você conta as horas nesse seu mundo maluco, mas o programa já terminou a umas duas horas.

- Você não consegue ser um pouco mais agradável?

- Você não consegue ser um pouco mais normal?

Por quê? Por que estamos discutindo sobre coisas inúteis? Acho que estou realmente entediado...

- Se me odeia tanto, por que não vai embora?

- Se queria ficar sozinha, por que me arrastou pra cá?

Hiyono está fazendo mais sentido nos argumentos ou eu estou cansado? Impossível, só posso estar com sono.

- Não tenho que te dar explicações! – Ela bufa, e é divertido ver a franja se mover com isso. – E estou ficando cansada de discutir. Você está espantando todos os fantasmas!

- Vou explicar novamente, Hiyono. Lentamente para que você entenda... – Levanto a mão fechada e mostro o indicador. – Um: Fantasmas NÃO EXISTEM. – Levanto mais um dedo. – Dois: Mesmo que existissem não se assustariam só porque algum vivo está fazendo barulho! – Ergo um terceiro dedo quando ela abre a boca para replicar. – Três: FANTASMAS NÃO EXISTEM!

Hiyono nem pisca, e por um segundo acho que posso ter exagerado. Estou esperando que ela chore, me xingue, faça um escândalo... Sei lá, alguma reação além de ficar me olhando como se estivesse na frente de um maluco.

- Sabe, você não precisa gritar. – Ela finalmente fala calmamente. Tão calmamente na verdade que chega a ser meio assustador. – A não ser que esteja tentando acordar os mortos. Nesse caso pode continuar, só não na minha cara.

- Você é, definitivamente, a criatura mais irritante e teimosa que tenho o desprazer de conhecer.

- Mesmo assim não consegue ficar longe de mim.

Chego a imaginar minhas mãos no pescoço dela, mas é claro que não concretizo essa ilusão. Baixo a cabeça, murmurando coisas incoerentes na tentativa de me acalmar.

- Por que está me testando dessa forma? – Passo as mãos pelos cabelos, tentando me acalmar. – É alguma espécie de punição? Tortura?

- Claro que não.

A voz dela soa meio abafada, estranha. As palavras meio enroladas. Viro a cabeça para fitá-la e tenho que apertar as mãos em punhos, com força para realmente não pular sobre ela.

- Quando você pegou minha mochila?

- Pouco depois de você começar a falar sozinho. – Hiyono sorri, dando outra mordida no sanduíche. – Admita, fui bem esperta em... Ei! Devolva!

- Chega, vou pra casa. – Levanto, colocando a alça da mochila no ombro.

- Espera, - Ela levanta, e segura a mochila, tentando me impedir de partir. - quem vai me proteger dos fantasmas?

- Fantasmas não existem.

- E os ladrões que podem me atacar?

- Não me importo mais.

- Ayumu! – Em uma última tentativa, ela agarra as costas da minha jaqueta, e tenho que parar porque a gola ameaça me enforcar. – Desculpe. Desculpe! – Sinto as mãos dela soltarem a jaqueta e ela pular na minha frente, tentando arrumar a gola. – Eu só queria...

- Me transformar em fantasma?

- Claro que não! – Hiyono está me abanando com as mãos, em uma tentativa patética de melhorar a situação. – Quem cozinharia pra mim se você morresse?

- Bom saber que só me vê como um escravo. – Afasto as mãos dela, e aprumo o corpo, tentando recuperar um mínimo de dignidade. – Não se aproxime de mim.

- Mas Ayumu...

- O que foi agora? – Paro, fingindo ignorar que o tom choroso me atingiu. – Primeiro quer passar a noite aqui. Depois quer ir embora e quase me arrasta. Então, subitamente você começa a imaginar que tenho algum plano maligno, tipo Scooby-doo, e muda de idéia novamente... – Respiro fundo, antes de virar para ela. – O que você quer afinal? Me enlouquecer? Porque posso garantir que... – Paro de falar quando sinto todo o ar deixar meus pulmões. Estou confuso, como ela conseguiu fazer isso apenas correndo e me abraçando?

- Tem alguma coisa se mexendo atrás de você!

E isso lá é motivo para tentar me nocautear?

- Árvore. Galhos. – Giro os olhos, tentando me libertar do abraço. Quando foi que ela ficou tão forte? Minha nossa! – Se você deixar eu me mover, posso... – A pressão dos braços aumenta, e ela esconde o rosto no meu peito. – Sério, Hiyono, não deve ser nada—

- Quem está perturbando meu sono?

Certo. O que foi isso? Fantasmas deveriam dizer isso? O correto não seria 'Bu'? Ou arrastar correntes? Essa frase tem mais cara de vampiro e... Ok, agora estou delirando. A loucura da Hiyono deve ser contagiosa!

- Ayumu, faz alguma coisa!

Como se eu conseguisse me mover com a garota com braços de ferro agarrando minha cintura...

- Se você me soltar...

- Não!

Giro os olhos impaciente. O que ela quer que eu faça exatamente?

Suspiro, e só porque está realmente me incomodando não saber quem, ou o quê, está atrás de mim, brincando de vampiro, abraço a garota lunática e a faço mudar de posição comigo.

- Não tem nada, Hiyono.

- Você ouviu também! Claro que tem!

- Você queria encontrar um fantasma e agora está assustada? Por favor, Hiyono, o que...

- Por que estão namorando na minha tumba?

Ah, fala sério. Só pode ser brincadeira! Juro que quando pegar o idiota que está falando...

- Não estamos namorando! – Hiyono consegue falar de maneira audível, embora continue escondendo o rosto no meu peito.

- Parece que estão se agarrando.

- Nós não—

- Cale a boca, Hiyono! – Suspiro quando ela obedece, e tento encontrar o dono da voz. – Escuta, Gasparzinho... Já se divertiu assustando minha... – 'Maluca' completo em pensamento. – Amiga. Será que pode parar?

- Como sabe meu nome?

- Por favor! Não dá pra ser mais original?

- Qual o problema com o meu nome?

- E que papo é esse de tumba? Isso aqui não é um parque de diversões?

- A tumba é minha, chamo como quiser.

Sério, será que dá pra torcer pescoço de fantasma? Droga, agora estou achando que fantasmas existem... Eu me odeio.

- Ayumu! Não discuta com o fantasma!

- Dane-se!

- Olha a educação, rapazinho.

Giro os olhos, irritado. Eu acho que desmaiei quando Hiyono se jogou contra mim e agora estou delirando. Porque não é possível que essa cena esteja mesmo acontecendo.

- Hiyono, se você puder me soltar...

- Vai fugir e me deixar sozinha?

- Não.

- Promete?

-...

- Ayumu?!

- Prometo.

- Ok.

Quase grito em sinal de vitória quando ela finalmente me solta, e devo dizer que isso quase a faz me agarrar novamente, com medo que eu realmente a abandone com o tal Gasparzinho. Por mais que o pensamento seja tentador, não quero correr o risco de ter que agüentá-la me alugando na segunda-feira.

- Vão voltar a se agarrar? Porque isso está ficando chato.

Sabe, essa voz parece conhecida. O cretino nem está mais tentando disfarçar. Aposto que é um daqueles idiotas da escola que adoram alimentar as ilusões dessa maluca.

Em silêncio, observo o local, principalmente a árvore onde Hiyono disse ter visto algo se mover. Tenho quase certeza de tem alguém escondido ali, e estou pensando em como me aproximar sem espantá-lo para poder torcer seu pescoço quando Hiyono diz:

- Ótimo, um fantasma pervertido. - A animação da voz dela é meio chocante. – Quê? Não é todo dia que—

Ok, estou cansado demais para isso. Com frio. Com fome. Com sono. Simplesmente cansado demais para discutir com dois lunáticos. Um que acha que é um fantasma, e uma doida que está achando interessante ter contato com um pretenso fantasma voyeur.

- Hiyono, cale a boca! – Ela me olha assustada, talvez pela primeira vez naquela noite, não exatamente por eu ter mandado que se calasse, porque já fiz isso milhares de vezes desde que nos conhecemos, mas sim pelo meu movimento seguinte.

Antes que o idiota reclame por não haver nenhuma ação em sua tumba. – Eu acho que apenas pensar nessa frase vai me torturar mais tarde. – Ou a lunática comece a achar interessante a idéia de ficar e se tornar amiga dele, abaixo e segurando suas pernas a coloco sobre o ombro direito.

- Tenha uma boa noite, Gasparzinho.

- Já vão? Esperem!

- O que está fazendo, Ayumu?

- Indo para casa, o que mais?

Tenho que agradecer o fato dela não tentar se soltar, não está sendo exatamente fácil carregá-la.

- Agora que o fantasma apareceu? Volte lá!

-...

Se eu não estivesse tão ocupado, tentando não tropeçar em nada enquanto caminho com a lunática em meus ombros, juro que... Provavelmente não faria nada. Ela continua reclamando que estamos saindo na melhor parte, e isso realmente está começando a me chatear, mais do que todas as loucuras desse maldito dia.

Deve ser por essa razão que a pergunta deixa meus lábios.

- Você engordou?

- Essa foi a coisa mais grosseira que você já me disse. – É a resposta que Hiyono me dá, alguns segundos depois.

- Sério? Tenho quase certeza de que já disse coisas muitos piores.

-...

- Não ficou realmente magoada com isso, certo? – Pergunto depois de alguns minutos. – Foi só—

- Tenho a solução perfeita para isso.

- Deixá-la descer e caminhar ao invés de ser carregada?

- Não. Faça doces diet de hoje em diante!

Tropeço com a resposta, e tenho que apertá-la com mais força para não derrubá-la. Parte de mim quer responder, mas a outra parte diz que eu mereço isso. O quê, em nome de todos os deuses, eu estava pensando, quando me deixei arrastar para um parque com fama de assombrado?