O Pássaro Raro

Por: Sissi

Disclaimer: Os personagens principais desta história foram retirados do anime Inuyasha de Rumiko Takahashi. O nome da cidade de Cloé foi inventada por Ítalo Calvino, no seu livro ( que é maravilhoso!! ) As Cidades Invisíveis.O título desta história, não tem nada a ver com o livro de mesmo nome escrito por Jostein Gaarder ( que por um mero acaso, é um dos meus escritores favoritos ).


"O Curinga ronda intranqüilo entre os elfos de açúcar como um espião num conto de fadas. Faz suas reflexões, mas não tem nenhuma autoridade a quem informar. Só o Curinga é que vê. Só o Curinga vê o que é."

[ Extraído de Maya, por Jostein Gaarder ]


Capítulo 1: Uma estranha em Clo

Cloé é uma cidade moderna. É quase impossível deixar de notar seus prédios altos, de vidros escuros a proteger seus habitantes contra o sol, e de portas automáticas que só se abrem após um reconhecimento exaustivo do visitante. As ruas são cobertas de asfalto, e de vez em quando, é possível vislumbrar um pouco de verde entre os muros de concreto. As crianças quase nunca estão nas ruas, a brincar. Elas ficam presas dentro das escolas, com os olhos grudados em computadores que lhe ensinarão tudo que devem saber sobre a vida. Talvez seja por isso que os habitantes de Cloé têm olhos cansados, sem vida. Eles passam a vida inteira a analisar observações apresentadas em telas de computador ou de televisão, quase nunca parando para respirar um pouco de ar puro ( que não existe devido à poluição criada pelos automóveis também muito modernos ) e fechar os olhos para refletir sobre o futuro.

Cada habitante de Cloé está consciente apenas de sua pequena vida. O que acontece com os outros não é problema seu, eles pensam. Talvez seja por isso que ninguém notara a presença de uma estranha no centro da cidade. Uma mulher já um pouco idosa, perto dos sessenta anos, carregando uma grande sacola na mão direita, e uma mala de couro marrom, já desgastado com a idade, na outra. Ela tinha cabelos grisalhos, chegando aos ombros. Seus olhos negros, misteriosos como a noite, observavam a cidade com uma curiosidade incapaz de ser descrita. Ela sorriu subitamente, e molhando os lábios a fim de se refrescar ( era verão ), ela caminhou em direção a um velho prédio, de paredes brancas porém sujas. Os vidros das janelas estavam opacos, com traços de tinta transparente feitos por dedos limpos. O tapete bege, mas que mais parecia da cor de chocolate, estava colocado estrategicamente na soleira da porta de entrada. A cidade só tinha asfalto, mas por alguma razão enigmática, o tapete conseguira ficar sujo de lama.

Um homem de expressão rabugenta estava sentado perto do balcão, localizado no pequeno salão logo atrás da porta de entrada. Ele tinha um jornal entre as mãos, sujos de tinta, e seus olhos se moviam de um lado para o outro, ávido por notícias. A mulher se recostou no balcão e esperou para ser atendida. Seu rosto benigno de nada mostrou sua impaciência.

O homem suspirou e fechou o jornal. Ele reclinou na cadeira e fechou os olhos. Em seguida, ele se levantou e fitou a mulher. Seus lábios finos estreitaram ainda mais. Ele retirou uma caneta do bolso e começou a escrever num pedaço de papel pardo. A tinta azul da caneta era rapidamente absorvida pelo papel de péssima qualidade. Quando terminou, ele repousou a caneta entre seus dedos, e fitou a mulher novamente.

- Este é o preço dos quartos.

A mulher inclinou a cabeça e observou os números. Ela sorriu.

- Um preço razoável, - ela brincou. O homem franziu a testa.

- Não gosto de brincadeiras. Você quer um quarto ou não?

Ela parou de sorrir.

- Eu gostaria de um quarto em que eu não seja perturbada por ninguém.

- Isso não será nenhum problema, mas quero um pagamento adiantado.

A mulher abriu a sacola e retirou sua carteira. De dentro, havia algumas notas. Os olhos do homem brilharam de entusiasmo, e seus dedos começaram a tamborilar sobre a superfície do balcão. Suas unhas longas batiam ritmicamente sobre a superfície lisa.

- Aqui está.

Os dedos dele estremeceram ao tocar no dinheiro Ele levou as notas ao nariz e inspirou profundamente. A mulher o repreendeu com um olhar severo, mas como ele havia fechado os olhos, como se houvesse entrado no mundo dos sonhos com o mero cheiro de dinheiro novo que teria acabado de sair dos cofres de um banco, ele nada percebeu. Ele, ainda de olhos fechado, pegou uma chave que estava pendurada na parede atrás dele, e lho entregou.

Ela recebeu o objeto prontamente, e começou a se afastar do local. O homem contemplou a figural altiva da mulher, e franziu a testa, à medida que ela se afastava. Seus olhos faiscaram subitamente, e ele se apoiou sobre o balcão com as duas mãos, levantando firmemente seu corpo, e gritou:

- O seu quarto fica no segundo corredor, virando à...

A mulher virou seu rosto e meneou a cabeça. O homem fechou a boca, surpreso.

- Não preciso de direções. Eu sei onde fica o meu quarto.

Ela continuou a andar com passos rápidos e curtos. O homem fitou as costas da mulher, seus olhos ainda expressando sua consternação. Seus braços perderam momentaneamente a força, e seus pés tocaram o chão novamente. Ele caiu sobre a cadeira, e, com um suspiro, ele levou a mão à testa.

A mulher caminhou serenamente pelos corredores até chegar na frente de seu quarto. Ela inseriu a chave prateada na fechadura e girou-a. A porta se abriu num estalo, e ela entrou. Seus olhos moveram-se rapidamente pelo quarto, observando os poucos móveis que adornavam-no. Uma cama de solteiro na parede da direita, um pequeno criado-mudo perto da cama, um armário, uma porta que se abria para o banheiro, uma pequena televisão na parede, e só. Ela colocou suas malas sobre a cama e suspirou. Fazia tempo que ela não andava tanto.

Ela trancou a porta atrás de si e foi para a janela. O vidro, como ela havia notado antes de entrar no hotel, estava sujo. Ela passou um dedo sobre a superfície lisa deste, e seu dedo ganhou uma mancha preta de pó. Ela abriu as janelas, e uma brisa quente e abafada bateu-lhe no rosto. Seus cabelos esvoaçaram em volta de seu rosto, e por um instante, eles ganharam vida.

O sol já estava quase se pondo no horizonte. O céu já havia perdido aquela cor bonita, de um azul da cor de mar, repleto de manchas brancas que mais pareciam algodão-doce de feiras e de parques de diversão. O céu, naquele momento, estava alaranjado, rosado, uma cor extremamente sensual, porém um pouco melancólica, por, talvez, não possuir aquele calor que o vermelho consegue transmitir. Ela não conseguia entender por que as pessoas gostavam tanto dos pores-de-sol. Não era triste saber que um dia estava se acabando? Talvez, ela pensou, o pôr-do-sol seja considerado bonito porque significa, para muitos, o recomeço, e não o fim. Ela balançou a cabeça afirmativamente. Esta deveria ser a razão.

Seus olhos se moveram para as poucas árvores plantadas nas calçadas. Era como um sopro de ar puro ver que a cidade, apesar de ser considerada como uma das mais modernas no mundo, ainda havia conservado um pouco do toque de natureza na sua alma. À medida que ela observava os carros passarem nas ruas, os pneus a dançarem sobre o asfalto, um leve ruído à sua direita chamou-lhe a atenção. Um pequeno pássaro, mais precisamente, um pequenino pardal de grandes olhos negros e de plumagem parda, havia aterrissado na sua janela, e estava a fitar aquela estranha humana que emanava uma sensação de paz. Ele abriu suas asas quando ela aproximou sua mão dele, mas ele não levantou vôo. Seus olhos não se desgrudavam daquela mão gigante, e quando ela pousou perto dele, não perto o suficiente para indicar perigo algum, o pardalzinho fechou suas asas. Uma certa camaradagem havia sido criado entre os dois, a humana e o pássaro.

- Você tem alguma novidade para mim, meu bem? – ela perguntou. O pardal abriu seu bico amarelo e começou a cantar. Ela balançou a cabeça, e sorriu.

- Você gosta da sua liberdade, não gosta?

O pardal continuou a cantar. A mulher saiu de perto da janela e se sentou na beira da cama. Ela abriu sua mala, e de dentro, retirou um bastão longo, de cor negra. Ela beijou o estranho objeto e fitou o pássaro mais uma vez. Sua mala permaneceu aberta, e por um instante, algo pequeno cintilou de dentre deste.

- A liberdade é um bem precioso, e todos fariam qualquer coisa para adquiri-la. Atos bons ou maus. Muito bem, deixarei a natureza fazer o meu trabalho nesta cidade.

Dito isto, ela guardou o bastão, e se despediu do passarinho, que alçou vôo logo em seguida. Som de guizos pôde ser ouvido quando a mala foi finalmente fechada e trancada. A mulher suspirou, e destrancou a porta de seu quarto. Ela estava cansada; seus ombros estavam caídos, sua pele não tinha aquela cor rosada que indicava saúde. Ela passou uma mão trêmula por entre seus fios de cabelo. Ela gostaria de poder dormir um pouco, nem que fosse por míseros trinta minutos. Ela suspirou; tinha que resolver um problema antes. Se tudo se resolvesse, ela teria, ao todo, uma semana para descansar.

As figuras penduradas nas paredes dos corredores de nada ajudavam-na a se sentir melhor. Cores fúnebres, melancólicas, tristes a observavam com reprovação. Ela levantou corajosamente os ombros e caminhou até chegar ao balcão. O homem de antes ainda estava lá, desta vez, sem um jornal nas mãos. Seus lábios finos tinham um cigarro aceso entre eles, emitindo uma fumaça de cheiro repugnante. Ela encostou sua mão no balcão, e limpou a garganta. Ele levantou o rosto, piscando os dois olhos.

- O senhor poderia me indicar uma loja de animais?

Ele fez uma careta.

- Não é permitida a entrada de animais neste hotel, - ele replicou. Ela fechou os olhos, cansada.

- Nem mesmo um pássaro?

- Nem mesmo um pássaro.

- Mas eu não irei ficar com ele, - ela argumentou. O homem levantou uma sobrancelha, incrédulo.

- Eu irei soltá-lo, - ela continuou, enfatizando na última palavra. O homem abriu a boca, e o cigarro caiu no chão. Seus olhos brilhavam de surpresa. Ele se agachou, e recolheu o cigarro, jogando-o na lata de lixo, que estava já cheio de papéis velhos, e do jornal daquele dia.

- Por que a senhora o soltaria?

- Porque ele pertence à natureza, e não a uma gaiola.

- Não basta observar os pássaros que já são livres?

- Por que não ajudar a tornar mais um pássaro livre? – ela contra-argumentou. Ele estava sem palavras. Seus dedos se entrelaçaram, e ele voltou a se sentar. Ele olhava fixamente o chão.

- Neste caso, - ele retrucou, lançando uma olhar para ela, mas rapidamente desviando seus olhos para o chão novamente.

- Neste caso, a loja de animais mais próxima fica no próximo quarteirão, à sua direita.

- Muito obrigada.

- A senhora é muito ... Peculiar, - ele disse subitamente quando ela já tinha uma mão sobre a maçaneta.

- Muitos já me disseram isso.

Ela abriu a porta e saiu.