Jareth Part
Do alto da torre mais alta do castelo de Goblin, o soberano observava o seu reino. Já tinham passado 15 anos no mundo mortal. Tantas coisas tinham mudado nesse mundo estranho. De cada vez que Jareth o visitava encontrava coisas novas, que na verdade raramente o impressionavam.
"Os homens sempre quiseram criar a sua própria magia" Pensou Jareth, com um sorriso irónico. "Pena que muitas coisas continuem iguais ou mesmo piores entre eles"
Jareth reflectiu sobre todas as novas crianças que recolhera nos últimos anos. Tantas. Parecia que eram cada vez mais. Pelo menos uma vez por semana alguém desejava que uma criança desaparecesse. Jovens raparigas ficavam grávidas por engano e tentavam tudo para se verem livres das crianças. Até para um duende aquilo fazia impressão. E Jareth não era um duende. Era um Fae. Um elfo. Os elfos governavam entre todas as outras espécies inferiores de criaturas mágicas. Os duendes eram dos piores. Cabeças ocas, incapazes de pensar verdadeiramente, exceptuando algumas raras excepções. Claro que depois entre os duendes viviam outras espécies de criaturas. Mas não eram nada por aí além.
Por vezes, Jareth sentia falta da corte dos elfos, dos bailes infinitos, dos filósofos e das conversas inteligentes. Pena que não tivesse dado o valor no devido tempo. Quando era jovem odiava o protocolo, as regras infinitas, o obedecer a todos os mais velhos do que ele próprio. Como todos os jovens, percebia agora, tinha sido um revoltado contra tudo e contra todos. Fizera grandes loucuras, até para um elfo. A sua recompensa tinha sido ter de governar entre uma espécie tão inferior como os duendes. No princípio tinha sido muito duro. Mas as crianças humanas cresciam, e assim em breve Jareth encontrou-se com uma companhia um pouco melhor. Só era pena que os duendes não gostassem muito dos "mestiços", nem humanos nem elfos. Porque era isso mesmo que qualquer humano que passasse muito tempo no reino se tornava. Uma mistura de raças.
Assim, os humanos viviam numa cidade própria, que eles próprios tinham construído com o tempo. Muitos trabalhavam no castelo, como criados particulares de Jareth. E Jareth visitava muitas vezes a cidade deles, para conversar um pouco com alguém capaz de lhe responder sensatamente. Todos o consideravam uma espécie de pai ali. Tinha sido ele que os criara quando ninguém os quisera. Quando ninguém os reclamara.
"Excepto ela." Reflectiu Jareth, pensando em Sarah. Ela reclamara o seu irmão. Facto estranhíssimo e que no inicio o tinha divertido. Aquela fedelha pensava mesmo que lhe podia fazer frente. Eis um desafio inesperado que ele aceitara de bom grado para quebrar a monotonia da sua longa existência. E fora divertido. Até ao momento em que ele percebera que aquilo já não era um jogo, pelo menos para ele. A teimosia de Sarah, a sua coragem ao enfrentá-lo, a forma como conseguira reunir amigos num local tão inóspito, tudo o fascinara. E depois de dançar com ela, percebeu que a queria. Queria que ficasse ali com ele, a qualquer preço. Estava disposto a dar-lhe tudo o que ela quisesse. Tudo. Mas tudo o que ela queria era ir embora, com o seu irmão, para casa. Por isso, com o coração despedaçado, ele deixara-a ir.
Por vezes vigiava-a. Agora ela tinha 30 anos, uma carreira sólida como actriz, uma família dela. Ainda mantinha contactos com os seus velhos companheiros do Labirinto, mas era uma coisa rara. Também se tinha tornado uma mulher muito bonita. A sua beleza despontara aos poucos.
Jareth decidiu descer da torre. Já estava a entardecer e esta era a hora em que ele gostava de ir vaguear entre os mundos, transformado em coruja. Observar.

Miriam Part
O pequeno - almoço estava feito, a roupa estendida, o chão varrido e lavado, tudo antes das sete da manhã. Como ele gostava. Rápida, eficiente e acima de tudo, silenciosa. Agora eram sete e um quarto e era hora de acordar o marido para ele ir trabalhar para o escritório.
Já tinha passado a camisa dele três vezes. Era quase impossível que tivesse alguma ruga. As calças também já tinham sido passadas e vincadas. Os sapatos pareciam espelhos de tão brilhantes que estavam. Tudo parecia perfeito.
Miriam pegou no tabuleiro do pequeno – almoço e levou-o para o quarto dele. Ela e Jaime já não dormiam juntos no mesmo quarto á muito tempo. Ele dizia que Miriam não sabia dormir com ele. Por isso não valia a pena partilharem a mesma cama. Isto dizia ele. Miriam já nem se lembrava de dormir com ele, de qual era a sensação. Na verdade, lembrava-se de muito pouco dos primeiros tempos do seu casamento com Jaime. Claro que tinham existido bons momentos. Simplesmente ela não os conseguia recordar. Tudo o que sucedera entretanto ofuscara esses tempos.
"Bom dia, amor. É hora de levantar para trabalhar."- Murmurou ela com um sorriso algo forçado. Jaime dizia que uma boa esposa tinha de sorrir sempre para o marido.
Ele rosnou algumas palavras e virou-se para o outro lado. Miriam já esperava por isso. Jaime só tinha voltado e madrugada, depois de uma noite com os amigos. Era normal que agora tivesse sono. Mas se não o conseguisse levantar sabia o que iria suceder depois. E ela preferia evitar isso.
"Jaime, tens mesmo de te levantar amor. Senão vais acabar por chegar tarde ao trabalho."
" Cala-te parva, deixa-me dormir."- Resmungou ele.
"Como foi que chegámos a este ponto?"- Pensou Miriam, enquanto se inclinava para o abanar um bocado.
Porém, mal o tocou, sentiu as mãos dele no pescoço a apertar-lhe a garganta com tanta força que mal conseguia respirar.
" Eu disse-te que quero dormir, minha cabra. Agora vai fazer o teu trabalho da casa e deixa-me dormir, entendes-te?"
Com uma tontura, Miriam assentiu e ele largou-a. Ela aproveitou para fugir para o seu quarto e encolheu-se em cima da sua cama. Sabia o que viria de seguida. Pensou em sair, ir fazer compras ao supermercado, qualquer coisa que pudesse evitar um confronto naquela mesma manhã. Mas sabia que se ele não acordasse agora, dificilmente iria acordar tão cedo, e muito menos bem-disposto.
Miriam sentia-se farta das "fases" dele. Que ele metesse em cima dela as culpas de toda a gente. Que a fizesse pagar por toda a gente. Ao princípio, nada tinha sido assim. Mas um dia, começaram as censuras. Depois vieram as humilhações, os gritos. Daí até ele começar a bater-lhe tinha sido um passo muito curto. Durante algum tempo ele ainda pedia desculpa depois de lhe fazer mal, dizia que não tornava a acontecer. Agora já nem se dava a esse trabalho. Para quê? Ela era somente uma empregada a tempo inteiro ali. Depois do casamento, Jaime tinha conseguido convencê-la a desistir do seu emprego. Dissera que queria filhos, e que por isso era melhor que ela parasse logo de trabalhar, para depois não lhe parecer tão brusco. Dissera tantas coisas, o Jaime. Tudo mentiras. Os filhos nunca tinham chegado. E ainda bem, segundo ela. Aquilo não era vida para um adulto. Como não seria para um inocente? Mais do que isso, Miriam tinha medo de odiar qualquer filho que Jaime lhe pudesse ter dado.
"Miriam!"- Ouviu-se o grito pela casa toda. Ela preparou-se para o pior. " Sua filha de uma cadela inútil. Onde estás? Porque não me acordaste? Porque é que o café está frio?"