Eu tinha apenas oito anos quando tudo começou. Eu não imaginara que tudo começaria a mudar naquele dia, mas minha vida teria um desvio trágico por terem colocado decisões nas mãos de uma criança de oito anos. Fui uma criança estranha, na visão daqueles que eram normais ou ignorantes de suas diferenças. Eu era mais que eles, mas ainda não sabia disso. Aos oito anos falava dois idiomas fluentemente, com um terceiro arranhando.

Minha rotina desenvolvera um padrão naqueles últimos dois anos. Notas perfeitas, idiomas fluentes e um comportamento genial e indiferente me fazia receber olhares tortos. Fora as coisas que eu fazia e que ninguém sabia... Conforme as coisas se agravavam com os anos eu ganhava muito com o que refletir, amadurecendo cedo demais. Isso fez um abismo crescer entre mim e as outras crianças. O padrão consistia em quanto mais eu tinha o que pensar mais eu me afastava das outras crianças.

Deslocada eu fora desde criança. Marina, minha mãe adotiva, sempre dizia que eu era diferente quando bebe, que não me adequava, dizia que eu era especial... Mas eu não acreditara. Eu temia. É claro que temia. Eu tocava três instrumentos, falava fluentemente duas línguas e arranhava mais duas... Fazia aula de dança desde que começara a andar. Era o esperado que eu tivesse amigos em cada lugar, mas não fora assim.

Eu passara a apreciar a solidão. Eu me entregava a ela. Quando não estava imersa em pensamentos eu temia o que me tornava, eu temia as coisas estranhas que eu fazia... Os poderes misteriosos que eu tinha e que ninguém mais possuía. Eu era ingênua. Tinha apenas oito anos e apesar de ser diferente isso não impedia de ser apenas uma menina ingênua... Eu tinha três amigos. Mary, Maria e Alex. Certo dia eu perguntara a Mary sobre poderes na mesa do lanche, onde havia apenas nós três.

–Que tipo de poderes? – Eu falara baixo para que Maria e Alex não escutassem, mas é claro que Mary ficou surpresa e respondera alto. Vi a pergunta chamar atenção de Alex e Maria, principalmente esta ultima.

– Sei lá, falar com animais, controlar elementos, causar dor... – Eu olhara pra mesa branca de plástico, me recusando a ver as acusações nos olhos deles. O quão estranha eles me achavam. Doía ainda. Eu odiava aquilo.

– Não Rachel, nem ela, nem eu, nem o Alex. Ninguém faz esse tipo de coisa! Isso não existe, nenhum ser humano é capaz de fazer essas coisas e nem tente me falar que você faz, porque eu sei que não faz! – Maria cuspiu as palavras como se eu a tivesse ofendido pessoalmente.

–Não disse nada sobre eu fazer essas coisas. Eu só... Vi num filme e quis perguntar. Não seria interessante esse tipo de coisa? Ter esses poderes? Bem, eu não entendo sua raiva.–Eu era arisca quando irritada, mas mantive o controle para poder mentir. Vi ela relaxar na cadeira e parecer menos com um pinscher irritado.

– Só não gosto de nada fora do normal – Respondeu ela um pouco mas calma, mas eu percebi que eu não ficaria em paz pelos próximos meses. Era por aquele tipo de situação que eu era mais próxima de Mary, que era mais doce e gentil. Alex sempre fora meu melhor amigo, mas ele se afastara repentinamente a uns meses.

– Mary podemos conversar num lugar mais reservado? –Sussurrei no ouvido da menina, mas rapidamente olhei para onde Maria esta sentada pra ver se ela havia me ouvido, mas ela estava totalmente concentrada na conversa que estava tendo com Alex sobre a matéria de historia pra prestar atenção em mim.

– Claro vamos para as escadas - Entao nos levantamos e seguimos nosso trajeto. Eu olhei para trás e vi Maria me encarando com uma olhar assassino, ela definitivamente me detestava. Sentei-me na escada, aliviada por estar longe de Maria.

– Mary você me acha louca? - Perguntei baixinho, sabia que o fato de eu falar coisas estranhas e ser tão quieta sempre me fazia parecer estranha e talvez desequilibrada.

– Não loca, só te acho distante, mas porque você seria louca? - Ela me perguntou meio confusa, eu sabia que Mary só falara aquilo porque era muito gentil com todos, só que no momento eu nao ligava pra isso.

Eu só queria alguém me dizendo que era normal. Não aguentava as acusações de meu pai adotivo, a pressão que ele fazia pra suprimir meu poder. Não aguentava os olhares cortantes e desconfiados de Maria. Não aguentava saber que Alex, meu amigo mais próximo, se afastara de mim por eu ser assim, muito provavelmente.

– Por causa das minhas perguntas. A Maria me odeia, o Alex me ignora e você ainda e a única que me aceita, Mary. - Falei olhando pro teto agora, eu não era boa com sentimentalismo ou confissões , me sentia muito desconfortável fazendo isso, exposta.

– Rachel , a Maria não te odeia, ela só não gosta de nada diferente ou anormal e o Alex só acha que você quer ficar sozinha ai ele se afastou pra te dar o que você quer. - Ela disse delicadamente. Eu a encarei, surpresa com a segunda informação.

Aquilo me surpreendeu o Alex me conhecia tão bem? Realmente?

Ele não é muito analítico. Alex era um menino simples, que gostava de jogos, futebol e de ver revistas adultas com o primo mais velho dele. Um pervertido aos oito anos, mas extremamente divertido. Ele não era o tipo de pessoa entrona e deixava os ambientes leve. Eu só passara a falar com as outras duas, pois ele nos uniu, extrovertido como era.

– Mary? – Chamei meio hesitante. Eu teria coragem de fazer aquilo ?

–Sim? – Ela disse parecendo confusa e curiosa. Respirei fundo, eu não costumava pedir desculpas por nada. Não chegava a ser arrogante, mas era bem orgulhosa.

– Me desculpe – Falei meio contrariada.

– Pelo que? Você não fez nada errado. – Ela disse de maneira gentil.

Eu balancei minha cabeça lentamente, fazendo as mechas espichadas do meu cabelo curto balançar. Eu costumava ter um cabelo grande, quase na cintura, mas no dia anterior meu pai tinha cortado com uma tesoura de jardinagem após me ver treinando algumas das habilidades que tinha na praia.

– Mary eu fiz perguntas, mas não fui sincera na justificativa delas. – Expliquei.

A verdade é que eu estava desesperada para que Mary, Alex ou Maria dissessem que tinham habilidades. Eu queria que alguém dissesse que eu não era tão estranha quanto vinha pensando.

– Não intendi oque você quer dizer . –Retrucou Mary parecendo muito confusa.

–Eu não faço essas perguntas atoa, Mary. Não e curiosidade é necessidade –Disse me preparando pra confessar algo que sempre guardei comigo. Eu nunca dissera explicitamente o que eu fazia. Eu senti meus olhos queimarem com a vontade que continha de chorar. Eu simplesmente odiava chorar, ainda mais na frente das pessoas.

–Como necessidade? O que você quer dizer? – Me perguntou parecendo frustrada com minhas respostas vagas.

– Mary eu... – Comecei, mas não pude terminar. Fui banhada por uma escuridão que não compreendi.

Senti algo gelado na minha testa e creio que tenha sido isso a me despertar. Franzi as sobrancelhas e abri os olhos lentamente, a primeira coisa que registrei foi uma menina de cabelos castanhos claros e grandes olhos chocolates me encarando com uma mistura de pavor e preocupação. Mary. Ao lado dela se encontrava o diretor Fernando, ele tinha mais pavor do que preocupação no olhar.

–O que foi? Porque estão me olhando assim? – Perguntei meio irritada. Sentia uma pressão estranha na cabeça e meus olhos pareciam gelados.

–Seus olhos seu cabelo. Se olhe no espelho e vai ver – Ela parecia em pânico, mas não dei credito por saber o quão medrosa ela era.

Levantei-me e andei em direção ao espelho, me sentia como andar no mar, com movimentos lentos e surpresa com o que vi. Meu cabelo, longo, pesado e cacheado. Ele batia dois palmos abaixo do ombro, cheio de cachinhos. Meus olhos, usualmente verdes como absinto, estavam de um tom peculiar de azul escuro. Os observei clarearem e retornarem ao verde, mas me senti agradecida pelo meu cabelo parecer normal novamente.

– Como isso aconteceu? – Perguntei apesar de no fundo saber. Meus "dons" fizeram aquilo por si mesmos, eu tinha certeza. E eu me sentia imensamente feliz com aquilo.

– Nos não sabemos, quando você desmaiou eu vim buscar ajuda e quando voltei lá pra te buscar você estava assim– respondeu Mary um pouco mais calma quando viu meus olhos verdes novamente .

– Admitimos que isso foi estranho e nenhum de nós nunca viu isso, mas não creio que devamos fazer confusão, certo meninas? Falem que Rachel estava com uma peruca antes e que tirou. Posso contar com vocês, meninas? – Assentimos, realmente eu não precisava de mais especulação sobre mim. – Então vão pra aula, o intervalo de vocês já acabou faz dez minutos.

– Ok – dissemos eu e Mary juntas, mais por consciência que não teríamos respostas do que por falta de curiosidade.

Então fomos em direção a nossa sala de aula, quando chegamos nas escadas resolvi falar, já que Mary parecia silenciosa e pensativa.

– Mary você ainda gosta de min, mesmo depois do que você viu?

– Sim, eu não vi nada de mais, mas eu fiquei assustada quando vi seus olhos azuis. Isso já aconteceu?

– Não. Eu me assustei também, principalmente quando voltaram pra verde

– É... Bem... Agora a Maria vai te odiar mesmo. Como já disse ela odeia coisas anormais. E você mesma nos contou que estava chateada por teu pai ter feito você cortar o cabelo.

Já estávamos na porta da sala de aula, respirei fundo e abri a porta. Vários alunos nos olharam surpresos e quando a professora indagou sobre meu cabelo contei a historia que tinha sido ditada pelo diretor, vários alunos disseram que ficavam aliviados por ter sido só uma peruca, já que eu tinha ficado muito estranha de cabelo curto.

– Você fica bem melhor assim, Chel. – Alex disse com um brilho maldoso nos olhos azuis e soube que provavelmente vinha algo – Você já é pequeno e magra, com aquele cabelinho curto estava parecendo uma ratinha.

Eu estreitei os olhos para ele irritada enquanto ele ria. Virei a cara, mas isso me fez dar de cara com Maria me encarando na cadeira da frente. Tinha raiva e medo nos olhos dela. Ela não havia acreditado.

Na hora da saída vi Maria caminhando em direção a mim.

– Então... - começou, mas eu a cortei.

– Então o que? O que quer comigo?

– Como isso aconteceu? – Perguntou estendendo sua mão como que pra tocar meu cabelo, mas eu me esquivei e ela deixou a mão cair

– Eu já contei. Era só uma peruca.

–Espero que não acredite que cai nessa. De qualquer modo, foi impressionante– Disse ela parecendo mesmo impressionada. Eu confiava em cobras, mas não confiava em Maria, então sabia que tinha algo ali.

– Francamente, o que você quer, Maria? - Perguntei bem direta. Maria tinha um ódio gratuito por mim desde que me conhecera, cerca de um ano e meio atrás, quando entrara na escola no meio do ano.

Ela indicou que a seguisse e o fiz. Estava curiosa, apesar de tudo. Ela parou na biblioteca vazia e ficou me encarando. Ergui ambas as sobrancelhas para ela.

– Então, vai ficar me encarando? Fala, Maria! O que você quer comigo? - Disse meiorispida. Meu temperamento costumava variar entre o indiferente, o isolado e o dócil, mas isso não existia com Maria. Ela estreitou os olhos castanhos e jogou o cabelo loiro e liso por cima do ombro.

– Quero saber o que você é!- A exclamação dela me fez congelar no lugar. Fiquei a encarando esperando que fosse uma brincadeira de mal gosto ,mas ela parou ali e me encarava seria como nunca a vi antes. Então respondi:

– Sou humana, que nem você.

Eu não sabia se era verdade, eu não sabia oque eu era e se existiam outros como eu, mas imaginava que não poderia ser a única, entretanto eu mentia bem.

– Não, você não é. Pessoas normais não ficam falando sobre controlar animais, causar dor nas pessoas ou manipular os elementos! Os cabelos de pessoas normais não crescem em segundos. Voce não é normal, Rachel Lestrange – Cada palavra de Maria me apavorava, mas então ela disse meu sobrenome. Isso me irritou. E muito... Eu tinha uma proteção com meu nome que sequer eu entendia e não gostava dele na boca de Maria.

– Maria, você é louca. Se quer se sentir num filme, esteja a vontade, mas não me envolva! Eu já expliquei o cabelo e nunca afirmei fazer nada! Me de paz. – Eu a olhei de cima, com orgulho e desprezo, como se ela fosse uma menina bobinha, quando na verdade Maria era apenas alguns meses mais nova que eu.

– Você realmente acha que eu não vi você falando uma língua estranha com aquela cobra na excursão pro zoológico mês passado? – Sim, eu falara com uma cascavel. Eu tinha soltado a cobra, pois ela detestava o cativeiro e achei justo, mas ela mordera um garoto três anos mais velho e ele quase não resistira.

Eu tinha aberto a porta pra sair quando Maria retornou a falar.

– Mary me contou sobre a conversa de vocês mais cedo –Quando ela disse aquilo me virei abruptamente pra a encarar e ela estava la, sorrindo de orelha a orelha, com ar vitorioso.

Eu lhe lancei um olhar de raiva e sai da sala. Eu devia ter imaginado que ser minha amiga acabaria sendo menos do que ser prima de Maria quando pesasse o medo. Eu estava com muita raiva e naquele momento nem tentei controla –la. Não registrei que o bebedouro começou a sair muita agua quando passei por ele ou que uma lâmpada explodiu, eram coisas que Alex viria a me contar depois.

– Como você pode? Pensei que fossemos amigas! – falei furiosa assim que cheguei a Mary.

– Rachel, do que você esta falando? É claro que somos amigas. – Tive vontade de arrancar cada fio do cabelo dela, sonsa maldita! Minha vontade era de apertar aquele pescoço até que ela ficasse roxa! Eu também não parei para analisar aquele sentimento quente de ódio que não parecia vir de mim, mas de algo dentro de mim, apesar o absorvi e me senti forte de um jeito que não entendia.

– Então,porque você contou sobre a conversa de hoje cedo pra Maria?

– Rachel... Eu disse por que você precisa de alguém que converse com você... Eu disse pra ela porque ela tem coragem de falar com seus pais ... – Ela parecia meio hesitante , sabendo que eu na era nada legal com raiva.

–O que? – A interrompi incrédula – Meus pais? O que você pensa que esta acontecendo comigo? Acha que eu estou ficando louca ?

– Não, Rachel. Louca não, só meio perturbada.

Ri de modo sarcástico e estava preste a responder quando o porteiro me chamou.

– Rachel Lestrange e Alexander Quinn. Vocês vão sozinhos todos os dias, o que ainda fazem aqui?

Lancei um olhar irritado a Mary e dei as costas, ignorando o chamado dela. Alex já estava no portão me olhando tranquilamente, parecendo bem divertido.

Sai da escola e andei em silencio ao lado de Alex por um tempo, ate que resolvi falar.

– Alex...? - Chamei meio hesitante. Naquela época eu só convivia com eles três, então eram importantes para mim, mas eu vira mais cedo como tinha sido confiar em alguém importante.

– Sim? – Ele não estava assustado ou com medo. Parecia apenas achar tudo muito divertido.

– Você também me odeia ?- Questionei com uma sombra celha levantada .

– O que? Odiar-te? Não, não, porque te odiaria? Eu te adoro, só te ignorei porque eu pensei que era isso que você queria . – Disse ele meio constrangido, mas ainda sorrindo. Aquilo era tão Alex que eu o abracei. Ele riu ao me soltar.

– Eu sei. Você também me acha louca?

– Não – Ele deu uma pausa então continuou – Rachel , você se importa se eu ficar na sua casa um pouco. Acho que precisamos conversar,

– Tudo bem, Alex porque você acha que a Mary esta do lado da Maria agora ?

–Baixinha, se você não sabe, acha que vou saber? O gênio aqui é você.

Quando entramos minha mãe não estava em casa. Nem meu pai, fato pelo qual fiquei imensamente feliz. Eu e Alex almoçamos rindo, brincando e falando de programações de televisão e filmes infantis, achando o máximo, como fazíamos tempos atrás. Ele entendia mais que eu, por ter mais tempo que eu.

Quando enfim fomos pro meu quarto ter a parte mais seria de hoje eu não estava ansiosa. Sentamos na minha cama e Alex deu um longo suspiro e começou:

–Rachel... Você não sabe mesmo o que você é?- Ele me olhava atentamente em busca de algum sinal de mentira, não que ele fosse achar caso houvesse.

– Não, não faço ideia - Respondi imediatamente .

– Rachel ,você pode me mostrar do que você é capaz de fazer ? – Ele me questionou serio. Alex pra ficar serio era um sacrifício, aquilo era um fato notório.

–Eu... Eu... –Hesitei e quando resolvi que eu ia tentar falar novamente, ouvi um murmúrio baixo no quintal.

Meu primeiro pensamento foi que eram meus pais que tinham chegado , mas eles nunca falavam baixo. A menos que seja algo que não queriam que eu ouvisse .

E também tinha mais de duas vozes.

Isso só podia significar que tínhamos visitas inesperadas