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Um jeans surrado e uma camiseta.
— Não há mais nada que possa ser feito, Dean. — Sam ergueu o olhar da tela do notebook e o direcionou ao irmão, que andava devagar de um lado a outro da sala do bunker, com uma expressão carregada no rosto devido à preocupação pelos últimos acontecimentos.
Enquanto andava como um tigre enjaulado, Dean mantinha o cenho franzido e os lábios contraídos. Estava visivelmente descontente. Ao ouvir as palavras de Sam, ele, imediatamente, parou de andar e encarou o irmão fixamente:
— Que merda, Sam! Tem que haver alguma coisa que possa ser feita! – Bufou.
Com um suspiro de cansaço e exasperação, Sam fechou o notebook e passou as mãos pelos olhos e depois pelos cabelos, ajeitando-os atrás das orelhas. Ele se levantou e se aproximou do irmão, baixando o máximo que podia o tom de voz para que somente Dean o pudesse ouvir:
— A única solução é mantê-lo vivo usando a graça de outros anjos... E isso ele não quer mais fazer. Estamos de mãos atadas.
— Qual é, Sam? Tem que haver outro modo! Você sabe, tanto quanto eu, que ele não vai querer virar um serial killer de anjos e sair matando todos por aí para roubar a graça deles. — Dean coçou a cabeça e fez uma careta demonstrando sua completa insatisfação com a situação, depois voltou a encarar Sam – ele é um dos mocinhos, cara, não é o vilão! Pelo menos não é mais – completou ao se recordar de quantos problemas Castiel havia causado no passado.
— Roubar a graça de um anjo não implica exatamente em ter que mata-lo. Metatron roubou a graça de Castiel e ele permaneceu vivo, como humano. Anna também perdeu sua graça e permaneceu viva.
— Ela permaneceu sim... num manicômio! Então, não seria quase a mesma coisa matar ou condenar um anjo a virar humano? Não é o fato de ser humano que está destruindo o Cas? Ele não suporta as angústias humanas, ele não consegue lidar com esse vazio que existe em nós. E seu corpo está se desintegrando aos poucos. — O mais velho piscou várias vezes tentando limpar a visão embaçada por lágrimas que começavam a se formar nos cantos dos olhos.
— Isso tudo por causa da graça que não era a dele, Dean!
— Sam, o Cas não quer tomar a graça de mais ninguém. Ele desistiu, irmão.
Sam tornou-se pensativo. Não havia mais nada que pudesse ser feito para salvar a vida de Castiel. Nem mesmo com a ajuda de Crowley eles conseguiram alguma resposta ou solução. O rei do inferno insistia para que começassem uma caçada aos anjos, para assim manter a vida de Castiel, mas isso só podia mesmo ser uma proposta de Crowley, pois ele também se beneficiaria com o desaparecimento dos anjos da face da terra e do céu. Seus demônios teriam mais liberdade para agir na busca pelas preciosas almas humanas.
— Dean, eu lamento muito. Acho que tudo o que nos resta agora é nos preparamos para quando chegar a hora e aceitar os fatos como são.
— Não! Nós nunca fomos assim, Sam! — Dean gesticulava nervoso. — Nós sempre procuramos dar um jeito nas coisas! — O Winchester mais velho travou os dentes e apertou os olhos, levantando também o tom de voz, deixando vir à tona toda a sua indignação — e não vai ser agora que vou pregar o rabo numa cadeira e ficar esperando nosso amigo morrer. Se você não quer lutar, você fica aqui, mas eu vou cair no mundo e não vou voltar até encontrar um jeito de salvar a vida do Cas!
— Não seja idiota, Dean! Quando você voltar pode ser muito tarde! — Sam segurou forte no braço do irmão, tentando fazer com que Dean compreendesse que não havia mais esperanças, e que agora tudo que podia ser feito era tentar tornar melhores e mais felizes os últimos dias de Castiel na Terra.
Os lábios de Dean tremeram, enquanto seus olhos ficaram vermelhos e lacrimosos. A vida sempre os surpreendia com coisas ruins. Por que razão precisava ser sempre assim? Por que todos que se relacionavam com eles precisavam partir? Ele se perguntava, tentando controlar a vontade de chorar que o deixava sufocado. Desviou seu olhar da direção dos olhos de Sam, que o fuzilavam enquanto Sam ficava a espera que ele compreendesse o sentido de suas palavras.
— Ele precisa de você aqui, Dean, ao lado dele. Precisamos ficar e cuidar dele até o fim. Somos uma família, lembra? Cas é o nosso irmão do coração.
Estavam de pé se encarando, a mão de Sam permanecia no braço de Dean, este um pouco ofegante pelo esforço de controlar sua emoção, sob o efeito do que o irmão acabara de dizer. Sam percebeu o impacto que suas últimas palavras tiveram em Dean, que pareceu ponderar, quando Castiel entrou carregando uma pequena pilha de lençóis e um travesseiro. Antes de se embrenhar sala adentro, ele se deteve, observando os irmãos. Compreendeu que deviam estar numa de suas intermináveis discussões, por isso hesitou, ficou parado lá olhando para eles.
Castiel havia acabado de sair do banho e estava vestindo somente um roupão. Ainda tinha os cabelos escuros molhados e despenteados e sua barba havia sido feita no banho. Tinha a pele do rosto lisa, diferente de quando ainda era um anjo e não precisava se dedicar à sua higiene pessoal, pois seus poderes angelicais o mantinham sempre limpo, com aquela barba levemente áspera e por fazer. Com o rosto limpo assim, ele parecia mais novo, delicado. Havia um leve corte próximo ao maxilar que fora feito pela lamina de barbear um pouco desgastada e a pouca habilidade do anjo em barbear-se. Ele parecia levemente abatido, mas não parecia estar tão mal, a caminho do fim, como ele estava. Restara nele um pouco da graça roubada de Adina por Crowley, porém, ela não duraria muito mais e em breve acabaria, e quando isso acontecesse seria questão de dias para que Castiel partisse para sempre. Assim que ele se deteve, Sam e Dean voltaram para ele a sua atenção. Ele parecia desconfortável por ter interrompido os dois irmãos.
Ficaram os três se olhando por alguns instantes, antes que Sam voltasse a se sentar diante da mesa onde estava o computador e recomeçasse suas pesquisas. Dean se manteve olhando para Castiel por alguns momentos. A visão de Castiel parado diante dele, segurando aqueles lençóis, metido naquele roupão, com aquela expressão de criança que acaba de ser pega aprontando alguma bagunça, o deixou ainda mais angustiado. Sentiu-se desmanchar por dentro em tristeza ao pensar que nunca mais o veria, um dia. Nunca mais olharia para aqueles olhos azuis. Castiel continuava lá, parado, olhando para Dean como se esperasse que ele autorizasse sua entrada na sala de vez.
— Algum problema, Cas? — perguntou Dean, lançando sobre o anjo um olhar de durão, engrossando o tom de voz, tentando não demonstrar seus verdadeiros sentimentos. — Vai ficar aí parado me olhando?
— Espero não ter atrapalhado a conversa de vocês, Dean.
— Não atrapalhou — falaram ao mesmo tempo, os irmãos. Sam sem tirar os olhos da tela do computador, Dean sem tirar os olhos do anjo.
Só depois de ouvir a resposta foi que Castiel se mexeu, continuou seu caminho até um sofá próximo e começou a abrir os lençóis e a cobri-lo, se preparando para arrumar sua cama para se deitar, sendo acompanhado com o olhar por Dean. Ainda não havia terminando seu trabalho e estava com o travesseiro ainda em suas mãos, quando Dean o interrompeu.
— O que você está fazendo, Cas?
— Arrumando a minha cama. Preciso me deitar. Eu estou com... sono — ele demorou um pouco pra dizer a última palavra.
Sono. "Anjos não dormem", Sam tinha dito numa outra ocasião em que Castiel estivera sem seus poderes. Como deveria estar sendo difícil para Castiel se acostumar com a humanidade que agora trazia em si. Além de todas as imposições fisiológicas do ser, ainda havia aquela dor profunda na alma, aquele vazio enorme como um buraco negro consumindo tudo ao seu redor. Aquela ânsia que não podia ser aliviada e que ele não compreendia. Mesmo com Castiel sorrindo, Dean podia ver a dor na face do anjo, em cada linha que se formava quando ele apertava mais os olhos para sorrir.
A conversa que se iniciava entre o Winchester mais velho e o anjo chamava a atenção de Sam, que desviou o olhar da tela para a cena que se desenrolava diante dele.
— Não! Pode parar por aí! — disse Dean, abusando de seu tom mais autoritário enquanto se aproximava de Castiel o encarando de cima, acreditando que assim pareceria menos emotivo e mais controlado. — Você não vai mais dormir aí. Vai dormir no meu quarto, na minha cama!
—O quê?! — desta vez foram Sam e Castiel que perguntaram ao mesmo tempo, fazendo coro, com seus olhos em Dean.
Castiel parou seu movimento no meio e, com uma expressão de dúvida em seu rosto, passou a alternar rápidos olhares entre Dean e Sam; e Sam fazia a mesma coisa, alternando olhares entre Castiel e Dean, e este, arregalando levemente seus olhos e passando a mão nervosamente sobre a boca crispada, se moveu depressa lançando um olhar furtivo para o sofá.
— Qual é o problema de vocês dois? Vou precisar desenhar? — Dean esbravejou e pegou, com um movimento brusco, o travesseiro das mãos de Castiel, arremessando-o no sofá. — Eu não falei que ele vai dormir comigo! Ele vai dormir lá, e eu aqui! Deu pra entender?
— É claro, Dean — Castiel murmurou, baixando a cabeça levemente, evitando contato visual com os irmãos.
Dean estava corado. Seu rosto de pele clara e sardenta não tinha como ficar mais vermelho. Será que aqueles dois idiotas tinham pensado mesmo que ele estava convidando Castiel para dormir com ele? Castiel certamente não havia entendido, mas Sam, com toda certeza, só estava sendo malicioso. Ele se atirou no sofá, se deitou e fechou os olhos, cruzou os braços atrás da cabeça e fingiu estar indiferente aos outros dois.
— Puxa, Dean. Por um momento eu até pensei que... — Sam não conseguiu terminar a frase, pois foi interrompido por Dean que urrou um "cala essa boca, Sam!" tão raivoso que o Winchester mais novo se sentiu levemente aborrecido.
Castiel, que naquele momento estava alternando olhares entre os irmãos e já se encontrava menos constrangido, suspirou:
— Dean, você não precisa fazer isso. Esse sofá não é muito confortável. Você não vai se sentir bem amanhã pela manhã.
— É exatamente por isso, Cas! Você está precisando descansar, e agora vá se deitar e tratar de dormir, ok? E não vai babar na minha fronha! — Dean resmungou, cruzando as pernas e balançando levemente os pés, parecendo estar completamente relaxado e ignorando tudo à sua volta, o que não era bem verdade.
— Certo... Então, boa noite, Dean. Boa noite, Sam. — Castiel falou ao se retirar da sala, indo um pouco a contragosto para o quarto de Dean.
— Boa noite, Cas! — os dois responderam, mais uma vez, ao mesmo tempo.
O cheiro de café recém passado e bacon na chapa se espalhou pelo bunker, e isso fez com que Sam despertasse de vez. Estava naquela moleza, com preguiça de sair do sofá onde tinha passado a noite, confundindo sonhos com pensamentos bobos, quando sentiu o ar inundado com aquele cheiro da comida gordurosa tão apreciada por seu irmão. Sam já havia falado pra Dean maneirar no preparo daqueles pratos porque empesteava o ar do bunker com aquele cheiro. Após uma passada rápida no banheiro para aliviar a bexiga, dar uma lavada no rosto e escovar os dentes, ele se dirigiu para a cozinha, onde um Dean Winchester resmungão, vestindo um roupão por cima da parte de baixo de um pijama curto, remexia frigideiras e pratos.
— Quantas vezes eu já falei para você não cozinhar isso? Eu busco nossa comida se for preciso, só para esse cheiro e toda essa gordura não ficarem impregnados em tudo por aqui.
— Estou acordado há horas, Sam. Estou com fome. Não ia ficar esperando a bela adormecida acordar para sair pra comprar comida. – Dean serviu duas canecas de café, entregou uma ao irmão e se sentou diante de um prato com ovos e bacon, com a outra caneca de café fumegante em uma das mãos. Havia deixado uma caneca vazia, reservada para quando Castiel acordasse.
—Foi você quem quis levar o Cas pra sua cama, então, não reclame de ter dormido mal. — Sam controlou um sorriso cínico com uma colherada da comida, olhando com o canto do olho para o rosto do irmão para ver sua reação à provocação, se deliciando ao ver que Dean engasgou com o café quente.
— Muito engraçadinho, Sam! —Dean falou sem sorrir, em meio ao ataque de tosse.
— Ele ainda está dormindo? — Sam tentou quebrar o clima de tensão do irmão. — Você não acha que ele já deveria ter se levantado?
— Eu não sei. Se você ainda não percebeu, eu não ando com o Cas no bolso e nem passei a noite junto com ele — resmungou Dean abrindo um jornal para ler enquanto comia seu desjejum.
— Se tivesse passado, não estaria tão mal-humorado. Alguma coisa interessante aí?
Dean ergueu o olhar do jornal e ficou encarando Sam. Suas narinas se dilataram pela respiração pesada, carregada de irritação. Sentia vontade de jogar o jornal direto na cara do irmão mais novo, mas preferiu voltar sua atenção novamente para o que tinha visto nas páginas policias — Alguns caras mortos, todos em circunstâncias estranhas, corações arrancados, perfuração no pescoço e falta de sangue em dois, e não fica muito longe daqui. Seria bom você procurar mais detalhes na internet — a última frase foi dita em tom ligeiramente autoritário.
— Mas nós não estamos mais caçando, não é? Pelo menos enquanto estamos cuidando do Cas.
— É, mas uma caçadinha aqui, outra ali, pode ajudar a espantar o tédio. Nós combinamos de cuidar dele e abandonar a busca por curas malucas, não decidimos parar totalmente de matar monstros — Dean respondia ao irmão sem retirar os olhos do jornal, só o fazendo quando Castiel adentrou a cozinha, vestindo uma de suas calças jeans e uma de suas camisetas preferidas. — Mas o que é isso? Quem te autorizou usar minhas roupas?
— Dean, pega leve com o Cas — Sam encarou o irmão, mas seu tom sério se desfez no instante em que viu Castiel vestindo as roupas do seu irmão. Naquele momento ele abriu um sorriso enorme, se divertindo com a situação.
— Bom dia, Dean! Bom dia, Sam! As minhas roupas não estavam limpas o bastante, Dean. — Castiel se serviu de café e ovos mexidos, olhando em volta e para a mesa como se procurasse por alguma coisa – não tem sanduíche de creme de amendoim e geleia?
A resposta de Sam veio na forma de um balançar de cabeça, em negativa.
— Tudo bem, Cas. Vamos combinar uma coisa: você pode dormir na minha cama, mas não mexa mais nas minhas tralhas, ok? Não pegue a porra das minhas roupas sem pedir. — Dean observou como suas calças ficavam mais apertadas no quadril de Castiel, e não deixou de reparar em como ficava justa na parte de trás, na região do traseiro, antes que o anjo se sentasse ao lado de Sam. Mergulhado em observações, o loiro ergueu uma das sobrancelhas, em seguida torceu um pouco o nariz com ar de desdém, voltando a ler o jornal em seguida.
— Prometo devolve-las limpas, Dean. Não vou deixar meu cheiro nelas. Apesar de que agora eu estou com seu cheiro em mim por toda parte. Eu dormi com seus lençóis, e agora suas roupas... — Castiel inclinava a cabeça para cheirar as mangas da camisa enquanto falava e Dean o observava com o garfo parado a meio caminho da boca, parecendo estar tentando não pensar em bobagens enquanto ouvia Castiel se justificar. Sam, mais uma vez, tentava disfarçar suas risadinhas debochadas.
— Não, Cas, não se preocupe — Dean murmurou, passando a língua pelos lábios para retirar o gosto da comida e voltar à realidade. Tomou o ar com um suspiro profundo e voltou a olhar o jornal.
Castiel e Dean estavam combinando os termos da permanência do anjo no quarto do loiro e o que era ou não permitido usar, tocar e olhar. Dean insistia em sua privacidade e chegou ao ponto de dizer a Castiel que o expulsaria de seu quarto caso o anjo olhasse sua coleção de revistas pornô. Estavam tão concentrados na conversa que Sam conseguiu se levantar, lavou sua caneca, guardou no armário e deixou a cozinha sem que eles percebessem. Ele pegou o notebook e foi se acomodar no mesmo sofá onde tinha passado a noite.
Começou pelos sites de notícias policiais da cidade mencionada no jornal, onde as mortes de quatro homens era destaque. Corpos sem sangue, corações arrancados, vítimas de idade, classe social e raça diferentes. Em comum havia apenas o gênero masculino. Com toda certeza aquele era um caso para os Winchesters investigarem. Complicado seria convencer Castiel a permanecer no bunker, e para sua própria segurança era o mais recomendado, devidas as circunstancias em que o anjo se encontrava.
Uma olhada rápida em sites de relacionamento e redes sociais e os perfis das vítimas já se delineavam: um homem de 35 anos, branco, casado, perfeito cidadão suburbano; um jovem universitário de classe média, negro, status nas redes sociais: solteiro, em busca de um amor; um bem sucedido artista plástico, assumidamente gay, com idade em torno dos 50 anos, casado; um latino, 30 anos, recém-divorciado em busca de diversão e sexo casual, provavelmente com problemas com a Imigração.
— Ei, Dean! Acho que nós temos trabalho a fazer! — Sam falou alto o bastante para ser ouvido na cozinha pelo irmão. Pouco depois Dean já estava na sala, anotando alguns dados sobre o caso num papel. Ele e Sam sairiam para uma caçada nas imediações e teriam, finalmente, um pouco de ação.
