Nota de tradutor:

Boas.

No seguimento da tradução de Dresden de hedera_helix , publicado no site archiveofourown org, começo também a fazer a tradução da história Beyond the Bridge, um fic que segue os eventos da história original com uma cena por capítulo contada pela perspectiva do Erwin.

Publico já os 3 capítulos que correspondem/acompanham os 3 já traduzidos a esta data de Dresden. Quando publicar a tradução do capítulo 4 de Dresden, irei publicar o capítulo 4 deste.

Uma vez que o fic ainda está em andamento, sempre que a autora publicar um novo capítulo tentarei traduzi-lo o mais rápido que me seja possível.

Tal como na outra tradução, relembro que isto é uma tradução amadora (Português PT-PT, pré Acordo Ortográfico) de alguém que não tem nada perto de uma formação universitária neste campo. E relembro que todo o género de sugestões e correcções são aceites e encorajadas!

Cheers

.


.

Ali está de novo - aquele sentimento de vazio que segue uma noite partilhada, multiplicado quando o perfume dela flutua por entre os lençóis. Erwin luta para o ignorar enquanto faz a cama, para ser um sinal de que não sente nada, tal como deveria ser. Uma questão de conveniência - para ambos, sem dúvida - apenas algo com que se distrair e para manter rumores afastados. Não há necessidade de sentimentos, de que natureza for; daí esse vazio ser apropriado, que ainda assim ele deseja que desapareça quando acabar de fazer a cama. Abre a janela - ela queria-la fechada e ele cedeu apesar do desconforto - para eliminar o ar estagnado do quarto e baixar a temperatura a um nível que tolere melhor; parece-lhe ainda mais frio contra a pele molhada quando acaba de lavar o suor da noite passada.

Erwin elabora um plano para o dia enquanto se veste; uma chávena de café e pequeno almoço, vai dar uma olhadela pelo jornal mais que não seja só para ver sobre o que estão a mentir. Trabalho a seguir, algumas cartas e ficheiros da semana que se acumulam sempre para serem organizadas durante o fim de semana. Pondera sobre jantar num restaurante algures e depois lembra-se da perna de borrego que recebeu da Frau Hirsch. Que maçadoras as mulheres conseguem ser para um homem solteiro, e ainda assim de quantas formas, Erwin pensa enquanto aperta as calças, têm as suas ocasionais utilidades.

Coloca-se em frente do lavatório e começa a barbear-se. Lilian reclamara da barba hirsuta, disse que lhe deixava a pele vermelha. Sempre preocupada que as empregadas coscuvilhem, e Erwin supõem que seja bom ela se preocupar - Deus sabe que ele não precisa de mais problemas por causa dela, ainda por cima. Erwin sabe bastante bem que só a vai usar até ser conveniente - apesar de que acabar o caso iria com certeza requerer alguma manobra, se se chegasse a esse ponto. Alguém como ela iria com certeza deixar os sentimentos-

Um movimento súbito no espelho, e o pensamento desaparece da mente de Erwin tão depressa quanto a pistola aparece na sua mão. É um momento de puro reflexo quando se volta, pontaria firme, esperando um assassino mas em vez disso vendo...

Um homem.

Um rapaz? Desarmado. Sem fôlego. Pálido. Pequeno. Jovem. As observações invadem a mente de Erwin enquanto ele mantém a mira, ouvindo o intruso sibilar um palavrão antes dos olhos verem o cano da arma e ele estacar, olhar esbugalhado, o corpo como uma estátua sob a sua janela. Ele saltou vindo dela. Como? Erwin afasta a pergunta. Não é essencial. A mente já está a formular resultados. Morto ou vivo? Ouve soldados na rua para lá do muro do jardim: à procura de um judeu, este jovem homem que está sentado debaixo da janela do seu quarto, quase esbaforido pela fuga.

A sua mente precisa de mais tempo. A situação é demasiado imprevista.

- Estou a ver que estão a falar de ti - Erwin diz em voz baixa para ter mais tempo e a expressão do homem muda, confirmando a especulação.

O homem não fala mas o olhar começa a vaguear pelo quarto, para o examinar, e de alguma forma Erwin sabe que ele está à procura de uma arma. Alguém que quer viver. E isso traz de volta aqueles desfechos: morto ou vivo? Se morto, como? Se vivo, de que forma? Terá sido visto a escalar a parede - porque ele teve de a escalar, apesar de soar absurdo - e se sim, seria essa uma boa forma de se desfazer dele? Parece o cenário mais agradável. Erwin nunca fez isto, olhar nos olhos de um civil e premir o gatilho. Aquele assunto com Marie volta à sua mente mas afasta-lo de forma zangada. Não é nem a altura nem o local - e além disso, não há mais nada para re-examinar ou fazer quanto àquilo. De qualquer das formas, seria melhor se os homens lá fora tratassem do assunto, mais que não fosse para o poupar de... quê? Arrependimento? Pergunta-se será essa a palavra a usar.

E depois há a outra opção: vivo.

Não há resgate de civis, e fora isso que lhe guiara a decisão antes. Erwin sabe disso, sabe o protocolo - e sabe igualmente bem que já tomou liberdades no tema antes. Conhece as alternativas, vê o conteúdo da cabeça do homem espalhado pela sua parede, ouve os berros dos homens de uniforme enquanto conduzem pessoas para fora dos comboios - cada visão mais horrenda que a anterior, apesar de saber que não se devia sentir assim, sabe que Holtz não se sentiria. Os soldados lá fora ganham a Erwin por uma questão de segundos enquanto tenta chegar à decisão.

- Não faças nada estúpido - diz Erwin ao homem antes de baixar a arma. Um risco desnecessário, mas também, ele precisa dormir ao final do dia.

Erwin volta-se para o lavatório e seca o rosto e as mãos antes de caminhar rapidamente para a porta e a abrir; cinco soldados no átrio com um cão, ainda jovem e demasiado excitado por ter sido incluído e ladrando loucamente por essa razão.

- Pedimos desculpa por o incomodar, senhor - um dos homens diz enquanto outro está a tentar silenciar o cão. - Estamos à procura de uma pessoa de interesse neste bairro e gostaríamos de saber se viu alguma coisa.

- Estava a perguntar-me o que seria a barulheira - Erwin diz-lhe mal humorado. - Apanhariam mais dessa gente se aprendessem a ser silenciosos enquanto os perseguem.

- Peço desculpa, senhor - diz o homem. - É o cão, ainda não está habituado a este tipo de coisa.

O cachorro ladra para o corredor mais alto, mesmo com um dos soldados a tentar mantê-lo calado, puxando a trela com força suficiente para fazer o animal ganir. Há algo nos maus tratos que incomoda Erwin, e de alguma forma sabe que não tem nada a ver com o gosto do Führer por cães.

- Bem, de qualquer das formas, não posso dizer que tenha visto algo fora do normal - declara laconicamente, esperando que a brevidade do tom seja suficiente para mandar os soldados seguir rumo. - Lamento não vos poder ajudar.

- Importa-se que dêmos uma vista de olhos? O criminoso é pequeno, e sabe como estes ratos judeus se conseguem esconder. - O Lance Corp-- Rottenführer pergunta-lhe agora, dando uma risada que soa demasiado familiar para alguém com o posto do homem.

Erwin intensifica a severidade do olhar e fixa o soldado, os pensamentos já de volta para o jovem no seu quarto; um judeu, então, ou pelo menos eles crêem que sim. Documentos falsos ou casado com alguém alemão ainda a viver em Dresden. Não há muitos homens jovens a andar pela cidade sem um uniforme; ele deve ter-se destacado de forma dolorosamente clara. Foi uma vistoria aleatória, talvez. O silêncio arrasta-se, tornando-se menos confortável a cada segundo que passa, e Erwin espera que seja suficiente.

- Claramente, isso não será necessário - um dos outros soldados diz, soando nervoso sob a expressão severa de Erwin.

- Parece que o Rottenführer se está a esquecer da sua patente e da minha - responde Erwin rispidamente enquanto o cão recomeça a ladrar para a entrada. - Espero que controlem o barulho daqui para a frente.

- Sim, senhor. Com licença, senhor - o homem de antes diz enquanto Erwin agarra na porta e a fecha resolutamente para colocar um fim na conversa.

De volta para a questão mais importante: o intruso. Não vai confiar num homem de uniforme e já deve ter achado a navalha por esta altura, se Erwin pode supôr alguma coisa. Não há razão para assumir que ele possui qualquer habilidade com ela, mas ainda assim Erwin entra no quarto cuidadosamente para evitar alguma surpresa desagradável. O ataque é rápido mas sem qualquer destreza; os movimentos do homem são rápidos e há um tipo de agilidade que Erwin nunca conseguiria igualar, o porte do corpo sendo como é. O que falta ao homem é bastante claro: treino, conhecimento e estratégia, a consideração para pensar nas melhores tácticas a empregar em cada situação. Erwin desvia-se dos ataques com algum esforço - aquela velocidade é difícil de acompanhar, antes de imobilizar o homem. É aqui que tem a vantagem e aproveita-la sem demora, forçando o braço do homem atrás das costas e retirando-lhe a navalha da mão, guardando-a rapidamente no bolso.

- Era precisamente isto a que me referia - Erwin murmura antes de aliviar o aperto para não causar ao homem desconforto desnecessário, e é claramente uma surpresa para ele. Erwin move-se rapidamente para a janela para a fechar e corre a cortina; ter alguma coisa para fazer afasta-lhe a mente de arrependimentos. - Eles vão ficar na zona por um bocado. Seria melhor esperares até anoitecer.

Olha para trás para homem cuja expressão está cheia do género de surpresa descontente e ele repara de novo nas olheiras sob os seus olhos e o vazio das suas bochechas. Sem emprego permanente, supõe Erwin, e comida deve ser escassa sem isso. O pobre coitado parece prestes a cair, o que torna a sua presença no apartamento ainda mais impressionante. Algo naquela aparência desoladora provoca a compaixão de Erwin.

- Se calhar gostarias de te sentar enquanto esperas - sugere e de repente as pernas do homem parecem ceder e ele senta-se no chão de novo, olhando para Erwin com ressentimento e raiva mal disfarçada; Erwin não o pode culpar, apesar de também não o apreciar. Pergunta-se de deveria aguardar que o homem falasse, mas ele parece relutante.

- Talvez seja melhor tomarmos um café - diz Erwin, supondo que já fazia um bom tempo desde que o homem tomara alguma coisa com o rótulo de café que tivesse uma amostra perto de café lá dentro; uma generosa oferta de paz que é desvalorizada. - Ou talvez queiras comer alguma coisa? Há quanto tempo não comes uma refeição decente?

Ainda sem resposta. Está a tornar-se bastante ridículo e irritante. Petulante até, mas é verdade que o homem parece ser bastante novo. Talvez sirva de explicação - ainda que totalmente insatisfatória.

- Com certeza não há motivo para não agirmos como pessoas civilizadas - Erwin recorda ao homem, que olha para cima em descrença de novo. - Mesmo nestas circunstâncias.

- Civilizado? - é a sua primeira resposta. A voz é muito mais grave do que Erwin previu, revelando que a sua estimativa da idade do homem possa estar incorrecta. - Não acho que alguém como tu devesse usar uma palavra dessas.

Uma opinião honesta baseada nas provas à disposição, e uma com que Erwin não pode discordar, considerando tudo o resto.

- Diz o homem que me tentou matar nem à cinco minutos - responde-lhe Erwin, tomando nota do sotaque do homem; distintivamente de Berlim.

- Tentaste matar-me primeiro.

Erwin não consegue evitar sorrir; uma declaração tão infantil, quase cómica dada a situação. - Ameacei a tua vida, sim - admite de boa vontade. - Mas só eu sei se a minha intenção era de facto tirar-ta. Se pensares de forma lógica, teria sido muito mais fácil para mim entregar-te aos nossos estimados amigos ali.

O homem parece considerá-lo, como se o pensamento só lhe tivesse ocorrido agora. Erwin observa-o, aprecia apanhar momento de rendição quando o homem relaxa - ainda que nitidamente contrariado - e se levanta, passando por Erwin como que contrariado e atraindo mais da sua atenção.

- Não gosto de café - declara naquela voz grave; tem qualquer coisa que faz a pele de Erwin formigar.

- Talvez chá, então - sugere ele, ultrapassando o homem a caminho da cozinha.

Uma interrupção estranha; os seus pensamentos ainda estão a tentar acompanhar enquanto prepara o chá. Um judeu a fugir da Gestapo. Um judeu que parece estar na posse de um conjunto de habilidades maravilhosas no que toca a escalar, se não também a manejar uma faca. Um judeu lutador, um jovem ainda, a viver em Dresden em 1944. Até hoje Erwin teria assumido que tal coisa fosse impossível.

Regressa à sala tão rápido quanto possível, se não por outra razão então apenas por recear que o homem tenha encontrado outra coisa para agitar ou para lhe atirar acima. Erwin encontra-lo sentado calmamente no sofá; não se move quando Erwin se aproxima para pousar o tabuleiro do chá na mesinha de café.

- Eu tentei matar-te, sabes - diz-lhe o Judeu depois de Erwin servir o chá e se sentar numa das poltronas com a sua chávena e pires.

- Oh, não duvido - responde-lhe honestamente e, encorajado pelas suas anteriores ponderações, acrescenta: - Esse teu instinto de sobrevivência é bastante louvável. Nunca encontrei um assim tão forte em alguém como tu antes.

Erwin não tem a certeza se o disse como um elogio ou se o disse simplesmente para colocar esse pensamento anterior em palavras, mas o homem não parece encontrar nenhum lisonjeio nelas, a julgar pela sua expressão.

- Como conseguiste subir o muro? - pergunta Erwin de seguida, interrogando-se se o fez para mudar o assunto. - Parece-me que seria impossível alguém do teu tamanho escalá-lo.

- Estava uma carroça velha junto a ele. Saltei daí - explica o homem brevemente; ouvir a façanha explicada dessa forma não deixa Erwin menos impressionado.

- Belo salto - diz Erwin; mais um elogio que não planeava dar, e muda de assunto novamente. - Então, quanto tempo passou? Desde a tua última refeição decente, refiro-me.

Há um momento em que o homem parece ainda mais carrancudo do que antes até algo dentro dele desistir.

- O que é que vais comer?

Ah, pois. Eles têm restrições a respeito da comida. Carne de porco, pelo menos. Erwin já ouviu demasiadas histórias e rumores ao longo dos anos para ter a certeza do resto.

- Receio que não vá poder respeitar restrições alimentares tão em cima da hora - responde, lembrando-se da perna de borrego. - Mas tenho sorte por ter suficiente para partilhar, mesmo que a comida em si não seja nada de especial.

- A cavalo dado não se olha o dente - diz o homem, bebendo o chá e sorrindo; gosta do sabor.

- Sim - diz Erwin. - Estes tempos são difíceis. Todos temos de fazer sacrifícios em tempos de guerra.

- Uns mais do que os outros.

Erwin não consegue evita rir um pouco. Uma frase que Holtz iria apreciar, e há algo perturbador nessa noção. É distante. De forma desconfortável.

- Assim é a natureza deste mundo, e a natureza daqueles que o habitam - declara Erwin rapidamente, tentando afastar o pensamento da cabeça enquanto esvazia a sua chávena e se levanta. - Se me permites, tenho trabalho para tratar. Sente-te como se estivesses em casa, tanto quanto consigas.

Afasta-se para a sua escrivaninha, esperando que não ter o homem no seu campo de visão lhe permita regressar ao plano que tinha formulado para o dia. Mantém-se atento por qualquer movimento, olhando para trás quando o silêncio se arrasta e apercebendo-se que o intruso adormeceu no sofá. Erwin deixa-lo estar, recordando-se subitamente do pequeno almoço que não chegou a tomar e preparando-o; come na escrivaninha, continuando a escrever, olhando para trás de vez em quando para se certificar de que o homem não acordou. Dorme até à tarde, provavelmente exausto pela perseguição. Quando Erwin finalmente o acorda, entra em alerta com uma rapidez que releva os anos que viveu com medo.

- Que horas são? - pergunta-lhe o homem ensonado, a voz ainda mais baixa do que antes.

- Passa pouco das cinco - responde Erwin, afastando-se do caminho quando o homem se levanta e espreguiça. - A casa de banho é por ali se quiseres lavar-te.

O seu jantar partilhado é uma experiência estranha, uma guerra desconfortável de empurrões em que o Judeu parece determinado em provocar alguma coisa em Erwin, e em que ele resiste a ser provocado. Toda a situação faz algo desagradável formar-se no estômago de Erwin, algo para assombrar os cantos da sua mente que ele deixou por explorar há muito por razões de conveniência, para aumentar as suas hipóteses de sobrevivência. É inconveniente, ter algo para o recordar de coisas que preferia deixar como estão - pertencendo a uma vida anterior. A outra pessoa.

E ainda assim, Erwin vê-se a dar conselhos ao Judeu, algumas dicas dos seus tempos de treino - parecem ser seguras o suficiente, sendo uma experiência mútua de ambos os Erwins. O homem parece necessitado o suficiente para as aceitar, mas não agradece a Erwin - nem pelos conselhos nem pela perna de borrego. Sendo o suvina que é, apetece-lhe fazer um comentário quanto a isso, mas aquela compaixão fá-lo conter a língua em vez disso.

- Imagino que já seja seguro regressares agora - diz, ansioso por tirar o Judeu do seu apartamento, dando-lhe ainda outro conselho e acrescentando: - Mantém-te nas ruas mais movimentadas. Evita chamar atenção.

- Eu sei o que faço - responde-lhe o homem, parecendo irritado; uma pessoa orgulhosa. Mais uma surpresa.

- Claro que sabes - Erwin concorda com um rápido sorrido, estendendo a mão. - Tudo de bom.

O homem olha para o gesto com a mesma desconfiança antes de apertar a mão de Erwin na sua; é pequena e fria e estranha, como se o toque não pertencesse ali.

- Claro - murmura ele antes de sair do apartamento.

Erwin esperava sentir-se instantaneamente aliviado por ver o Judeu pelas costas, por voltar para o seu trabalho e deixar todos os pensamentos sobre o homem para trás já que parou de perturbar o seu presente. Esperava ser capaz de regressar para aquele vazio entorpecido, não julgou que nada em relação à intrusão fosse colocar os seus pensamentos numa desordem persistente. Uma momentânea perda de controlo, alarmante e desagradável, para perturbar o equilíbrio - para o fazer questionar há quanto tempo não tem de facto um equilíbrio.