Capítulo 1

- Senhor, mil rublos é muito pouco.

Insistia Anatoli após ouvir aquele preço tão baixo que o ourives oferecia pela joia nas mãos do garoto. A situação era desesperadora depois da morte de sua mãe há pouco mais de um mês e do subsequente abandono do pai, que deixou ele e seus dois irmãos mais novos a própria sorte. Faltava comida, faltava agua, faltava tudo.

- Mil rublos é o máximo que posso te dar por este colar velho e arranhado.

- Mas isso não é justo, esta joia foi me dada pela minha mãe, não posso vende-la por tão pouco. Ela vale pelo menos dez mil rublos, é de ouro, é legítimo.

- Isso não é problema meu.

Anatoli tentava conter a raiva, mas as sobrancelhas franzidas entregavam que ele não estava satisfeito por tentarem engana-lo daquela forma, ainda mais com a última relíquia de sua mãe que não fora vendida pelo pai antes de abandona-los. Anatoli a escondeu por todo esse tempo e relutava em vender, mas depois de falhar em conseguir algum trabalho que o ajudaria a sustentar a si e seus irmãos, só lhe restava ter que passar adiante aquele objeto tão querido. É difícil para um recém adolescente franzino conseguir sustento naquela cidade tão isolada na Sibéria e em pleno inverno.

O garoto então percebe que havia um bolo de rublos enrolado atrás do balcão e o fita por alguns segundos. Insultava mentalmente aquele velho asqueroso por ser tão sovina e não dar o que era justo pela joia que oferecia. Aliás, o que parecia é que ele estava se enriquecendo sem esforço com a usura, pagando valores muito injustos pelo que lhe ofereciam e revendendo por valores mais altos, ficando com a diferença que não era dele, mas dos antigos donos.

Antes de transformar a ofensa em palavras, Anatoli sente sua visão embranquecer com uma forte pancada na cabeça e cair de costas já próximo da porta de entrada. Após alguns segundos abre os olhos e vê o ourives com um porrete na mão, pela primeira vez olhando-os nos olhos desde que chegou na loja.

- Ladrãozinho, veio aqui me roubar, não é?

Por trás do ourives se aproximava um homem muito musculoso e alto. Eles conversavam baixo atrás do balcão. Anatoli, já sentado, não conseguia ouvi-los, pois ainda se recuperava do choque, a vista estava se desembaçando. Quando tirou a mão da testa, que doía muito, a via encharcada em sangue. Revoltado, gritou com o velho.

- Que história é essa de ladrão? Por que me atacou?

O gigante, que já havia caminhado até a frente de Anatoli, chutou seu rosto sem responder a pergunta, fazendo com que rolasse o garoto para fora da loja, cuspisse dois dentes com o impacto, e se deitasse de bruços na neve.

- Boris, ele estava de olho no meu dinheiro, este mendigo, este verme. Vamos mostrar como tratamos ladrões aqui na nossa loja.

Boris seguia em direção ao corpo de Anatoli que jazia na neve. Um garoto de catorze anos não teria chance nenhuma contra um homem adulto e forte como ele. Na rua não havia ninguém, e todas as janelas estavam fechadas. Aparentemente nenhuma testemunha que impedisse Boris de matar aquele garoto. E mesmo que houvesse, talvez ninguém se importaria com um mendigo, ainda mais que supostamente estava roubando.

Anatoli é agarrado pelos cabelos e erguido do chão. As mechas loiras encharcadas de sangue e sujas de neve se enrolavam nas mão de Boris. Cambaleando, antes que pudesse falar qualquer coisa foi agarrado pelo pescoço, com muita força, pelos braços do gigante. Anatoli sentia sua visão apagar novamente, era muito difícil respirar e não conseguia gritar por ajuda. Seus dedos pequenos tentavam em vão abrir espaço entre o braço e o pescoço, mas a diferença de força era grande demais.

O rosto de Anatoli ficava vermelho com o sangue retido. Com os segundos passando ele percebeu que se não fizesse algo iria desmaiar, não podia deixar seu corpo desacordado a mercê daqueles homens, seus irmãos dependiam dele. Mas o que podia fazer? Anatoli precisava encontrar força para se livrar daquela esganadura, seria improvável demais que alguém aparecesse e o ajudasse. Se não apareceu ninguém até agora mesmo com toda aquela gritaria.

Mas ele não conseguia, por mais que forçasse seus pequenos dedos no antebraço musculoso de Boris, o máximo que conseguia era arranha-lo com suas unhas. O ar já estava faltando, seus olhos bem arregalados, vermelhos, derramando lagrimas de desespero. Os sentidos estavam começando a sumir.

O queixo de Anatoli se encaixa atrás do braço de Boris. O ar volta e ele consegue finalmente respirar um pouco. Agora sua vista estava voltando ao normal e ele percebe que seus dedos não estavam arranhando o braço de Boris, eles estavam afundando alguns centímetros em sua carne, tocando até seus ossos. Boris emite um grunhido de dor, que segurava até então, e afrouxa ainda mais o braço, cheio de sangue escorrendo e derramando no chão.

De alguma forma Anatoli ganhou forças. E confiança também. Agora agarrando seu agressor pelo braço, Anatoli inclina seu corpo para frente e joga o gigante ao chão, usando suas costas como alavanca. O jovem se espanta não só por ter conseguido aguentar mais de 100 quilos, mas também por ter feito ele ser empurrado na neve por alguns metros com o impulso.

Isso nunca havia acontecido antes ao garoto. Essa força não parecia ser dele, era ilógico. Boris já se levantava, porém Anatoli não teve tempo de pensar o que faria em seguida, ao sentir um forte impacto em suas costas, antecedido de um som de explosão, que o fez cair no chão em frente a Boris. Imediatamente olhou para tras e viu o ourives com uma espingarda na mão. Havia recém atirado, mas olhava Anatoli boquiaberto.

O garoto põe a mão nas costas, onde sentiu o impacto, e lá havia uma grossa camada de gelo, onde a bala estava encravada, ainda quente. Antes que pudesse se perguntar o que acontecia, percebeu o pé de Boris a centímetros de seu rosto, quase pisando-o.

Mas novamente uma parede de gelo surgiu, aparentemente, naquele instante, que aguentou o impacto do chute sem sofrer nenhum dano. Coisas muito estranhas estavam acontecendo com todo aquele gelo e Anatoli não tinham sequer tempo de refletir sobre o assunto com um brutamontes querendo pisoteá-lo e um louco querendo mata-lo a tiros. Tinha que aproveitar aquela situação sobrenatural para fugir.

Anatoli lembrou da espingarda e virou seu rosto para a loja. O ourives estava atônito pois um homem, vestido em uma túnica com capuz, havia lhe tomado a espingarda da mão.

- Já chega.

O ourives estava pronto para responder, mas Boris o repreende enquanto se aproximava da loja, não antes de encarar Anatoli com repulsa e ignorar o homem de túnica.

- Nazar, não faça nada. Não vê que este homem é um...

Terminou dizendo algo inaudível para Nazar, que se acalmou imediatamente e entraram juntos na loja, calados, com as cabeças baixas.

O misterioso homem de túnica caminha até Anatoli e, após abaixar o capuz mostrando seu rosto pálido, olhos castanhos e cabelos longos e ruivos que caiam sobre os ombros, lhe estende a mão.

- Meu nome é Valentin. Você está bem?