Disclaymer: blábláblá.
O ritmo
Sou fera,
Sou bixo,
Sou anjo e sou mulher,
Sou minha irmã, minha filha
Minha mãe e minha menina
Mas sou minha, só minha
E não de quem quiser.
- Renato Russo -
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Quanto arrependimento!
Gostaria imensamente de estar em sua mesa agora, lendo seus livros no silêncio do lar, mas não! Cedeu ao impulso ridículo de acompanhar Hyoga e sua turminha em uma festa muito suspeita da faculdade deles. E bem, tudo o que havia era bebidas, muita gente junta e barulho. Um caos! Estava em pé, com sono e cansado. Há muito perdera de vista seus acompanhantes, não havia mais nada a fazer além de esperar. Camus, vestido com simplicidade elegante, fez uma nota mental de nunca mais sair em festinhas de adolescentes tardios.
No instante seguinte às suas considerações de remorso, a música que antes era alucinada, foi trocada por um som mais suave. O ritmo mudou. As notas o levaram a um movimento involuntário do corpo. Era necessário seguir a batida do som. Estava sozinho, decidiu fechar os olhos e se deixar levar.
As pessoas encostavam, trombavam e dançavam ao seu redor. Nada disso era percebido por ele, devaneando sobre o prazer do momento.
Um braço o enlaçou pela cintura e o puxou pra junto do corpo estranho. Não compreendeu, mas percebeu se tratar de um homem. Pensou em se desvencilhar daquilo e dizer que não era sua praia, sentia pelo engano e etc, porém o abraço o apertou mais, e o estranho lhe afagou os cabelos, acariciando seu rosto com a própria face.
Diversas possibilidades de reação passaram pela sua mente, mas estava petrificado. Não seria capaz de apartá-lo, principalmente agora que a boca encostou-se em seu pescoço, imediatamente abaixo da orelha, continuando seu caminho pela base do rosto cujo destino final era previsível. Não acreditava que algo assim estivesse acontecendo, mas desejava o que viria, e nem sabia quando esse desejo lhe aparecera.
Os lábios, quentes, tocaram suavemente sobre os seus. Um arrepio de prazer lhe passou da ponta dos pés até a raiz dos cabelos que fartos e lisos não saiam das mãos desconhecidas. Tímido, tocou nos ombros do rapaz fazendo-o pensar, ou melhor, fazendo-o ouvir uma vozinha lá no fundo e em milésimos de segundo que músculos grandes podiam ser fofinhos ao toque, uma descoberta deveras reveladora. Porém sua cabeça, muito ocupada com o beijo, rodou meio mundo quando o estranho tão inesperado na chegada foi igualmente súbito na saída, deixando Camus sem se despedir.
Sem dizer o nome.
Sem dizer nada.
Na verdade, nem sabia como ele era!
A atmosfera era tal que permanecera de olhos fechados o tempo todo, e tudo que poderia descrever é: havia uma figura de bicho (que também não saberia dizer qual) dourada em sua blusa.
Caiu em si, e percebeu o que havia acontecido de fato, beijara um cara que passava pela pista de dança. Era um homem, oras! Como pudera? Logo ele que seguia severamente a etiqueta do relacionamento:
Convidar para sair – depois de duas semanas;
Beijo – depois de três encontros;
E, finalamente...
Bem, o resto dependia de vários fatores!
Mas nunca nada antes disso, e se via agora beijando alguém que nem mesmo o nome sabia. O detalhe incômodo de ser um homem agravava sua situação.
O pior, no entanto, fora perceber que havia gostado, e muito, do beijo. E sentira uma ponta de abandono quando o outro se afastou. Será que ele não tinha gostado? Não beijava bem? Ou tinha desagradado em algum outro ponto? Ora essa! Era para estar indignado por ter sido abusado, pois sim! Um abuso! Estava absorto na música, por isso se deixou beijar. Mas nããão! Ficava se lamuriando por ser deixado depois de um beijo tão bom. Não assim tão bom, claro! Afinal o fato de uma boca saber exatamente o que fazer e ser tão macia e agradável e...
Chega!
Não queria mais pensar no beijo, estava tudo confuso demais. Queria ir embora, agora, tudo tinha ficado muito sem cor, todas as suas energias pareciam ter sido sugadas pelo b... ah, encontro de lábios... oras...
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Naquela patética manhã, quando todas as rotinas voltavam aos seus eixos, caminhava pensativamente em direção ao trabalho. Segunda-feira era sempre um dia imbecil, sem graça e cansativo. Adentrou o laboratório desanimado, ao contrário de seu habitual, dado que adorava seu emprego, suas vidrarias e reagentes. Era um químico, e como representante fiel da raça, ligava extrema atenção a minúcias, organização e detalhes ínfimos. Por exemplo, a quantidade exata de pó deveria ser medida em colheres padronizadas para resultar em um café moderadamente forte, moderadamente doce e moderadamente qualquer outra coisa já que a regra geral era moderação.
Divagava languidamente, sentado em sua bancada de granito com soluções coloridas em redor e alguns cromatogramas espalhados, os pensamentos escorriam de sua cabeça. Não se fixavam em nada específico, embora a mente não parasse de trabalhar. Complicava a situação de total concentração na desconcentração, a bagunça em redor não o alcançava. Os olhos miravam atentamente o "g" de sua própria letra miúda no rótulo do balão volumétrico com uma solução cor de rosa onde se lia "Permanganato de potássio 1,0 M". Reparava em seu tamanho e sua proporção em relação às outras letras, ao mesmo tempo em que nem percebia a existência da referida consoante, como se houvesse subcampos de consciência capazes de trabalharem distintamente.
As sobrancelhas contraídas, a boca serrada, continuava seu exame irracional da letra "g", pela expressão descrita, parecia considerar algo profundo. Talvez raciocinando em algum mistério da humanidade, ou quem sabe, fosse a fórmula de um novo fármaco para a cura da AIDS...
Como somos uma presença extra sensorial neste laboratório, temos a liberdade de montar em um dos fios vermelhos do seu cabelo e, invertendo o fluxo da gravidade, subimos em direção à casa de máquinas na mente de Camus para desvendar seus segredos mais íntimos.
"- Foi realmente um absurdo! Eu deveria ter socado a cara dele!" - Notem, temos duas aspas aqui.
'- Hunf! Mas você gostou!' - E aqui só uma.
"- Não gostei nada!"- Logo essa resposta pertence a alguém diferente da linha acima.
'- Então por que não fez coisa alguma?' - E aqui volta a ser a primeira pessoa da linha acima.
"- Mas foi você quem não fez nada!" - Oh! Vejam aqui um claro exemplo de acusação intrapessoal! E não façam essa cara! Vocês também já enfrentaram aquela vozinha na consciência!
" - Ora meu caro, eu queria não fazer nada, por que no fundo, ou seja no seu fundo, já que eu sou seu fundo de consciência, aconteceu justamente o que desejava: um milagre! Só isso pode descrever o fato de um homem gostoso, cheiroso e decidido ter lhe beijado! Vai, admite. Você gostou e quis mais! Tá todo revoltadinho por que o cara deu no pé!'
"- É por isso que você é o fundo, aquilo que fica por baixo escondido! Nunca faz nada certo e direito! Toda a vez que você toma a frente eu me ferro!"
'- Queridinho, o que você mais esconde é, de fato, seu verdadeiro eu! Ou seja, eu sou você como você realmente é, mas você se inventou para ser aceito melhor. Então na verdade eu sou verdadeiro e você a farsa!'
"- Isso é ridículo! Estou discutindo comigo mesmo!"
'- Você deve ser retardado...'
"- Chega! Vou fazer alguma coisa de útil."
'- O quê por exemplo?'
"- Vou consertar o "g"."
'-"g"? De qual 'g' você tá falando?'
"- Ora do... não sei... Ah! Deixa pra lá. Ácido fólico, o desvio padrão entre as áreas do cromatograma não ficou bom, acho melhor reinjetar no cromatógrafo."
'- Ei, não me ignore! Nossa conversa não acabou! Eu tenho que te falar que preciso de mais espaço, sabe? Sempre gostei de dançar acho que a gente pode fazer isso mais vezes. E gosto de sorvete também, mas desde que você começou esse regime idiota eu fiquei na mão... E, quem sabe, voltar a fazer balé? O povo nem sabe o quanto eu, bem nós, somos bons nisso! Lembro dos aplausos, sinto falta sabia?'
"- Preciso fechar essas ordens de produção e calcular o índice de repetições analíticas antes de validar o método. E trocar o "g" o mais rápido possível!"
'- Ei, Ei! EEEI!!! Droga! Não me ouve mais... A única vez que ele me deixou agir foi quando o lorão o agarrou! Por que sim, era loiro! Eu vi! Enquanto ele nem lembra. Ahá, mas deixa comigo, nunca dê as costas para seu incosnciênte! Se eu encontrar o lorão de novo tomo conta do pedaço é a minha brexa, ou corremos o risco do lado esquerdo idiota ser um frustrado enrustido pro resto da vida! Nunca me deixa falar, nunca me deixa dançar nem usar a bata rosa maravilhosa que ganhamos de amigo oculto no fim do ano... Estou preso nesse fundo de mente e olha que eu sou o lado direito!'
A cura da AIDS, infelizmente, terá que esperar um pouco mais. Nada de produtivo, além de um embate de lados, saía da pobre cabeça ruiva e solitária no laboratório.
Camus reuniu os cramatogramas e levantou-se em direção aos equipamentos, antes porém, olhou interrogativamente para o rótulo do frasco em cima da bancada como se houvesse um detalhe fora do lugar. Não conseguiu atinar o que era, não esqueçam de que a conversa que acompanhamos se passou no mais profundo de sua consciência, nem mesmo Camus tinha um conhecimento literal de seus pensamentos. Muito menos de suas brigas pensamentais, daí a sensação sentir que o tempo passou sem fazer nada, a mente trabalhava, mas não declarava ao chefe seus negócios.
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" 'Você nunca encontrará nada melhor do que eu!' Eu sei bem, foi isso que ele disse!" - Observem, as aspas duplas apareceram de novo.
'Até parece! Ele se acha mesmo o máximo! Eu dou o fora e ainda saio por baixo! Mas o Saga sempre foi assim, tão doce e meigo e de repente megalomaniaco e presunçoso. Hunf, mas acabei me dando bem aquela noite...' - E as aspas solitárias aparecem aqui.
"E que graça tem beijar alguém sem amor? Você é uma parte feia de mim, sabia?" - Notamos uma certa inversão, apesar das aspas duplas representarem o lado esquerdo lógico e dominante, aqui ele parece mais bonsinho.
'É a parte que faz as coisas legais também! Ah, corta essa! O cara beijava bem e era bem gostosão, valeu a pena!' - E as aspas solitárias já não parecem tão subjugadas assim... Dir-se-ia até que não é o fundo e sim a superfície de consciência.
"Como assim? Você estava bêbado! Nem se lembra dele direito... não foi nada romântico sabia?"
"E o que você queria? Que eu entregasse flores com chocolates e jurasse amor eterno?"
'Bom... você sabe que sempre sonhei com isso, alguém carinhoso e sensível me dando um beijo em um campo florido num dia de sol...'
"E margaridas em volta... Argh! O que eu tô pensando? isso é ridículo! Ser como você é muito idiota! As pessoas desprezam gente assim, sabia?! Não dá certo então pára de sonhar com essas bobagens!"
'Maaas, eu sou você! E nem todo mundo tem que ser um safado promiscuo pra ser feliz! O rapaz de sábado, por exemplo, você pode ter magoado ele! Nem me lembro direito do cara!'
"Meu querido e eu próprio Milo! E daí? Eu só o beijei por que tava na fossa e por que o moço era um pedaço bem feito de pernil assado que você come feliz mesmo sabendo que engorda como o inferno! E eu me lembro dele direitinho pra sua informação!"
'Seu Bixa!'
"Babaca"
'Safado!'
"Imbecil! Ah pára com isso! Eu sou você, se não percebeu, seu inconsciente!"
'Isso foi baixo! Eu sou eu, e estou no lado certo: o direito!'
"Certo? hunf! Certo é o que está no comando, e quem manda aqui sou EU!
'Eu tenho uma impressão muito profunda de que seus dois lados são meio... idiotas!'
"Voce é um dos lados!"
'Então! Somos Idiotas!'
"...?"
'...!'
"..."
'...'
"Ei!"
'Que?'
"Será que ele pensou em mim? Hein? Será que gostou?"
'Ah! Se eu tivesse um rosto estaria sorrindo cinicamente! Afinal, quando foi que decepcionamos alguém nesse quesito?'
"...!"
'...'
"Ei!"
'Que é?'
"Como vamos fazer para reencontrá-lo?"
'Haaaah! Não me chamam de direito à toa!'
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E termina assim mesmo...
Oi!
Eu sei... mas você também não é tão normal assim...
