Hermione estava tremendo dos pés à cabeça, e sentiu-se feliz por poder atribuir a incerteza dos seus passos ao salto que calçava. Snape parecia... parecia... Snape, ela constatou ao olhar pelo olho-mágico. Fixo, frio e forte. Hermione pensou brevemente que gostaria que ele não estivesse tão seguro de si esperando à porta da única esposa que poderia escolher. Ela checou sua aparência no espelho ao lado da porta, e, insatisfeita, mas conformada, girou a maçaneta.

Snape estava virado de costas para ela e não se voltou imediatamente ao tilintar das chaves. "Por que ele teria pressa? Provavelmente se estivesse no lugar dele também iria querer aproveitar cada fração de segundo de conforto antes de ser atirado em meus braços." Ela, que nunca tivera predisposição para a auto-depreciação, não podia evitá-la, desde que soubera que deveria passar o resto de seus dias com a única pessoa de quem nunca obtivera aprovação. A despeito do quanto tentara.

- Vive em uma casa agradável, de uma vizinhança tranquila, em um bairro residencial. - ele divagou estranhamente perdido em pensamentos - Por que se voluntariou para a guerra? -acrescentou, finalmente voltando-se para ela.

- Entre. Deseja beber algo? Tenho suco de abóbora, vinho e cicuta. Eu o acompanho no que escolher. - disse, dando espaço para que ele entrasse.

Ela tinha construído e ensaiado a sua frase de efeito inúmeras vezes e não a perderia para respondê-lo. Um enorme sorriso brotou de dentro de seu peito ao ver seu rosto pálido se contrair no que parecia uma expressão de surpresa. Mas ela se foi tão rápido quanto surgiu, deixando-a com a certeza que fora apenas sua imaginação e com um sorriso estúpido e sem sentido nos lábios.

- Não desejo beber nada, senhorita. Podemos ir?

Ela perdeu o chão, mas, grifinoriamente deu um passo adiante, sabendo que a partir dali, pisaria em um terreno completamente desconhecido.

- Claro. - respondeu, dando seu melhor para parecer tranquila.

Eles caminharam no mais desconfortável dos silêncios. Ela ouvia o movimento de suas calças fluidas seguido do salto cravado na calçada a cada passo. Ouvia os pedriscos estalarem sob seu peso, ouvia sua respiração, seu coração, mas não o ouvia. Se fosse cega, não saberia da sua presença.

"Se fosse cega, ele me pareceria ainda mais bonito?"

- ... por que? - Ele disse, os sons se arrastando macia e lentamente pela sua boca.

Hermione teve a nítida sensação que chegara em seu corpo naquele exato momento. Não ouvira o que ele estava perguntando. Iria encolher os ombros e oferecer-lhe o silêncio para que ele o preenchesse como achasse que deveria. Ele era um homem misterioso, talvez apreciasse a mesma característica em suas mulheres.

Considerou por alguns segundos. Ele não era um homem misterioso; era seu futuro marido. E a despeito dele parecer todo um grande segredo, ela não faria joguinhos com ele.

- Desculpe. Por que...?

- Por que deixou toda essa paz e segurança que a cercou por, suponho, toda a sua infância, para lançar-se na guerra?

Ela desviou o olhar dele para pensar melhor e mais honestamente. Mergulhada como estava nos seus olhos negros, sentia-se compelida a interpretar a personagem que imaginava que ele desejaria que ela fosse. Olhou para o céu arroxeado do crepúsculo. Respirou diversas vezes tentando não se precipitar na resposta, não permitir que a ansiedade a dominasse.

- Porque jacaré não tem asa. - e sorriu docemente, não orgulhosa, mas feliz com a sua resposta, olhando para ele em busca de uma reação. Algo que demonstrasse ao menos que ele entendera. Nada.

"Tanto faz." Pensou, ainda se agarrando ao bem estar que sentia

- E você? Por que se tornou um espião?

- Lealdade.

Ela pensou na resposta dele. Quantas vezes isso já lhe fora perguntado ela não fazia a menor ideia, mas suspeitava serem inúmeras. Será que existiam pessoas que entenderiam completamente essa resposta? Será que ela, um dia, teria permissão para se sentar entre elas? A rapidez e objetividade dele não deixava dúvidas de que ele não queria falar sobre isso. Teria que viver com isso. Era como um sapato lindo e pequeno demais: desde que não o usasse por muito tempo, valia a impressão que deixava.

Ele caminhava lentamente pelo subúrbios tranquilos. As famílias já se haviam se recolhido; era um tanto tarde apesar da persistente claridade do verão. Passava das nove e meia e a cada quadra menos janelas brilhavam. Ao olhar um jardim particularmente mal iluminado, ela desviou brevemente seu olhar para ele. Era agradavelmente desconfortável caminhar ao seu lado, uma massagem pesada em um corpo dolorido. Ele tinha os braços cruzados atrás das costas, as mãos invisíveis em meio às vestes negras, fazendo-o parecer uma máscara flutuante em meio à escuridão. Ela pensou que estava de volta aos seus três anos e carregava um balão de hélio prateado por uma corda invisível atada firmemente em seu punho para que não flutuasse para longe dela noite a dentro. Isso doeu tanto que ela precisou disfarçar um soluço.

Talvez ele tenha notado, talvez fosse apenas uma coincidência, mas ele diminuiu ainda mais o passo e olhou pra ela tão profundamente que ela precisou recuar um ou dois passos.

- Eu sinto muito, senhor!

- Sente?

- Sinto muito que o senhor tenha sido obrigado a isso. Sinto muito que tenham lhe negado uma escolha. - eles pararam a meio caminho de dois postes de iluminação pública, onde não havia claridade suficiente para ela observar suas feições. Ela torceu para que seu próprio rosto estivesse igualmente encoberto pelas sombras. - Sinto muito por essa lei estúpida ter prendido o senhor a mim. Eu não farei isso, não vou ser cúmplice desse crime. É verdade que não temos escolha perante o ministério, mas o senhor terá fora dele. Se quiser manter um casamento apenas de aparências comigo, tudo bem. Se formos realmente obrigados a ter filhos, como parece que seremos, - ele deu um passo firme na direção dela sussurrando algo que ela não conseguiu ouvir - eu prometo que eles nunca ouvirão nada dos meus lábios. E eu vou amá-los por nós dois se for impossível para o senhor. Caso eu nunca consiga o seu afeto, por mais que tente, o senhor sempre terá a minha benção para fazer o que quiser. - ela sentia as lágrimas descerem-lhe pelo pescoço e molharem a gola de sua blusa, mas não sentiu as mãos dele pousarem firmes e seguras em seus braços. - E se o senhor quiser que eu faça ou deixe de fazer alguma coisa, por favor, me diga, porque nada vai me ferir mais que saber que ainda sou um fardo sobre os seus ombros. - Ela deixou escapar um soluço e no instante seguinte ele a abraçava contra o peito com toda a força que tinha, uma mão grande entre seus cachos, outra logo acima da cintura, muito, muito perto de sufocá-la.

- Ah, Deus! - Foi o que lhe pareceu o som estrangulado que ouviu dele, mas precisando desesperadamente de algum conforto, ela pousou as duas mãos espalmadas em seu peito agarrando com mais força do que gostaria o tecido fino da sua camisa.

Ele a deixou chorar ali, molhando a seda negra até que ela estivesse grudando em sua pele. Não afrouxou os braços em torno dela, não descolou a face dos cabelos castanhos. Não a silenciou, nem disse que ficaria tudo bem... em verdade, não disse mais nada. Apenas afagou sua cabeça dolorida suavemente com as pontas dos dedos. Ela soluçou por um longo tempo, até que lhe restassem apenas garganta e olhos doloridos. Ela mal sentiu ser aparatada.

Pareciam uma estátua materializando-se em algum ponto às margens do Lago Negro, exatamente na mesma posição que estavam no subúrbio tranquilo de Londres. A pressão dos braços dele não mudou, até que a dor se assentou no peito dela e ela sentiu uma brisa fresca rodeá-la. Então abriu como pôde os olhos inchados, e o choro sofrido se apaziguou.

Ele segurou em seu rosto, com sua firmeza típica, sem machucá-la, mas não lhe dando chance alguma de desviar o olhar do seu. Ela se sentiu mais que nua sob os olhos negros e sem o peito quente e os braços que a confortavam, sentiu-se só e com frio. Ele, inesperadamente pousou um beijo em sua testa, os lábios finos, pressionados com força contra a pele fina, mas antes que ela pudesse fechar os olhos e realmente sentir o que aquele gesto lhe causava, ele se afastou, segurando novamente em ambos os lados do seu rosto e dardejando seus olhos penetrantes nos dela, a expressão no rosto pálido dizendo tanto que ela não conseguia ler.

- Des...culpe. - ela murmurou com uma voz enrouquecida quando ele deixou que ela pousasse novamente o rosto em seu peito. - Eu molhei você todo. - acrescentou com um sorriso arrependido.

- Criaturinha boba. - foram suas únicas palavras por um longo momento. Então ele continuou - Você seria mesmo capaz de tudo isso?

- Claro que seria. - ela se afastou olhando-o voluntariamente dessa vez. - Eu farei tudo que estiver ao meu alcance.

- Criaturinha boba - ele repetiu.

Ela não sabia o que pensar.

- Pare por um instante de se torturar, sim? - ele secou o rosto dela com os polegares longos e ossudos. - Você acha mesmo que se o Ministério da Magia quisesse apenas repovoar o mundo mágico ele se daria o trabalho de dizer quem deve se unir a quem? E depois de vinte anos como espião duplo, você realmente acha que eu temo Azkaban, ou mesmo a morte?

- Mas então... O que o Ministério quer?

- Pense um pouco, Hermione. Pense em outros casais que o Ministério formou... Draco e Luna, Lucius e Tonks, Percy e Pansy,...

- Arthur e Florence Goyle... Lavender e Crab... Oh, Deus! Não!

- Eu não quero que você diga absolutamente nada sobre isso, Hermione, nunca mais, para ninguém, entendeu? Nem mesmo para mim, nem mesmo pense nisso. Nunca mais. Você entendeu bem? Esse lugar está temporariamente protegido e é por isso que podemos conversar sobre isso, mas ao sairmos daqui nem uma palavra nunca mais será dita. Entendeu, Hermione? - a voz dele estava carregada de ansiedade contida.

Ela concordou.

- Eu preciso que você me prometa, Hermione, em alto e bom som.

- Eu prometo nunca mais falar sobre esse assunto com ninguém. - os olhos dele a hipnotizavam de uma forma que ela se quer cogitava desviar o olhar.

- Tudo bem, então agora ouça:

Ela prestou atenção em tudo, enterrando cada palavra fundo em sua mente, de forma que nunca mais desaparecessem, mas ao mesmo tempo nunca mais fossem vistas por ninguém além dela. Tinha que dar certo. Era a única forma de libertar o balão prateado do seu punho.