Segunda temporada de Ampulheta. Quem quiser ler a minha outra fic para um melhor entendimento, fique à vontade. Se não, tudo bem, os segredos serão revelados aos poucos.
Essa fic é uma slowburn - as coisas acontecem devagar -, então tenham paciência, por favor ^^
Teremos personagens originais e os primeiros capítulos serão focados neles. Mais uma vez, peço paciência. Os nossos amigos de sempre aparecerão com o tempo.
- Aya! Onde você está?
Uma menina, franzina demais para a idade de oito anos, encolheu-se ainda mais entre os pesados casacos pendurados em cabides no enorme closet do quarto de seus pais - sabia que o último lugar no qual sua mãe a procuraria seria ali. Embora também soubesse que era uma filha ruim por fazer sua preciosa mãe preocupar-se. No fim, seus colegas de classe tinham razão: ela era uma criança má, o motivo do sofrimento de toda a Nação.
Fungou em uma tentativa de prender o choro, mas não conseguiu evitar que as lágrimas continuassem escorrendo por seu pálido rosto; com elas veio um soluço, mais alto do que deveria. A dor presente em tal barulho ecoou pelo quarto, alcançando os ouvidos maternos - mais atentos do que de costume - que estavam prestes a sair do cômodo.
Quando ouviu o som característico dos saltos batendo contra o piso do Palácio Touguu, a criança soube que havia sido descoberta.
- Aya? - Uma voz melodiosa soou por detrás das portas do closet. - Meu bem, onde você está? Fale com a okaa-sama.
Sentiu um novo aperto no peito por saber ser a causadora do sofrimento de uma mulher tão adorável. Soluçou mais uma vez. Sua dor e pesar ameaçavam partir seu pequeno corpo em dois; os tremores haviam retornado, trazendo a dor de cabeça consigo, e tudo isso só fazia sua crise de choro aumentar. Soluçava livremente agora, não podia mais controlar.
Não demorou para que sua mãe abrisse a porta de correr do closet e a retirasse de lá, apertando-a em um abraço protetor.
- Aya! - exclamou, ajoelhando-se no chão com a filha no colo. - O que fazia ali dentro?! Céus! Você está bem?
Tudo o que recebeu em resposta foram lágrimas sobre seu ombro esquerdo, molhando seu vestido de seda.
- Aya...
Mikasa Yamato, a consorte do Príncipe Herdeiro Nobuoko Yamato, futuro Imperador do Japão, não fazia ideia do que se passava com sua única filha. Ainda que a princesa Aya viesse sofrendo com uma saúde debilitada desde o nascimento, isso nunca impediu-a de correr pelos corredores do palácio, sempre alegre e cheia de luz própria. Portanto, vê-la amuada pelos cantos, queixando-se de dores inexistentes apenas para não sair do quarto, era desesperador para seu coração de mãe. Tentou ser compreensiva, dar um tempo para que ela voltasse ao seu normal, contudo, não surtiu efeito - Aya continuou isolando-se cada vez mais. Por isso, foi com o coração pesado que Mikasa decidiu acatar o conselho de sua sogra, a Imperatriz Mei, e impor sua autoridade - não somente como mãe, mas como Princesa Herdeira daquele país - sobre sua filha. Envergonhava-se de dizer que forçou a criança a voltar com suas atividades diárias, ignorando todos os apelos dela. E agora, aquele era o resultado...
Quando percebeu, estava chorando junto a filha. Não suportava vê-la ferida daquela forma, mas simplesmente não sabia o que fazer para ajudá-la.
- Aya... Diga-me o que preciso fazer... Farei qualquer coisa por você - sussurrou. - Perdoe-me por não ser uma boa mãe. Por não ser a okaa-sama que você merece.
Ao ouvir aquilo, Aya sentiu-se pior do que nunca. Teria ela feito a mulher pensar que não era uma boa mãe? Realmente, ela era uma criança odiosa.
- N-não é i-isso, okaa-sama! - assegurou entre soluços. - Okaa-sama é a me... Melhor mãe do mundo!
- De verdade? - questionou com um sorriso de canto. Ao receber uma afirmação veemente, perguntou: - Então por que tem agido assim? Por favor seja sincera comigo! - adicionou rapidamente ao notar a hesitação no olhar da filha. - Por favor, conte-me o que aconteceu.
A menina fechou os olhos fortemente, desfrutando do singelo afago que recebia nos cabelos por parte de sua mãe. Em sua mente infantil, debatia sobre contar ou não a verdade para ela. No fim, optou por falar, pois assim também poderia descobrir se o que tinham lhe dito era verdade. Ainda de olhos fechados, perguntou em um sussurro:
- É verdade que eu fui feita em um laboratório?
Pôde sentir a mulher mais velha ficar imediatamente tensa. Só com essa reação já era possível dizer que tinha acertado em cheio. De repente, Aya sentiu-se menor que uma formiga.
Com a voz embargada e com os olhos ainda fechados, disse:
- A senhora tinha d-dito que a cegonha q-que me trouxe...
Mikasa não pôde deixar de sorrir com aquele comentário, mesmo que o assunto em questão fosse extremamente delicado. Não pensou que precisaria ter aquela conversa com a filha tão cedo. Estava esperando a oportunidade certa, talvez quando ela alcançasse a adolescência... Suspirou. Não havia outro jeito. Mas antes...
- Quem disse isso para você? - Foi a vez da menina ficar tensa. - Aya, olhe para mim. - Gentilmente, acariciou o rosto da filha, até que a criança cedesse e abrisse os olhos, pretos como ônix. - Quem foi?
- Uns garotos... Da escola - sussurrou em resposta. - Eles também disseram que... Que a senhora e o otou-sama fizeram isso porque... Porque meu irmãozinho m-morreu.
Se antes tinha ficado surpresa, agora estava horrorizada. E furiosa. Como se atreveram a contar tais coisas para sua filha? Para a Princesa daquele país? Crianças ou não, teriam de pagar por aquele afronte. Respirou fundo a fim de recuperar seu controle emocional - aquele era um tema doloroso demais para a própria mulher. Mais calma, afastou a menina de seu colo para que ambas sentassem no chão, uma de frente para a outra.
- Escute, meu bem, preciso que preste muita atenção no que vou dizer agora, certo?
- Sim...
- Primeiro de tudo, você precisa saber que é minha filha e nada, jamais, irá mudar isso. Se foi a cegonha que te trouxe ou não, isso não altera o que você significa para mim e para seu otou-sama. Nosso amor por você é tudo o que deveria importar.
- Então é verdade... - murmurou.
- Sim... Mas como eu disse, isso não muda nada! Você continua sendo nossa filha e nós, seus pais.
- E sobre meu irmãozinho? Também é verdade?
A princesa fez essas perguntas rezando para que sua mãe respondesse "não", mas em seu interior sabia que receberia um "sim" antes mesmo dela acenar positivamente.
- Sim, é verdade - sussurrou a mulher, fazendo o possível para esconder a dor que sentia ao dizer tais palavras.
Sim, antes da princesa nascer, Mikasa esteve grávida de outra criança; um menino, aquele que seria o sucessor de seu marido ao Trono do Crisântemo. A alegria do país ao receber a notícia só não foi maior do que o seu próprio alívio por finalmente ter sido capaz de oferecer um herdeiro à família imperial. Infelizmente, os bons sentimentos foram varridos para longe quando, em um exame de rotina, descobriu-se que o bebê em seu ventre não mais vivia.
Ainda lembrava-se da tristeza que sentiu naquela tarde ao ser informada daquilo. Sendo honesta, ainda não havia superado totalmente; apenas aprendeu a conviver com a dor. E sua filha Aya foi de extrema importância para que conseguisse alcançar este feito. Dois anos após a perda daquele que seria seu primogênito, Mikasa engravidou novamente, dessa vez pelo método de inseminação artificial - o qual foi convencida a fazer não por de fato querer engravidar, mas porque precisava. No fim, apesar de sua descrença inicial, quando descobriu-se grávida novamente, uma parte sua voltou à vida, e desde então vivia por essa pequena parte, por sua amada criança - Aya.
De alguma forma, a menina deve ter notado o sofrimento silencioso que acometeu sua progenitora, pois aproximou-se dela e, apoiando suas pequenas mãos nas bochechas da mãe, depositou um beijo na testa dela.
- Tudo bem - disse suavemente. - Eu entendo.
- Entende? - Mikasa perguntou, surpresa pela atitude da filha. - De verdade?
- Bem - sorriu, sem graça -, não muito. Mas eu entendo que preciso ser mais velha para entender! - completou, resignada.
A Princesa Herdeira riu, não pôde evitar.
- Venha cá. - Puxou-a para um abraço apertado, o qual a criança retribuiu com a mesma intensidade. - Agora, me diga: era por isso que não queria ir à escola? Por causa desses comentários? - Ao receber um aceno afirmativo, perguntou: - O que mais eles disseram?
Aya hesitou por um instante, mas respondeu:
- Disseram que eu faço toda a Nação sofrer e que por isso me odeiam. Disseram que eu sou a criatura mais terrível e maldosa que já existiu no mundo...
Mikasa teve de reprimir um palavrão. Malditas crianças! Assim que possível iria entrar em contato com a escola e exigir que eles tomassem providências. Aquele tipo de atitude era inadmissível em uma instituição tão renomada, principalmente contra a filha daquele país!
Respirando fundo a fim de acalmar seu temperamento, olhou para filha - ela tinha os olhos marejados. Odiando vê-la assim, optou por mudar de assunto. Nada de bom viria em continuar pressionando-a.
- Fique sabendo, Aya, que eles mentiram.
- Sério? - questionou, esperançosa.
A mulher acenou positivamente, sorrindo.
- Sim, falo sério. Você não é terrível, e ainda que fosse, não seria nem de longe a mais terrível das criaturas - respondeu, séria. - Sei disso porque conheço a história de uma criatura, a mais antiga, desprezível e malvada criatura que já andou por este mundo, e ela não se parece em nada com você.
- A mais antiga, desprezível e malvada criatura?! - A voz chocada de Aya ecoou pelo cômodo, causando divertimento à sua mãe. - Quem?!
- Hum - fez um expressão de dúvida, aumentando a curiosidade da menina -, acredito que o termo correto seja Youkai, muito embora alguns o chamem de... O Genocida.
Enquanto seguia pelos corredores enganosamente vazios do Edifício da Dieta Nacional, Aya recordava-se da lenda contada por sua falecida mãe. Um conto de terror sobre um terrível demônio que, ao se apaixonar por uma humana, revelou-se um ser nobre e bondoso, mas que ao perdê-la, saiu de controle, exterminando toda sua raça. O genocida, era como o chamavam.
Sorriu ao lembrar-se de como sua versão mais jovem ficou encantada com a possibilidade de tais criaturas realmente existirem. No Halloween daquele ano, pediu para a mãe deixá-la fantasiar-se de youkai - mesmo que ninguém de sua família ou escola comemorassem o feriado. Não ficou surpresa pela mulher ter permitido; naquela época, sua mãe vinha fazendo todas as suas vontades. Infelizmente, foi só mais tarde que veio descobrir o porquê: ela estava morrendo e aquela era sua forma de se despedir.
Exalou pesadamente, não era hora de pensar naquilo. Balançando a cabeça para espantar as memórias, encarou a enorme porta à sua frente. Do lado de fora nada podia ser ouvido, mas tinha certeza que haviam pessoas ali dentro. Muitas pessoas. Reunindo toda coragem que possuía em seu corpo, empurrou as portas e adentrou o local.
O silêncio foi imediato.
Sentiu-se corar sob o escrutínio de todos aqueles olhares, mas não permitiu-se fraquejar. Como imaginou, haviam centenas de pessoas ali. Quão irônico era que nem uma das 717 cadeiras do Parlamento estivesse vazia, sendo que quase metade da população japonesa havia sido dizimada? Qual era a probabilidade de que todos aqueles políticos estivessem vivos quando o próprio Imperador estava morto? Pensar nisso fez o rubor em suas bochechas aumentar, só que dessa vez era de raiva.
Endireitando sua postura, deu dois passos para dentro, fechando a porta atrás de si, e então, introduziu a si mesma:
- Sua Alteza Imperial, Aya, a Princesa Toshi.
O burburinho que se seguiu àquilo foi interrompido por uma voz grave, vinda daquele que presidia a sessão.
- Silêncio! - ordenou o Primeiro-Ministro, Haru Shinzou, e todos o obedeceram. Após o recinto ficar novamente silencioso, ele virou-se para ela, dizendo: - Princesa Aya, o que Vossa Alteza faz aqui?
Ela olhou firmemente para o homem de meia idade, contudo, não deixou seu desprezo por ele tornar-se evidente. Ainda não era hora.
- Oras, Shinzou-sama, como eu poderia faltar em tão excepcional reunião? Não é sempre que a Câmara dos Representantes e a Câmara dos Conselheiros se reúnem, assim como não é sempre, e graças a Buda-sama por isso, que uma guerra a nível mundial acontece. Como eu poderia deixar de comparecer? - perguntou em falsa inocência. - Quero ajudar nosso amado país a sair desta crise, mas só posso fazer isso mantendo-me informada acerca dos assuntos internos.
- Entendo... Mas Vossa Alteza também deve entender que na política há certos protocolos...
- Estamos em guerra, Shinzou-sama - retrucou com seriedade. - E estamos perdendo. Não é hora de nos atermos à protocolos.
- Pelo contrário! É justamente em horas como es...
- É o suficiente - uma voz amável ecoou pelo local.
- Vossa Majestade. - Aya fez um meneio respeitoso para o novo Imperador. - Perdoe-me a intromissão. Solicito sua permissão para acompanhar a sessão.
- Não precisa se desculpar, Aya-nee-san. Sou eu quem lhe deve desculpas. Foi rude de minha parte não tê-la chamado para esta reunião, ainda que eu mesmo só tenha tomado conhecimento dela hoje pela manhã.
- Imagine, Vossa Majestade.
- Desculpe interromper, Vossa Majestade, mas peço que se lembre do caráter de urgência dessa reunião - disse Shinzou, contrariado.
- A-ah.. Certo. - O jovem rapaz pigarreou para consertar a voz, antes de falar: - Vamos continuar, então. Por gentileza, alguém ceda seu lugar para a princesa.
Imediatamente, um parlamentar ofereceu seu lugar - uma cadeira na primeira fila da câmara - para ela. Aya caminhou até lá e sentou-se, agradecendo ao homem com um sorriso gentil.
Observou enquanto o Primeiro-Ministro subia ao púlpito e reiniciava a sessão. Quanto mais olhava para aqueles olhos cerrados e cabelos perfeitamente alinhados, mais Aya o odiava.
Maldito!
Haru Shinzou estava no controle do país há 10 anos. Uma década, foi tudo o que ele precisou para afundar o Japão até o pescoço em desgraças.
Certo, estava sendo injusta. A culpa não era totalmente dele. Foram vários os fatores que transformaram o mundo no que ele era hoje: um amontoado de caos e sofrimento.
Tudo começou no ano de 2019, nove anos atrás. Depois de vários insultos públicos, ameaças e cúpulas canceladas, a Coreia do Norte e os Estados Unidos da América finalmente haviam se entendido. A paz entre ambos os países fora selada com um acordo comercial milionário, o qual rendeu capas de revistas por uma semana inteira. Todos pensaram que finalmente o comportamento infantil dos dois representantes de cada potência tinha cessado; todos se enganaram.
Na metade do ano em questão, rumores de que os Presidentes dos EUA e da Rússia andavam tendo encontros fora da agenda oficial, se espalharam como fogo por todo o globo. Tais rumores geraram estranheza entre os demais países, mas um em especial sentiu-se particularmente atacado. Antes mesmo de tais notícias serem confirmadas o Ditador da Coreia do Norte veio a público para anunciar o rompimento de suas relações com os EUA. Como era de se esperar, tal atitude gerou imediata retaliação, também em público.
Ainda hoje Aya se perguntava como diabos ninguém - nem uma alma sequer - foi capaz de avisar àquele maldito presidente de que fazer comentários depreciativos sobre a aparência e sexualidade de um Chefe de Estado em rede nacional não era uma boa ideia. Que, na verdade, era uma péssima ideia. Estúpida, terrível, suicida...
Até hoje podia se lembrar do tremor que abalou toda a estrutura do Palácio Imperial - lugar onde seus avós residiram por anos e que, naquela época, pertencia ao seu pai - quando a tragédia aconteceu. Lembrava-se de ter rezado para Deus proteger os cidadãos daquele terremoto que sacudiu o país por bons dez minutos. Ainda lembrava-se de como se sentiu ao sair de casa após tudo acabar e perceber que Ele não havia atendido suas preces. No Japão, houve centenas de mortes naquele dia, e ainda assim foram ínfimas se comparado às que ocorreram do outro lado do Pacífico.
Na manhã do dia 24 de julho de 2019, às 10:22 am, a terra do sol nascente tremeu por vários minutos, porém, diferente do que o povo nipônico deduziu em um primeiro momento, não devido a um terremoto. O que o país sentiu naquela manhã, foi o eco da destruição que se abateu sobre a maior potência do mundo. Mais tarde eles ficariam sabendo que dois mísseis haviam sido lançados pela Coreia do Norte durante aquela madrugada; seu destino: os Estados Unidos da América.
Aya engoliu em seco. Mesmo depois de todos esses anos, ainda era difícil acreditar que uma parte do mundo simplesmente não existia mais. Apesar de ter sido a própria estupidez do presidente em atividade na época que os levou para aquele triste fim, não conseguia não sentir-se infeliz ao pensar em todos os civis que perderam suas vidas por nada. E agora, o mesmo destino ameaçava recair sobre o Japão...
"Só por cima do meu cadáver!"
Ela não ficaria sentada, assistindo, enquanto aquela corja de políticos entregava o futuro do seu amado país nas mãos daqueles lunáticos. Iria lutar - pelo seu povo e por si mesma -, mesmo que isso significasse vender sua própria alma ao diabo.
Assim, quando o Primeiro-Ministro terminou seu discurso - um bando de baboseiras sobre como a rendição do Japão era a única solução para estancar a hemorragia que acometia o país -, ela levantou-se de seu lugar, atraindo os olhares para si, e disse:
- Eu realmente espero, Vossa Majestade, que o senhor não esteja sequer cogitando aceitar tal tolice.
Um burburinho chocado ecoou pelo local; pôde distinguir alguns insultos em meio a ele.
- Perdoe-me, Vossa Alteza, temo tê-la ouvido mal, o que acaba de dizer? - perguntou Shinzou.
- Todos ouviram-me muito bem, mas irei repetir: querer que o Japão assine um tratado de rendição depois de tudo o que já perdemos é tolice. Rezo para que Sua Majestade tenha o discernimento para perceber isso.
- Como se atreve?! - Uma voz indignada chegou aos seus ouvidos. - Não vê que não há alternativas?! Nosso povo sangra! Shinzou-sama tem toda razão no que diz! - O parlamentar finalizou, recebendo o apoio de quase toda a câmara.
- Eu me pergunto quantos de vocês também concordaram com ele quando o Primeiro-Ministro sugeriu que seria uma boa ideia entrarmos neste conflito - respondeu friamente.
Diante daquilo, muitos se calaram, mas não o homem que ela tinha ofendido. Não, Haru Shinzou nunca se calava.
- Com todo o respeito, Vossa Alteza, penso que a senhorita deveria ser mais cuidadosa com suas palavras. Desculpe a franqueza, mas uma mulher que não entende de guerra não deveria opinar.
Aya sorriu pelo óbvio afronte e então retrucou:
- Com todo o respeito, Primeiro-Ministro, penso que um Chefe de Estado que toma decisões tão tolas quanto entrar em uma guerra que não pode vencer, não deveria ocupar tal cargo.
- Como ousa?!
Ignorando a exclamação furiosa do Primeiro-Ministro, virou-se para o Imperador, que parecia tão pequeno e inseguro em seu trono, e disse as palavras que vinha ensaiando desde que descobriu sobre aquela reunião secreta:
- Vossa Majestade, o senhor deve conhecer todas suas possibilidades antes de assinar o tratado de rendição. Há um lugar...
- Não diga tolices! - interrompeu Shinzou, mas Aya não deu ouvidos a ele.
- Há um lugar, uma pessoa que pode ajudar. Uma pessoa extremamente poderosa e...
- Fantasia!
Indignada pela nova interrupção do Primeiro-Ministro, olhou-o furiosa. Estava prestes a mandar sua boa educação pelos ares e xingá-lo, quando a voz do Imperador fez-se ouvir.
- Deixe que ela fale! - ordenou ele. - Primeiro-Ministro, peço que o senhor não se esqueça de com quem está a falar. É a Princesa Toshi, a única filha de meu antecessor, o Imperador Toshi, que está em sua frente agora.
- H-hai - gaguejou o homem. - Sinto muito, Vossa Majestade. - Curvou-se para o Imperador e então para a princesa. - Peço que perdoe minha ousadia, Vossa Alteza.
Percebendo que Aya não aceitaria as desculpas do homem, o Imperador a questionou:
- E então, Aya-nee-san, o que tem a dizer?
- Há um lugar onde talvez possamos conseguir ajuda.
- Que lugar? - perguntou com uma esperança contida.
Olhando fixamente para aqueles olhos castanhos brilhantes que aparentavam, enganosamente, nunca terem presenciado sofrimento algum, Aya respondeu:
- Edras.
Em sua voz não havia nenhuma hesitação.
Dias depois
O que estavam fazendo era loucura, Aya sabia muito bem disso. Acreditar que a criatura citada em uma lenda antiga realmente existia era uma coisa, agora, depositar o futuro de todo um país nessa possibilidade era simplesmente loucura! Sabia de tudo isso e podia apostar que o Imperador também. Mas, ainda assim, mesmo com todos os alertas dos políticos presentes naquela reunião, ali estava ele: desbravando uma floresta assustadora, buscando alguém que nunca sequer tinha ouvido falar a respeito dez dias antes.
Suspirou. Não sabia até que ponto deveria ser grata pela fé que o Imperador depositava em sua pessoa. Se bem que não dava para ter certeza sobre o quanto daquilo era fé e o quanto era desespero...
Olhando para as costas do rapaz que seguia alguns passos à sua frente, em meio ao mato e terra molhada, analisou-o profundamente.
Tudo nele, desde seus olhos castanhos escuros brilhantes e cabelo mantido em um corte moderno, até seus traços suaves moldados em uma expressão sempre gentil e sua postura relaxada, exalava juventude. Jovem. Ele era jovem demais. Mas sem surpresas até aí já que Sua Majestade Imperial, Hitoshi - outrora, Príncipe Akishino - tinha apenas dezenove anos de idade. Não que a pouca idade tenha sido levada em conta por aqueles que o colocaram no trono durante o ano anterior, quando ele tinha apenas dezoito anos. Para os políticos tradicionalistas do Japão, era preferível que um adolescente ascendesse ao Trono do Crisântemo do que ver uma mulher ocupar tal lugar. E daí que a mulher em questão era a filha única do falecido Imperador, o que fazia dela a herdeira legítima do trono?
Sorriu amargamente, desviando os olhos dele. Seria mais fácil se ele fosse um ser tão desprezível quanto Haru Shinzou. Nesse caso, poderia odiá-lo livremente; poderia amaldiçoá-lo por roubar seu lugar de direito, ainda que ele não tivesse culpa alguma do fato dela ter nascido com um belo par de seios. Mas não, Aya não podia odiá-lo. Não quando Hitoshi, seu primo, era uma das pessoas mais gentis que já conheceu; não quando ele era sua única família.
E pensar que a Dinastia Yamato resumia-se agora a somente duas pessoas... Seus antepassados deveriam estar se revirando em suas covas, tamanha vergonha a atual família imperial havia trazido para o sobrenome Yamato.
Suspirou novamente, só para perceber que até suspirar estava tornando-se cansativo.
- Aya-nee-san, você está bem?
A princesa assustou-se ao ouvir a voz do primo chamá-la. Ele, assim como o resto da comitiva imperial - um nome pomposo demais para um grupo de apenas nove pessoas -, tinha parado de caminhar e agora a olhava à espera de uma resposta.
- A-ah, não. Eu estou bem, Vossa Majestade, não precisa se preocupar. - Sorriu tranquilizadora. - Mais importante, o senhor está bem?
- Estou sim. Na verdade, isso é um tanto divertido, não acham? - perguntou. Ainda que estivesse tentando ocultar sua animação, ela era palpável.
Infelizmente, ninguém compartilhava de seu entusiasmo.
- Divertido? - perguntou o secretário/segurança pessoal do Imperador, olhando-o desacreditado.
Pela primeira vez desde que conhecia Satoru Matsumoto, Aya o via aparentar a idade que tinha - 43 anos. O homem demonstrava o cansaço extremo de quem viajava por dias, sem quase nenhuma parada para descanso: olhos fundos, olheiras escuras e um tom ceroso na pele. Não era preciso olhar ao redor, ou para si mesma, para saber que o restante deles não estava muito diferente.
Depois daquela reunião na qual expôs suas teorias - sem dizer que eram somente teorias, é claro - para o parlamento, houve uma rápida, porém furiosa, discussão a respeito do assunto. Alguns riram dela, outros a chamaram de louca, e quase todos concordaram em fingir que tal disparate nunca havia sido pronunciado. Os poucos que não insinuaram que Aya deveria ser internada em um hospício, ajudavam a completar o grupo: seis políticos, todos membros da Câmara dos Conselheiros, e todos relativamente jovens - pelo menos jovens o suficiente para se deixarem levar por "fantasias de uma criança", como o próprio Primeiro-Ministro havia dito.
Ah, a reação de Haru Shinzou conforme ia contando aquela história de terror foi impagável. O homem ficou vermelho como um tomate, parecendo que iria explodir. Todavia, conseguiu controlar sua raiva enquanto ela falava. Foi só quando Aya terminou de falar que ele esboçou reação: gargalhou divertidamente, fazendo pouco caso de sua ideia, humilhando-a sem precisar ofendê-la verbalmente. Após sua crise de riso, pediu a todos os presentes que ignorassem o que ele chamou de "uma atitude bem-intencionada, embora tola, advinda do desespero de ajudar seu amado país". Tal atitude recebeu ovação do público. Como dito anteriormente, apenas alguns acreditaram em suas palavras, ou melhor, se mostraram dispostos a tentar ajudá-la mesmo não acreditando nela.
O desespero fazia coisas engraçadas com o ser humano... A maior prova disso era que estavam ali agora, no extremo oeste do país, numa área que, tecnicamente, não deveria existir nada além de uma paisagem morta, pois há muito fora abandonada devido a radiação. Por alguma razão que nem mesmo os livros de história ou geografia explicavam, aquela parte do Japão foi completamente destruída durante o Período Sengoku, tornando-se inabitável. Por mais que tentasse descobrir o porquê, nunca conseguiu; tudo o que seus professores diziam é que aquela área estava contaminada e que vida alguma poderia florescer ali.
Sim, claro. Gostaria de poder mostrar à senhorita Momo aquela paisagem. As árvores frondosas com folhas nas mais diversas cores, o solo ainda molhado pela chuva daquela madrugada... Nada daquilo parecia "árido", "infértil" ou "contaminado". Na verdade, uma coisa que havia notado desde que o guia os deixara ali - o homem que os trouxera de carro até o local, recusou-se taxativamente a cruzar as enormes cercas de proteção com placas escritas "perigo" e "não se aproxime" por todos os lados, apenas dando-lhes uma dica de por onde poderiam entrar - era que todo aquele lugar transbordava vida. E era mais do que vida silvestre - pássaros cantando, ruídos de animais e coisas assim. Não, era bem mais que isso. Assim que chegaram no local, foi como se uma aura especial os abraçasse, dando as boas-vindas aos novos visitantes. E essa aura só fazia aumentar conforme adentravam a floresta, aproximando-se de seu objetivo: o Castelo de Edras. Bem, pelo menos era o que Aya rezava para que eles encontrassem. E não só o castelo, mas seu dono também.
A princesa foi obrigada a disfarçar uma risada quando seu primo respondeu a pergunta do secretário com um ingênuo:
- Sim, até parece com uma espécie de excursão escolar!
- Excursão escolar?! - o homem soou ofendido. - Francamente, Vossa Majestade, o senhor tem pensamentos mirabolantes certas vezes! Mas esse deve ser um traço de família, imagino... - completou, olhando Aya com desgosto.
Apesar de não ser um parlamentar - e por isso não ter estado na reunião -, Satoru estava a par de tudo o que foi dito nela e tinha sido um dos que não acreditaram em uma só palavra do que ela falou. Se estava ali naquele momento era unicamente por causa de Hitoshi, a quem servia desde os três anos de idade.
Aya sorriu internamente, grata. Quando o Imperador não intercedeu a seu favor durante a sessão, tinha ficado chateada. Mas compreendeu tudo quando ele a procurou, horas mais tarde, em sua residência. Ele tinha dito que de nada adiantaria argumentar com o Primeiro-Ministro, que era melhor agirem sozinhos, assim, caso a missão fosse um fracasso, não precisariam lidar com ele e, caso fosse um sucesso... Bem, digamos que Haru Shinzou já estava há tempo demais no poder.
Sendo assim, eles agiram na surdina. Montaram uma pequena equipe - Aya, Hitoshi, os seis parlamentares que se ofereceram, Satoru e um guia contratado - e, após um dia de espera até que o Primeiro-Ministro e sua corja esquecessem o assunto e voltassem para seus afazeres, rumaram para Edras. Devido a situação precária e perigosa que o país se encontrava, a viagem tinha sido mais longa do que o usual e com toda certeza mais cansativa também. Viajaram por cinco dias até chegaram na área proibida e mais quatro pela imensa floresta até alcançarem aquele ponto. Após tanto andar e nada encontrar, o medo de que tivessem acabado se perdendo mesmo com todos os mapas velhos que Aya carregava consigo começou a crescer entre eles. Talvez a grosseria de Satoru se devesse à isso, entretanto, não era justificativa para o modo como ele vinha lhe tratando desde que deixaram Tóquio.
Estava prestes a repreendê-lo por sua atitude quando algo inesperado aconteceu: a aura, antes tão agradável, que os cercava mudou. Tornou-se pesada, densa... O sentimento de desconforto aumentou rapidamente e logo todos estavam no chão, sufocando, mãos fantasmagóricas impedindo que o ar entrasse por suas vias respiratórias.
Somente alguns segundos foram necessários para que sua visão turvasse. Iria morrer, tinha certeza disso. No entanto, antes de perder completamente os sentidos Aya poderia jurar que viu algo... algo muito semelhante às feições de um monstro.
- Aya! Por que está chorando? - Mikasa assustou-se ao ver a filha voltar a chorar copiosamente. Pensou que tinha conseguido distraí-la do outro assunto.
- É q-que.. É que é tão triste! - exclamou. - T-todos traíram o senhor youkai! Pobrezinho!
Ah, então era isso. De fato, aquela história era bem triste. Talvez não devesse ter contado algo tão perturbador para a filha, mesmo tendo omitido os detalhes mais assustadores.
Sorrindo compreensiva para a menina, disse:
- Não se preocupe, Aya. É só um conto de terror, uma lenda.
- L-lenda? - Fungou em uma tentativa de parar o choro. - Quer dizer que os youkais não existem?
- Mas é claro que não! - Riu levemente. - Se bem que muitos acreditam que eles tenham existido um dia...
- Sério? Mas então no que a senhora acredita, okaa-sama?
- Eu? Hum... Eu acredito que talvez eles tenham existido, mas que, assim como os dinossauros, algo aconteceu para levá-los à extinção.
- O senhor genocida! - a criança gritou, animada. - Foi ele! A senhora mesma disse que ele ficou tão furioso por terem feito mal à humana amiga dele, que ele jurou vingança!
- Alto lá, mocinha! - Mikasa espalmou a mão em frente ao rosto da filha para interrompê-la por um momento. - Eu também disse que a história que acabo de te contar é uma lenda, não é mesmo?
- Hai...
- Então não vá tirando conclusões precipitadas, certo?
- Hai...
A menina sorriu envergonhada. Tal sorriso fez o peito da Princesa Herdeira encher-se de felicidade. Em busca de extravasar tal sentimento, deu um abraço apertado nela. Estava extremamente aliviada por sua filha ter voltado ao normal. Agora, tudo o que precisava fazer era garantir que continuasse assim.
- Okaa-sama! Está me sufocando! - reclamou a pequena, entre risos.
- Desculpe! Desculpe! - Afastou-se, mas só o suficiente para olhar o rosto da filha. - É só que estou tão feliz por termos conversado... Você promete que sempre que tiver um problema irá me contar imediatamente?
Foi preciso alguns segundos para que Aya se livrasse da indecisão, mas, quando o fez, respondeu:
- Hai!
- Ah, que alívio!
A mulher voltou a abraçar a filha.
- Okaa-sama!
E o riso voltou a ecoar pelo enorme cômodo do Palácio Touguu.
- Okaa-sama! Okaa-sama! Eu preciso te perguntar algo!
- Hai, hai! Pode perguntar!
- Todos os youkais se parecem com cachorros?
- Não exatamente... - Assumiu uma expressão de dúvida. - Embora essa lenda fale sobre seres que podiam transformar-se em cachorros, é dito popularmente que youkais são o que eles querem ser, ou seja, podem assumir qualquer forma.
- Então eles podiam virar humanos também? - espantou-se.
- Acredito que eles podiam se disfarçar de humanos se quisessem, sim. Principalmente porque a maioria dos youkais não era bem-vinda entre os humanos. Não com suas verdadeiras aparências.
- Qual a verdadeira aparência deles? - sussurrou. Os arrepios de medo estavam de volta.
- Bem, certa vez me disseram que os youkais são divididos em dois grupos: aqueles que conseguem ocultar o que são e os que não conseguem.
- E o que eles são? Diga! Diga!
- Ah, Aya. - Suspirou por ter que arruinar a animação da filha. - Todos os youkais, bonitos ou feios, não passam de criaturas cruéis, sem coração. Youkais são monstros, Aya. Apenas isso.
Youkais são monstros, Aya.
Apenas isso.
Youkais são monstros.
Monstros, Aya.
Apenas isso.
Monstros.
Aya!
Os youkais, Aya.
Aya!
São monstros.
Aya!
Aya!
Aya!
- Aya-nee-san!
Novamente Aya foi arrancada de seus pensamentos - sonhos, no caso - pela voz do primo. Ou melhor, pelo grito dele. Ela estava ofegante e suava.
- Tudo bem? - ele perguntou. - Você parecia assustada... Foi um pesadelo?
- Onde estamos? - respondeu a pergunta com outra pergunta.
- Presos, aparentemente.
Olhando ao redor, constatou que estavam em uma sala mediana, sem móveis ou janelas, fracamente iluminada por uma lamparina e com somente uma porta servindo como entrada e saída. Presumindo que seus companheiros de celas já tinham checado-a, não fez perguntas a respeito, ao invés disso, questionou:
- O que aconteceu?
Uma risada irônica ressoou pelo ambiente, ela vinha de Satoru Matsumoto.
- O que aconteceu? O que aconteceu foi que sua imprudência colocou todos nós em apuros! - exaltou-se. - Sua loucura pode custar as nossas vidas! A vida do Imperador! Está satisfeita? Está?!
- Acalme-se, Satoru-san - a voz suave de Hitoshi contrapôs-se com a irritada do outro homem.
- Como posso me acalmar, Vossa Majestade?! Não vê no que ela nos meteu?! Fomos sequestrados! E se esses lunáticos forem aliados dos russos? Ou pior, dos chineses?! Eles não hesitarão em nos matar! Em matar o senhor!
- O senhor não foi arrastado até aqui, Satoru-san - disse Aya, cansada de ouvir as reclamações do homem. Sua cabeça latejava e a voz dele piorava tudo. - Por favor, seja decente e não aja como se eu tivesse o obrigado a vir até aqui. Não obriguei o senhor, não obriguei nenhum dos senhores. - Olhou seriamente para as quatro mulheres e dois homens espalhados pelo local, desafiando-os a contradizê-la.
Como o esperado, apenas Satoru continuou reclamando:
- Fiz isso pela Sua Majestade, o Imperador! Se não fosse por ele eu nunca teria aceitado compactuar com tal ideia estapafúrdia!
- Já chega! - Hitoshi perdeu a paciência.
Entretanto, não foi o grito dele que silenciou os presentes e sim uma voz debochada que vinha da direção da porta:
- Humanos... Como eu sempre digo: o único motivo para vocês ainda existirem é o fato de que se multiplicam como coelhos.
O momento em que Aya distinguiu o que exatamente estava parado em frente a porta, agora aberta, também foi o momento em que os gritos de alguns dos seus companheiros tiveram início. Foi entre o segundo desse momento e aquele em que uma das mulheres desmaiou, que ela se lembrou das palavras ditas anos antes por sua mãe: youkais são monstros, Aya. Apenas isso.
Parado a poucos metros de si havia um monstro saído direto de uma lenda antiga. Parado perto de si havia um...
- Youkai...
