PRÓLOGO
Em junho de 1804, no segundo dia de sua visita a Chase Park, aos nove anos de idade, ela ouviu uma criada dizer a Tweenie que ela era uma bastarda.
— Uma bastarda! Absurdo! A menina é uma bastarda, Annie? Todo mundo diz que é uma prima da Holanda ou da Itália...
— Prima da Holanda ou da Itália o diabo! A mãe dela mora perto de Dover, e o senhor a visita freqüentemente. Ouvi a sra. Emory contar à cozinheira. Sim, ela é filha bastarda do lorde. Veja aqueles olhos azuis!
— É muita ousadia do lorde trazer sua bastarda para cá, no nariz de milady!
— Sim, mas a nobreza é assim. O lorde deve ter uma coleção de bastardos espalhados por aí. Que diferença faz mais um? Mas ela está aqui e, por isso, deve ser especial. E é toda sorriso e doçura, como se este fosse o seu lugar! Milady ignora a menina, mas ela vai passar pelo menos duas semanas aqui.
— E mais do que o suficiente. Imagine, trazer uma bastarda a Chase!
— Mas a menina é bonita!
— E o lorde é tão belo quanto o avô dele. Minha avó me contou que ele era um cavalheiro de grande nobreza e beleza... Faz sentido que a menina seja linda. Aposto que a mãe também não é feia. Ouvi a sra. Emory dizer que eles estão juntos há doze anos... como se fossem casados.
As duas criadas se afastaram, ainda conversando. Ela permaneceu escondida em um dos muitos nichos do corredor do segundo andar, imaginando o que seria uma bastarda. Não era nada bom, isso ela sabia.
O conde de Chase era seu pai? Ela balançou a cabeça veementemente. Não, ele era seu tio Hiashi, irmão mais velho de seu pai, e ia visitá-la a cada dois meses para se certificar de que ela e a mãe estavam bem. Seu pai fora morto em fevereiro de 1797, quando tropas francesas tinham invadido a Inglaterra. Ela sempre ouvia a mãe dizer como havia quase dois mil franceses, não soldados de verdade, mas criminosos, todos libertados de prisões e perdoados em troca do ataque a Avon e da destruição de Bristol, seguida de Liverpool. Sua mãe dizia também que aqueles criminosos franceses tinham desembarcado em Pencaern, e lá haviam sido enfrentados e rendidos pelo exército de Pembrokeshire. E seu pai liderara aqueles bravos ingleses, que derrotaram os franceses que ousaram pisar em solo britânico. Não, seu verdadeiro pai era o capitão Geoffrey Cochrane, e ele morrera como herói, defendendo a Inglaterra.
Os olhos de sua mãe sempre se tornavam mais suaves quando ela dizia:
— Seu tio Hiashi é um nobre, minha querida, um homem muito poderoso, com muitas responsabilidades, mas ele vai cuidar de nós para sempre. Ele tem a própria família, por isso não pode nos ver sempre. As coisas são assim e sempre serão. Mas, não esqueça, ele nos ama e nunca vai nos abandonar.
E quando ela completara nove anos, sua mãe a mandara para passar duas semanas com tio Hiashi em sua magnífica mansão chamada Chase Park, perto de Darlington, no norte de Yorkshire. Ela havia implorado à mãe para acompanhá-la, mas ela simplesmente balançara a cabeça e dissera:
— Não, minha querida, a esposa de seu tio Hiashi não gosta de mim. Fique longe dela. Você tem primos lá e vai se aproximar deles, mas mantenha distância da esposa de seu tio. Lembre-se, amor, nunca fale sobre você. É aborrecido, não acha? Muito melhor guardar segredos e ser misteriosa.
Ela havia evitado a condessa de Chase com pouca dificuldade, porque a dama, na única vez em que a vira, a olhara com grande desprezo e depois saíra da sala. Nem ela nem seus primos se uniam ao conde e à condessa na sala de jantar todas as noites; por isso era fácil manter-se longe dela.
Tio Hiashi era diferente ali em sua mansão, com tantos criados em uniformes elegantes de botões dourados reluzentes. Era como se houvesse empregados em todos os lugares, em cada corredor, sempre olhando, mas nunca falando. Exceto por Annie e sua colega.
Tio Hiashi era atencioso em Rosebud Cottage, quando ia visitá-la e conversar com sua mãe, mas agia diferente ali. Ela franziu a testa, tentando entender por que ele não a abraçara. Seu tio a chamara na biblioteca, um aposento quase tão grande quanto a casa onde ela morava, com paredes cobertas por livros e escadas que corriam por trilhos presos ao teto. Tudo ali parecia pesado e escuro, até o luxuoso tapete sob seus pés. Quando ela entrou, não havia nada além de sombras, pois era final de tarde e as cortinas estavam fechadas. Mas ela viu o tio e sorriu.
— Olá, tio Hiashi. Obrigada por ter me convidado para ficar aqui.
— Olá, minha querida criança. Entre, e vou lhe dizer como deve agir enquanto estiver aqui.
Ela deveria chamar todas as crianças de primos, mas, é claro, já sabia disso, porque era esperta. Teria aulas com os primos, os observaria e copiaria suas maneiras e seu comportamento, exceto por Neji, sobrinho de seu tio, atualmente em visita a Chase Park. Ele era o próprio filho do diabo, tio Hiashi contou sorrindo, um sorriso que parecia mesclar ressentimento e orgulho.
— Sim — ele repetiu devagar —, o próprio filho do diabo, o filho de meu irmão. Ele tem quatorze anos, quase um adulto, e por isso é muito perigoso. Não o siga nem seus outros primos meninos em suas travessuras. É claro, é bem provável que os garotos a ignorem, porque você é só uma menina.
— Eu tenho outro tio? — ela indagou com os olhos brilhando.
— Sim, mas não deve dizer nada a seu primo Neji. Apenas atente para como as pessoas se comportam. Se for um comportamento adequado, imite-o. Se não, feche os olhos e ignore. Entendeu?
Ela assentiu. Então, ele saiu de trás da grande mesa e afagou seus cabelos.
— Seja uma boa menina, e poderá vir me visitar uma vez por ano. Nunca fale sobre sua mãe, sobre mim, ou sobre si mesma. Não diga nada pessoal. Sua mãe a preparou, não?
— Sim, tio, ela me disse para guardar segredos e ser misteriosa, porque assim eu seria mais interessante, e o senhor e ela se orgulhariam de mim.
Ele sorriu.
— Kurenai lhe dá bons conselhos. Ouça-os, e faça o que eu digo. Agora vá e conheça suas primas. Elas já foram informadas para chamá-la de prima, também.
— Mas é o que sou, tio Hiashi.
— Sim, sim.
Ela não entendia nada daquilo, mas não era estúpida e amava muito sua mãe. Sabia que era importante que fosse obediente, dócil e agradável. Não queria aborrecer ninguém.
Naquele primeiro dia, os meninos foram educados, e depois a ignoraram, mas suas primas, as gêmeas, como todas as chamavam, ficaram encantadas com sua presença.
O que era uma bastarda?
Ela não perguntou a tio Hiashi. Em vez disso, procurou diretamente a pessoa que menos a apreciava. A esposa dele.
As batidas na porta da sala foram atendidas por um ríspido:
— Entre!
Ela ficou parada à porta, olhando para a mulher grávida sentada em um divã, costurando. A condessa estava muito pesada por causa da gravidez. Era difícil compreender como alguém podia costurar tendo os dedos tão gordos. Seu rosto não era bonito, mas podia ter sido na juventude. Ela era muito diferente de sua mãe, uma mulher elegante, esguia, e muito alta. A condessa parecia velha e cansada, e também má e ressentida.
— O que quer?
A menina sentiu um súbito temor, mas entrou na sala e disse:
— Ouvi uma das criadas dizer a outra que sou uma bastarda. Não sei o que é isso, mas posso presumir, pelo tom de voz das mulheres, que não é nada bom. Notei que não gosta de mim, e por isso imaginei que me diria a verdade.
A mulher riu.
— Bem, os rumores já começaram, e você só está aqui há dois dias. É o que sempre digo: se alguém quer saber alguma coisa, só precisa perguntar aos criados, porque eles nunca nos desapontam. Sim, você é uma bastarda. Significa que sua mãe é uma meretriz, que é paga por meu marido para estar sempre disponível, e você é fruto dessa disponibilidade. — Ela riu, e sua risada era fria, cruel.
— Não entendo, senhora. O que é uma meretriz?
— E uma mulher que não tem moral. Tio Hiashi é seu pai, não seu tio. Mas eu sou a esposa dele, e sua querida mãe não é nada senão a amante de um homem rico, uma mulher que recebe dinheiro em troca de... bem, você ainda não entende, mas, considerando sua aparência e a maneira como já desabrocha, imagino que um dia será ainda melhor que sua mãe. Nunca se perguntou por que seu querido tio James é um Wyndham, e você é uma Cochrane? Não. Parece que não tem mais inteligência do que a vadia de sua mãe. Agora, saia daqui. Não quero vê-la outra vez, a menos que seja necessário.
A garota saiu correndo, com o coração disparado e o estômago doendo de medo.
Daquele dia em diante, ela permaneceu sempre muito quieta, limitando-se a responder quando alguém lhe dirigia a palavra, nunca iniciando uma conversa ou rindo, nem fazendo ruídos que pudessem chamar a atenção dos outros. Foi perto do final daquela visita que seu primo Neji começou a chamá-la de Duquesa.
Sua prima Antonia, então com seis anos de idade, franzia a testa para Neji e protestava:
— Por quê, Neji? Ela é só uma menina, como Fanny e eu. Somos apenas Wyndham. Por que ela é duquesa, e nós não somos?
Neji, o filho do diabo, olhou para a prima do alto de sua considerável estatura e respondeu:
— Porque ela não ri e não sorri, é distante e mais reservada do que deveria ser para uma criança de sua idade. Ela já sabe distribuir sorrisos e aprovação como se fossem moedas de ouro. Não notaram como os criados correm a atendê-la? Como se derretem se ela os cumprimenta? Além disso, um dia, ela será linda.
Ela nada respondeu, limitando-se a conter o choro que ameaçava sufocá-la. De queixo erguido, ela fixou o olhar em um ponto qualquer além dele.
— A Duquesa — neji repetiu rindo. Depois, saiu para cavalgar com os primos.
Ela carregava bem o título de Duquesa porque não tinha alternativa. Quando ouvia alguém falar sobre seu orgulho excessivo, ou quando alguém a defendia alegando não se tratar de orgulho, mas de reserva, sabia que suas maneiras eram irrepreensíveis, e essa era toda a compensação de que necessitava.
Quando ela foi a Chase Park em junho de 1808, então com treze anos, Neji também estava lá. Ele viera de Oxford para visitar os primos. Ao vê-la, ele riu, balançou a cabeça, e a cumprimentou:
— Olá, Duquesa. Soube que agora esse é seu nome. Alguém já lhe disse que combina perfeitamente?
Ele sorria, mas tudo que ela via era um sorriso desinteressado, um sorriso que ele oferecia por não ter nada melhor para fazer naquele momento.
E ela se limitou a encará-lo com o queixo erguido, sem responder.
Odiava aquele olhar debochado e o tom gelado de Neji.
— Ah, como se tornou distante, Duquesa! Como é altiva. Tudo isso é resultado de minha previsão quando você ainda era uma criança? Vejo que também se torna bela como eu antecipei. E só tem treze anos. Como será aos dezesseis? Ah, não! Prefiro não vê-la quando se tornar adulta!
Rindo, ele saiu para cavalgar com Charlie e Mark.
Ela ficou parada no hall com as duas valises a seu lado, até o sr. Sampson se aproximar sorrindo, como sempre, seguido pela sra. Emory, que também sorria e dizia:
— Bem-vinda, senhorita!
Todos agora a chamavam de Duquesa, inclusive seu pai, tio Hiashi, e Tweenie, a criada que a informara inadvertidamente de sua condição ilegítima anos atrás. E todos sabiam que era uma bastarda. Por que a tratavam com tanta gentileza? Jamais entenderia. Era a filha bastarda de Hiashi Wyndham, e nada mudaria tal circunstância.
Se alguém algum dia perguntasse, ela responderia sem hesitar que perdera a inocência aos nove anos de idade. Quando tio James chegara para uma visita, ela notara que ele dormia no quarto de sua mãe, e passara a perceber que eles se tocavam com freqüência e riam, sempre muito próximos. Certa vez ela os vira trocar um beijo no corredor do segundo andar.
Três meses depois daquela primeira visita a Chase Park, tio Hiashi havia dito que ela era sua filha. Estavam na casa dela, sentados em um diva da sala de estar.
— Agora não precisa mais fingir que não é minha filha, porque já tem idade suficiente para entender os fatos da vida, Duquesa. E não deve estar surpresa.
Já sabia disso, não? Infelizmente, em Chase Park, manteremos a farsa. Minha esposa exige que seja assim, e eu concordei com ela.
Tio Hiashi gostava dela? Isso era algo que jamais saberia. E não importava. Tinha o amor da mãe. Não precisava dele.
― Tio Hiashi, sou uma bastarda — ela respondera. — Sei disso já há algum tempo. Não se preocupe, porque já me habituei a essa condição.
As palavras calmas e desinteressadas o assustaram, mas ele nada disse. Estava aliviado. O que mais poderia dizer? Ele fitou os grandes olhos azuis, os cabelos negros como os dele, e pensou que essa sua filha era contida e retraída, muito diferente das gêmeas, sempre risonhas e agitadas.
Era difícil lembrar agora que, no início, não a quisera, que chegara a ordenar a Kurenai que se livrasse da criança. Mas kurenai simplesmente dissera que teria o bebê, e que ele podia fazer o que achasse melhor. E ele achara melhor ficar com as duas, porque queria Kurenai mais do que jamais quisera outra mulher em sua vida. E agora ali estava sua filha, serena e altiva como uma duquesa, a filha que um dia ele não quisera, mas que agora amava.
A Duquesa lembrava com nitidez aquelas duas semanas de 1808. Seu primo Neji a obrigara a se retrair ainda mais com suas palavras debochadas que, na verdade, eram só provocação e brincadeira, mas que causavam nela profunda dor. Então, na segunda quarta-feira, seus outros dois primos, Charlie e Mark, se afogaram em uma corrida de barcos quando dois veleiros colidiram no rio Derwent, diante dos olhares perplexos de cerca de duzentas pessoas que acompanhavam o evento das margens. Cerca de dez ou doze garotos pularam de seus barcos nas águas frias do rio para tentar salvar os dois competidores, mas ninguém conseguira resgatá-los em tempo. Atingido na cabeça pelo mastro de um veleiro desgovernado, Charlie morrera instantaneamente e fora arremessado no rio. Seu irmão mais novo, Mark, tentara encontrá-lo sob os destroços do outro veleiro, e também se afogara ao ser envolvido pelos restos de uma vela.
Os rapazes foram sepultados no cemitério da família Windham. Chase Park mergulhou no desespero. O pai da Duquesa passava os dias trancado na biblioteca. O choro da condessa era ouvido pelos corredores durante toda a noite. Neji estava pálido e retraído, silencioso, porque sobrevivera aos primos. Ele nem havia estado no veleiro com os dois. A Duquesa voltou para a casa da mãe.
Durante os cinco anos seguintes, a condessa engravidava todos os anos na tentativa de produzir um herdeiro para Chase, mas nenhum dos bebês sobrevivia ao primeiro ano de vida. Todos eram meninos. O conde se retraía cada vez mais, embora se deitasse com a esposa todas as noites, mesmo não havendo prazer para um ou outro. Era apenas um mórbido dever, tornado mais amargo a cada ano. Neji tinha seu sangue, mas ele queria que sua linhagem prosseguisse por alguém de sua própria carne, não pelo filho do irmão.
Ele passou a visitar Rosebud Gottage com mais freqüência. Estava quieto, e seu riso agora era tão raro quanto o de sua filha. Era como se o conde se apegasse mais e mais à mãe dela, e ela o mantinha bem próximo, amando-o incondicionalmente.
Mas quando o conde voltava a Chase Park, como era inevitável, não havia nada que ele pudesse fazer além de ver a esposa produzir um filho após o outro e ver cada um deles morrer.
Neji Wyndham era o herdeiro de Chase.
