Não sabia exatamente o que fazia por ali, àquela hora, mas não conseguia dormir. Minha intuição gritava e não parou de incomodar até que pegasse a velha arma, a colocasse na cintura, e entrasse no carro. Estava sendo uma tola, eu sabia. A maldita intuição nunca falhara, era verdade, mas a quantidade de vezes que me dera mal por causa dela não era pequena. Na verdade, fazia anos que não escutava minha intuição.
Mas naquela noite, estava inquieta. O cigarro não tinha adiantado, as pílulas para dormir não fizeram efeito, minha cabeça não parou de girar até começar a dirigir pelas estradas desertas. Vi o atalho escondido de longe e soube imediatamente que era ali que deveria entrar. Cinco minutos depois, desci do carro, olhando a rua à minha frente. Não fosse um gato na calçada, eu diria que não havia nada além de mim por ali. Mas mesmo assim eu prossegui, enquanto andava, passei a mão na velha arma em minha cintura. Ela estava trancada junto com a minha intuição, ambas com anos de desuso, mostrando-se novas em folha.
Ouvi os tiros de longe, e sabia exatamente de onde vinham. De repente vi-me correndo na direção dos disparos, entrando em um beco escuro. Em uma parede, dois homens estavam encurralados por algo que nunca vi, não sabia do que se tratava, se gente ou animal, ou ambos. Devia ter três metros de altura e tinha uma aparência suja, grotesca. Não pensei duas vezes, saquei a minha arma e atirei. Uma, duas, três vezes. A criatura se virou para mim, e eu continuei atirando. Quatro,cinco, seis vezes. Descarreguei a arma e logo ouvi os disparos dos dois homens. Finalmente a criatura havia tombado.
Olhei para os dois, que vinham na minha direção, ao mesmo tempo que sentia a adrenalina latejar pelo meu corpo. Eu estava viva, afinal.
- Hey, quem é você?
Vi que ainda segurava a velha pistola em riste, abaixei-a rapidamente.
- Meu nome é Irine. - Olhei ao redor, parecendo pela primeira vez, notar a destruição no beco. Latas de lixo espalhadas, vestígios de balas e estilhaços. E os dois homens ali, ambos lindos feitos anjos, um pouco sujos e suados.
Um deles me olhava analiticamente, o outro eu sentia conhecer hà muito tempo. Este último se adiantou, ainda desconfiado.
- O que fazia aqui sozinha à essa hora?
Falar que eu estava apenas seguindo a minha intuição pareceu muito bobo, não queria parecer uma idiota, mas que outra resposta eu tinha? O que eu poderia fazer em um lugar remoto como aquele? E portando uma velha arma da polícia?
- Não sei, realmente. Também gostaria de saber. Vocês estão bem?
Meu olhar se perdeu na criatura morta, algo viscoso e escuro saía das feridas que fizemos, eu não estava orgulhosa. Um deles se adiantou, apertando a minha mão, justamente aquele que eu parecia estar já familiarizada.
- Eu sou Dean, este é meu irmão Sam. E sim, estamos.
O outro me estendeu a mão.
- Obrigada por nos socorrer.
Tomei a conversa por acabada e me virei para ir embora, era a única coisa que podia fazer, agora que minha cabeça havia parado de girar, minha intuição havia sumido milagrosamente.
- Você está bem?
Dean me gritou, para ele a conversa não havia acabado, aparentemente.
- Acho que sim, aquela coisa não chegou perto de mim.
- Por que você tinha uma arma com você?
Sam falava, eu não hesitei desta vez. Parecia estar livre do torpor.
- Velho hábito de tira. - Dei de ombros. - Achei que pudesse precisar.
- Você é tira?
- Era. Isso não importa. - Quando pareceram interessados na minha antiga profissão, os cortei, era doloroso falar sobre o passado.
Eles se entreolharam, pareciam confusos.
- Você sabe o que isso era? - Dean apontou para a criatura que eu não conseguira identificar.
- Na verdade não, mas estamos perto do México, afinal. Isso pode ser um chupa-cabras.
Eles riram, eu não havia achado tão engraçado, na verdade, não me reconhecia tão séria. Mas é o que a morte faz com as pessoas.
- Vocês geralmente lidam com esse tipo de coisa?
Dean me olhou, agora que estávamos debaixo de um poste, podia vê-los claramente. E eles a mim. E eu não estava muito feliz com o que eu estava vestindo. Eram as velhas calças jeans que nunca saíam do guarda roupa, meu velhos coturnos e uma regata qualquer a combinar com a jaqueta pesada. A pistola estava descansando agora no meu coldre, preso à cintura. Eu não parecia nem um pouco feminina. Tentei não pensar na impressão que eu passava para eles.
- Quando a situação se torna crítica. Você sempre aparece na última hora como se fosse a cavalaria?
Sorri, pela primeira vez ali.
- Quando a situação se torna crítica.
Nós nos separamos e, mesmo depois de ter acalmado a minha cabeça e fumado vários cigarros, não consegui dormir. De algum jeito, eu sabia, estava ligada àqueles dois, o que se confirmou uma semana depois de nosso encontro.
Eu estava na banca de jornal, esperando a minha vez de ser atendida, quando vi Dean parar ao meu lado, agradeci a Deus por não estar vestindo moletom dessa vez.
- Oi.
Ele sorriu e eu congelei, ele era ainda mais bonito do que eu me lembrava.
- Oi. - Sorri.
Eu quase podia sentir o olhar dele me perfurar quando virei o rosto para pedir o meu jornal. Ele também sabia, afinal. Da nossa ligação.
- Acho que eu te devo uma explicação.
Estávamos andando pela calçada, em direção ao Starbucks mais próximo.
- Explicação?
Não entendi muita coisa. Era eu quem tinha aparecido do nada com uma arma na mão. Nós pedimos nossos respectivos cafés e nos sentamos.
- Você é religiosa?
Depois da morte da minha família eu não tinha muita fé. A morte da minha família acabou comigo.
- Não.
- Acredita no fim do mundo?
Aquilo estava tomando um rumo estranho. Religião? Fim do mundo? Ele não tinha cara de louco, mas suas perguntas não eram muito sérias.
- Acredito que o mundo acaba para quem morre.
- Então não acredita no Apocalipse?
- Apocalipse? Os Quatro Cavaleiros e tudo mais?
- Sim.
Meu Deus, ele é louco.
- Não.
Ele olhou para mim, parecia bem sério. Ele realmente acreditava em tudo aquilo.
- Você acredita em tudo isso? - Ele continuava me encarando. - Você quer me dizer o que? Que o chupa-cabras tem algo a ver com o Apocalipse e o fim do mundo? - Acho que eu estava rindo, minha voz estava engraçada.
- Sim. Mesmo que você não acredite nisso. Há anjos e demônios, os demônios estão tentando fazer com que o Apocalipse aconteça, os anjos não ligam para o que acontece. Eu e meu irmão somos caçadores, tentamos não deixar isso acontecer.
- Caçadores?
- De demônios e monstros em geral.
Eu não lembro exatamente o que disse, mas ele continuou me encarando seriamente.
- E por que está me contando isso?
Ele não falou nada e nesse momento vi alguém se sentar à nossa mesa. Eu soube que ele não era perigoso, mas não sabia o que queria comigo.
- Meu nome é Castiel. - Ele se apresentou.
- Irine.
- Eu sei.
Eu olhei para os dois ali, sem entender muita coisa.
- Irine. - Castiel falava comigo agora e eu me virei para ele. - Como você sabia sobre Dean e Sam naquele beco?
- Eu... Tive um pressentimento.
Eu estava parecendo realmente idiota falando sobre meus pressentimentos. Como ex-policial eu sabia que não deveria acreditar na minha intuição, mas eu não podia evitar.
- É ela.
- Tem certeza?
- Eu sou o que?
Castiel apenas acenou com a cabeça.
- Irine, eu sou um anjo e...
- Tá legal, chega com isso, ok? Anjo? Você? Se você é um anjo eu sou George Bush!
- Eu sei tudo sobre você, você não é George Bush.
Dean suspirou.
- Cas, ela está sendo irônica.
- Ah.
- Ironia é parte da minha personalidade, você não sabe tudo sobre mim, afinal.
Bem, eu não podia acreditar naquilo. Eu estava sentada em um Starbucks com um louco e um doido de pedra que se achava um anjo. Será que Sam era tão louco quanto eles? Castiel me olhou novamente.
- Você é a primogênita, seus pais morreram em um incêndio e você criou sua irmã até ela completar dezoito anos. O incêndio foi criminoso, mas os culpados nunca foram descobertos e você decidiu se tornar policial porque acreditava que acharia os culpados. Logo se casou, o médico que lhe atendeu quando foi baleada, seu primeiro amor, não é verdade? Sua irmã também se mudou e você engravidou, teve uma filha, Eve. Anos depois, sua irmã veio lhe visitar para a festa do Natal, somente sua filha, ela e seu marido. Você foi para o trabalho, quando voltou viu o carro de sua irmã e o carro dos bombeiros. Mais um incêndio na sua vida, mas desta vez você estava sozinha.
Eu estaquei, como ele sabia tudo aquilo era um mistério, mas tudo era verdade. A tragédia grega que minha vida se tornara, como eu perdi toda a minha família em tão pouco tempo.
- Sua filha morreu no caminho para o hospital. Você tentou se matar duas vezes. Dia após dia você se amaldiçoa por acordar, dia após dia você deseja morrer. Os culpados também não foram descobertos, mesmo que você tenha tentado tudo, no fim, só o que lhe restou foi uma vida vazia e miserável.
Eu estava ofegante, me vi tentando conter as lágrimas que queriam rolar pelo meu rosto. Não olhei para Castiel, não olhei para Dean.
- Acredita em mim agora?
Temia piscar e libertar as lágrimas insistentes. Temia olhá-lo e encarar a verdade.
Vazia. Escolha interessante de um adjetivo para a minha vida, uma escolha muito interessante e correta. Tudo era verdade.
- O que sou eu?
- Você é a Protetora. Você foi designada pelo Céu para proteger o Receptáculo de Miguel.
- Claro, sou uma serva do Céu. Eu não sei como você me conhece tão bem, mas esse papo está ficando mais louco do que eu poderia imaginar.
Olhei para Dean, mas me lembrei que também era maluco, desisti de pedir seu apoio.
- Você sabia onde Dean estava. Você teve o impulso de protegê-lo. Você sabia.
Eu não queria acreditar no que ele estava dizendo, tentava dizer a mim mesma para ser sensata, mas estava difícil. Pensei naquela noite, como eu sabia exatamente aonde ir, como não consegui me acalmar até ir até lá, como o Valium não me fez dormir ou meus cigarros não tiveram efeito. E o impulso de carregar a arma comigo. Parei de súbito, estava de pé e todos no café me olhavam. Me sentei novamente.
- Eu sou a protetora e ele é um vaso?
- Receptáculo.
- Que seja. Eu tenho que proteger ele?
- Sim.
Ele riu.
- Vai salvar meu traseiro a toda hora.
- Por que eu tenho que fazer isso? Deus não nos deu livre arbítrio ou algo assim?
- Deu. Você não pode evitar fazer isso. É algo de sua natureza. - Castiel estava calmo, tinha toda calma do mundo.
- E quem vai salvar o meu traseiro?
- Posso salvá-lo para você. É um belo traseiro.
Ignorei Dean.
- Quer dizer, qual é. Como posso proteger ele quando não consegui proteger minha própria filha, hum?
- Sua filha não era um receptáculo.
- Mas era um ser humano!
Bati com as minha duas mãos na mesa, mostrando minha irritação. Castiel me encarava, sereno. Dean parecia contrariado, quase solene. Eu era a única irritada. Irritada por terem mencionado a minha filha, não por ser a Protetora, eu sabia que era verdade. Uma verdade inadmissível, é claro, mas ainda assim eu sabia.
- Irine, precisa vir conosco.
Pensei nas possibilidades. Era perigoso. Eu poderia morrer.
- Eu vou.
Dean sorriu para mim, mas Castiel continuou sério.
- Se lembre de uma coisa, Irine, se vier conosco por esse motivo, mesmo que morra em batalha, será suicídio.
- Eu vou, meus motivos não lhe dizem respeito, Castiel.
