Disclaimer: Saint Seiya não me pertence. Faço este fic sem fins lucrativos, apenas por diversão.

Uma Nova Vida

Capítulo I: Um Nome

Estava cansada. Seu corpo parecia se recusar a se mover mais um passo sequer. Na verdade, seria finalmente bom se livrar de toda aquela dor. Era só cair ali no meio daquela imensa floresta, sem nada nem ninguém para lhe ajudar… não poderia haver nada que desejasse mais naquele mundo… sair dele, para nunca mais voltar. Se tivesse de abrir os olhos mais uma vez, queria então não precisar lembrar-se de nada do que tinha passado até ali, talvez assim, pudesse ter uma segunda chance, uma segunda vida…

Sentiu quando pisou em falso, e não fez o menor esforço para evitar a queda. Como se algum deus tivesse ouvido seu pedido, a última coisa que sentiu antes de tudo escurecer foi uma forte pancada na cabeça. Diante da dor, teve certeza de que jamais abriria os olhos de novo.

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Àquela hora, Shaka devia estar voltando do campo de treinamento para a Casa de Virgem, jamais devia ter se deslocado de sua sala de meditação para ir até o Coliseu por implicância de Milo, tinha apenas perdido seu tempo. Entretanto, teria continuado seu caminho até a sexta casa zodiacal sem mais delongas, não fosse por aquela incomum e frágil presença dentro dos limites do Santuário. Não devia haver um cosmo daqueles ali, deveria? Aqueles cosmos tão fracos ficavam longe do Santuário, no vilarejo nos arredores dos campos de treinamento de bronze e prata. Até mesmo o mais fraco cavaleiro em treinamento tinha um cosmo bem mais elevado que aquele que ele sentia. Na verdade, aquela presença parecia de uma vida se esvaindo, e foi aquela sensação que fez com que a urgência do loiro aumentasse para chegar ao local de onde vinha o cosmo.

Ele adentrou a floresta e em pouco tempo, deparou-se com a figura de presença tão fraca e sumindo. Precisou abrir os olhos lentamente para se certificar do que se tratava. Era praticamente uma criança… tinha o corpo esguio e magro, parecia não comer havia dias. Suas roupas estavam sujas e surradas, e havia marcas de sangue em alguns lugares. Os cabelos estavam desleixados e mergulhados numa mancha de sangue bem maior que a das roupas, mas dessa vez no chão, e sob a cabeça da garota.

Shaka se abaixou rápido, preocupando-se em usar parte de seu cosmo para recuperar alguns dos ferimentos dela, especialmente aquele na cabeça. Não podia repor o sangue que ela perdera, então só podia esperar que ela resistisse para se recuperar por completo. Quando teve certeza de que boa parte do físico dela estava recuperado, levantou-a nos braços e se impressionou ainda como ela podia ser tão leve. Não sabia como ela tinha chegado ali, e como alcançara aquelas condições lastimáveis, mas se ninguém estivera tentando matá-la, ela provavelmente estava tentando morrer.

Em menos tempo que o necessário, alcançou a Casa de Virgem, a garota ainda desacordada em seus braços. Não teve tempo de alcançar nem a ala leste da casa, para acomodá-la em um dos quartos vagos, quando já sentiu a presença de um dos Cavaleiros de Ouro bem ali, na entrada de sua casa. Demorou uns minutos até que ele entrasse realmente, sem ser recebido pelo protetor da casa, então, assim que Shaka deixou a garota deitada numa das camas e saiu do quarto, não se surpreendeu ao dar de cara com Mu, de Áries.

– Imaginei que chegaria logo. – Shaka disse, parando diante do amigo de longa data.

– Não é muito comum uma presença tão fraca surgir na Casa de Virgem. Aliás, não é comum qualquer tipo de presença que não do protetor, na Casa de Virgem. O que aconteceu? – Mu perguntou, curioso e confuso.

– Eu preciso informar a Athena sobre isso. Havia uma garota de fora nos arredores do Santuário. Ela estava morrendo. Não sei como chegou até lá, e não sei como chegou às condições em que está, mas precisa de ajuda. – Shaka respondeu.

– Não senti a presença dela até que chegasse aqui. – o ariano disse, arqueando as sobrancelhas em confusão.

– Eu também não teria sentido, se não estivesse tão perto de onde ela estava. – Shaka passou direto pelo dono dos cabelos lilases. – Já cuidei dos ferimentos dela, agora temos que esperar que recupere a consciência para que ela volte pra o lugar de onde veio. Enquanto isso, eu vou até o salão do Grande Mestre para informar a deusa sobre isso. Já que está aqui, pode ficar de olho na garota.

– Hm… certo. – Mu acenou a cabeça, enquanto Shaka passava direto por ele, ainda em suas roupas simples de treinamento, para colocar a armadura dourada e ir de encontro a Athena.

Antes mesmo de o loiro desaparecer de vista, Mu andou até o quarto cuja porta estava fechada, onde provavelmente a tal garota descansava. Não era de se impressionar que mais nenhum Cavaleiro de Ouro tivesse ido até lá para saber o que acontecia. Shaka era o tipo de cavaleiro com quem ninguém lidava, e provavelmente o último a quem qualquer um iria pedir satisfações. Além dele, pela longa amizade que tinha com o cavaleiro, provavelmente Saga, Dohko, Milo e Kamus teriam coragem de ir perguntar o que estava acontecendo. Mas Saga estava na sua tarefa de Grande Mestre, Milo estava treinando, assim como Dohko, e Kamus não se importava muito com qualquer coisa fora da décima primeira casa.

Ele abriu a porta lentamente, como se qualquer barulho pudesse acordar a garota de sua inconsciência. Andou até perto da cama e fitou a pequena figura. Pelo tamanho, ela não devia ter mais que 15 anos. Estava terrivelmente magra, e dos ferimentos que Shaka curara, sobraram apenas marcas de sangue na roupa surrada. Não era difícil imaginar que ela era algum tipo de mendiga que não sabia por onde estava vagando e acabara se perdendo justamente nos limites do Santuário. Definitivamente era o tipo de pessoa que Shaka ia apenas se certificar de que ainda estava viva, para poder mandar embora o quanto antes.

Mu não soube exatamente o tempo que tinha se passado, mas não devia ter sido mais que trinta minutos, e Shaka já estava de volta, novamente em suas roupas indianas, sem a tradicional armadura de Virgem.

– Então você vai ficar cuidando dela agora? – Mu perguntou, ao ver Shaka entrando no quarto.

– Se quiser, pode levá-la embora. Você é melhor nisso do que eu. – Shaka preferiu parar ao lado da porta, encostado à batente.

– Eu ficaria feliz em ajudar. – Mu se levantou da segunda cama que havia no quarto e seguiu até a porta. – Mas estou indo para Jamiel, e não tem como eu levá-la até lá. Boa sorte então, meu amigo.

Mu bateu de leve no ombro dele e saiu do quarto, fechando a porta atrás de si. Shaka ficou um tempo voltado ainda para a garota inconsciente. Os olhos estavam novamente fechados, para não precisarem abrir novamente tão cedo. Ele ainda ficou ali, naquela posição por um longo tempo, até finalmente resolver sair do quarto e voltar para sua sala de meditação. Ela provavelmente não acordaria tão cedo, e precisaria de tempo para se recuperar depois da dose de energia que Shaka tinha lhe cedido. Até lá, ele podia continuar seu treinamento como fazia todos os dias, como se nada tivesse lhe interrompido.

Por várias horas seguintes ao ocorrido, Shaka apenas sentou-se em sua sala, na posição de lótus, com o rosário de contas negras enrolado em seu punho, livrando a mente de todos os pensamentos possíveis. O tempo passava incrivelmente rápido quando estava concentrado daquele jeito, e antes que se desse conta, a noite já tinha caído, e vários cavaleiros do Santuário tinham encerrado suas atividades para se recolherem a seus descansos.

O loiro se levantou para fazer a mesma coisa, seguindo para a ala oeste da casa, onde ficavam os seus aposentos. Parou no meio do caminho para seguir pelo corredor oposto. Não sabia se tinha deixado de notar aquilo por conta da meditação, ou se a jovem que estava em sua casa tinha apenas acabado de acordar, mas podia sentir o cosmo dela mais forte e mais ativo.

Ele abriu a porta do quarto sem muita cerimônia. Não abriu os olhos para encará-la, mas sabia que ela estava sentada na cama.

– Você que me trouxe até aqui?

Shaka ouviu a voz dela invadir seus ouvidos. Não parecia a voz de uma criança, mas estava baixa, quase sussurrada… cansada talvez. Ele pensou em responder, mas não teve tempo.

– Eu moro aqui?

Shaka quase abriu os olhos para arregalá-los em leve surpresa. Se ouvira bem, a possibilidade mais acertada era que ela não tinha memória.

– Você não se lembra? – ele finalmente perguntou.

– Lembrar? Do que? – a garota voltou os grandes olhos castanhos para o loiro.

– Qual o seu nome? – Shaka perguntou, e teve sua suspeita confirmada quando a resposta demorou a vir.

– Meu nome… – ela repetiu, depois de alguns minutos, como se aquilo pudesse ajudá-la a lembrar-se. – Eu não sei.

– Consegue lembrar-se de alguma coisa? – Shaka continuou parado no mesmo lugar, tentando descobrir o que fazer diante daquela situação.

Mais uma vez a resposta demorou a vir. Ele não podia ver a expressão dela, nem seus movimentos, dependia apenas que ela pronunciasse sua próxima sentença para tirar de lá o modo como a jovem estava se sentindo.

– Não sei. – a voz estava ainda mais fraca e daquela vez, trêmula. – Não consigo me lembrar de nada.

– Parece que lembra alguma coisa e não quer contar. – Shaka disse, rígido. Pelo tom de voz dela, tinha lembrado alguma coisa provavelmente ruim, e talvez por aquilo, não quisesse falar.

– Eu não lembro. – a voz estava quase sumindo. – Não me sinto bem. Onde eu estou?

Ela se levantou da cama e olhou ao redor. Ainda se sentia fraca, e não sabia o que fazer. Definitivamente, não conseguia se lembrar de nada além de um sentimento muito ruim de tristeza e medo.

– Este é o Santuário de Athena. Você estava desacordada na floresta dentro dos limites do Santuário, um lugar que certamente não deveria estar se não é uma amazona. – Shaka disse. – Como chegou aqui?

– Eu não sei, não lembro. – a voz dela finalmente estava mais firme, e ela seguiu na direção da porta. – Eu tenho que ir…

– Ir aonde? – Shaka perguntou, quando a garota passou direto por ele e saiu do quarto, seguindo pelo corredor e olhando ao redor, de maneira curiosa. – Disse que não se lembra. Vai para casa?

Naquele momento, o som dos passos cessou e o virginiano sentiu a presença dela parar de vez. Não houve resposta alguma durante um tempo considerável, e ele não voltou a falar. Apenas quando achou que o silêncio estava longo demais, pensou em perguntar qualquer coisa. Desistiu ao notar, mesmo com os olhos fechados, que lágrimas estavam escorrendo dos olhos dela.

– Acho que devia voltar para a cama. – o loiro falou depois de mais alguns minutos sem palavras. – Está noite, e você ainda não se recuperou.

– Não sei por que… isso. – ela hesitou ao falar sobre as lágrimas. – Não sei onde é minha casa. Eu não sei…

– Você pode ficar aqui por enquanto. – Shaka passou direto por ela. – Descanse.

Ele não parou de andar e não esperou resposta. Ela apenas o encarou enquanto ele desaparecia pelos corredores mal-iluminados da enorme casa.

A morena voltou até o quarto e fechou a porta atrás de si. Ficou ali mesmo, encostada na parede, tentando pensar em algo… mas não havia nada em que pensar. Sua mente estava um completo vazio. Conteve uma estranha vontade de chorar acompanhada por um aperto no coração. Não sabia sequer porque sentia aquelas coisas. Depois de algum tempo ali, decidiu finalmente voltar para a cama. Não demorou muito a conseguir dormir novamente.

Quando ela abriu os olhos no dia seguinte, teve a ligeira impressão de que poderia lembrar algo. Falsa impressão. Sua mente era como um completo vazio naquele momento. Não sabia de onde vinha, quem era sua família ou amigos, não sabia sequer o próprio nome. A única coisa que tinha era uma porção de sentimentos confusos que não sabia de onde vinham. Sentia-se extremamente fraca e insegura. A única coisa da qual podia lembrar era daquele homem de longos cabelos dourados que provavelmente lhe ajudara no dia anterior. Podia até achar que era apenas um sonho, ou uma falsa lembrança, mas ainda estava naquele estranho lugar que ele chamara de Santuário. Era a primeira e única lembrança que podia se gabar de ter.

Por mais tempo do que imaginara, ficou sentada na confortável cama de solteiro, apenas fitando o quarto extremamente simples ao redor. Havia apenas as duas camas lado a lado, uma janela alta que permitia a entrada da luz do sol, um criado-mudo entre as duas camas e um armário simples encostado numa das paredes. A porta do aposento estava fechada e por alguns minutos, ela pensou se aquele homem não entraria ali de novo, para ajudá-la, como na noite anterior, que ele parecia ter adivinhado a hora em que acordara. Mas não aconteceu. Apenas depois de muito tempo acordada foi que a morena precipitou-se para abrir a porta e explorar o resto do local.

O corredor em que estava era extenso e largo, ladeado por enormes colunas que sustentavam um teto que ela não conseguia ver, tão alto e encoberto pela escuridão. Andou devagar ao longo do corredor e não demorou a achar um enorme salão, completamente vazio, com extensos caminhos tanto para a esquerda quanto para a direita. Notou que o corredor de onde viera saía entre duas das colunas majestosas que ladeavam o grande salão.

Ao se ver naquele enorme vazio, pensou que teria sido bem mais sensato continuar no quarto na esperança de que alguém aparecesse para lhe guiar. Mas estando ali, não tinha mais certeza se queria voltar.

– Acho que já está um pouco melhor agora.

A voz ecoou no salão e ela olhou ao redor em busca do dono desta. O mesmo loiro da noite anterior estava ali, saindo por um caminho entre duas das colunas no lado do salão exatamente oposto ao que ela estava.

– Eu estou… – respondeu, ainda incerta.

– Venha comigo. – foram as únicas palavras dele antes de se virar e voltar a andar pelo mesmo caminho.

Ele continuava com os olhos estranhamente fechados, e ela começou a achar que ele não podia mesmo enxergar. Antes que a escuridão dos corredores o fizesse sumir por completo, a morena se apressou em correr na direção dele, acompanhando a passos largos por um novo corredor, por alguns minutos, com apenas o som dos passos deles invadindo o ambiente. Depois de uns minutos, o corredor revelou outro salão, bem menor que o anterior, mas mais confortável. Havia um tipo de sala de estar, com um sofá de três lugares, uma poltrona e grandes almofadas espalhadas ordenadamente sobre um bonito tapete. Mais à direita havia um balcão que separava o que parecia ser uma cozinha simples, com vários armários, uma mesa pequena e alguns bancos em volta do balcão.

Ela não teve muito tempo para prestar atenção em todos os detalhes, precisou acompanhá-lo enquanto ele passava direto pela sala e chegava a um terceiro cômodo. Mais uma sala, grande, dessa vez ornamentada com alguns objetos sobre pedestais, umas poucas antiguidades e dois quadros. No centro, havia uma mesa com impressionantes – ela parou para contar – doze lugares.

Apenas um extremo da mesa estava servido com um farto café da manhã, que ela pensou ser quantidade suficiente para mais de uma pessoa, entretanto, havia apenas um prato, um copo, uma xícara e um par de talheres.

– Sirva-se. – o homem disse, cordial, indicando a mesa.

A jovem desviou o olhar da mesa para fitá-lo e notou que os olhos dele continuavam fechados. Antes que ela pudesse responder alguma coisa ou tentar se sentar, ele deu as costas para sair da sala.

– Você não vai… – ela nem precisou completar a questão.

– Não. – foi a resposta que deu rapidamente, antes de desaparecer mais uma vez.

Mais uma vez sozinha, ela encarou a mesa algumas vezes antes de decidir sentar para comer. Não sabia se conseguiria comer sequer um quarto de tudo aquilo, mas devia admitir que estava com fome desde que fora dormir de novo na noite anterior. Queria descobrir se era aquele homem que tinha feito aquilo, e o que ele e aquele tal Santuário realmente eram…

Enquanto ela se servia, Shaka alcançou a entrada da Casa de Virgem para receber o protetor da primeira casa, que já acabava de subir as escadas.

– Posso notar que ainda não a expulsou. E que ela já está consciente. Tem alguma razão específica pra isso? – Mu perguntou, deixando um sorriso discreto surgir nos lábios.

– Ela não tem memória. – Shaka respondeu de imediato, cruzando os braços diante do corpo, deixando escapar um suspiro.

– Não? – o ariano pareceu incrédulo. – Ela não estaria só fingindo? Talvez queira tentar ficar no Santuário… muitas pessoas iriam querer chegar até onde ela chegou.

– Eu pensei nisso. – Shaka virou o rosto na direção do interior da casa. – Mas ela não parece estar mentindo. Quando ela recuperou a consciência ontem, imediatamente quis sair daqui e voltar pra casa.

– Então…?

– Ela parou quando percebeu que não lembrava onde era. – Shaka disse. – Parecia abalada.

– Às vezes as pessoas tendem a reprimir memórias traumáticas. – Mu deu de ombros. – Nas condições que disse a ter encontrado, talvez ela não tenha passado por bons momentos, e agora conseguiu se esquecer de tudo.

– Não é como se isso fosse uma coisa boa. – o virginiano falou.

– Para ela pode ser, meu amigo. – Mu sorriu cordial. – Então, o que vai fazer agora?

– Eu esperava que pudesse me ajudar nisso.

– Shaka, o Cavaleiro de Virgem, considerado o mais próximo de Deus… está pedindo por ajuda? – Mu não conteve a vontade de comentar. – Parece que lidar com mulheres o deixa realmente confuso.

– Não é como se eu fosse expulsá-la do Santuário nas condições em que está. – Shaka tentou ignorar os comentários de Mu, concentrando-se no que faria dali em diante.

– Também não acha uma boa idéia deixá-la na Casa de Virgem. – Mu disse, e nem precisou de confirmação do virginiano para aquela questão. – Poderia levá-la para o campo das amazonas. Talvez ela se sinta melhor lá.

– Pode ser uma boa idéia. – Shaka respondeu, o semblante pensativo.

– Você poderia também falar com a Saori. – Mu também propôs, e viu a testa do virginiano franzir em indignação. Sabia exatamente o motivo: eles não a chamavam pelo nome. – Acalme-se, cavaleiro de Virgem. Eu disse Saori porque realmente me refiro a ela, a herdeira dos Kido. Ela tem poder e influência para descobrir a identidade de uma pessoa.

Shaka ficou calado por uns minutos, como que tentando associar a idéia. Tinha que admitir que fazia muito sentido.

– Pense nisso. – Mu disse, já dando as costas ao virginiano para voltar à primeira Casa Zodiacal.

Shaka ainda ficou parado ali, por algum tempo, até finalmente decidir voltar para a sala onde a deixara. Por mais que pensasse, não conseguia decidir exatamente o que fazer, e todas as alternativas de Mu pareciam plausíveis. Perdido em pensamentos, antes que se desse conta, estava de volta à sala de jantar. Se estivesse com os olhos abertos, teria notado que a garota estava imóvel, apenas fitando a comida. Já tinha se servido de uma boa parte do café da manhã, mas pela absurda quantidade, já estava cheia.

– Terminou? – Shaka perguntou, fazendo a mulher se sobressaltar na cadeira com a súbita presença que lhe passara despercebida.

– Ah… eu acho que sim. – ela respondeu, ainda observando a comida restante.

– Acha? – Shaka arqueou a sobrancelha.

– É que sobrou muita comida, e eu não deveria desperdiçar… mas estou cheia. – ela suspirou pesadamente.

– Não precisa comer tudo.

– Mas você preparou tudo isso pra mim.

Daquela vez, o virginiano arqueou as duas sobrancelhas, e sentiu uma leve vontade de rir daquela idéia. Um cavaleiro de ouro preparando a comida? Parecia engraçado demais.

– Eu não preparei isso, foram os servos.

– Mas eu não vi mais ninguém aqui. – ela afirmou, enfática.

– Não é para serem vistos.

– Ah… – ela fez uma expressão forçada de entendimento. – Que tipo de lugar é esse?

– Este é o Santuário de Athena. – Shaka respondeu, categórico, como se apenas aquilo pudesse esclarecer as dúvidas da jovem. Entretanto, não estava interessado em responder as perguntas dela, mas em receber as respostas. Ele sentou-se numa das cadeiras vagas, exatamente de frente para a garota. – Você ainda não consegue se lembrar de nada?

– Se está se referindo ao meu próprio nome… ou de onde eu vim, ou como estava naquele estado… – a morena se recusava a encarar o cavaleiro, e não via muita necessidade naquilo, desde que ele mantinha os olhos sempre fechados. – Não me lembro de nada. Sinto muito.

– Então lembra outra coisa? – Shaka perguntou, notando que ela especificava o tipo de lembranças que não tinha.

A resposta demorou a vir, e o silêncio tomou conta da sala por algum tempo.

– Eu só consigo… lembrar de sentimentos ruins. – ela desviou os olhos para longe, em algum ponto da sala que fosse tomado pela escuridão. – Para cada passo que eu dou… para cada tentativa de lembrar qualquer coisa… só consigo ter sentimentos ruins.

Shaka não comentou nada, ainda pensativo. Estava esperançoso de que houvesse qualquer lembrança na garota para que ela pudesse sair dali, voltar para casa ou para qualquer pessoa que conhecesse, mas as coisas não pareciam nada simples.

– Se você só… me mostrar a saída, eu posso dar um jeito. – ela fechou a mão com força. Sabia de longe que estava atrapalhando ali, e mesmo que tivesse aquele terrível sentimento de insegurança constante, tinha uma vontade imensa de voltar para casa. Não conseguia entender onde suas lembranças sobre seu lar tinham ido parar, e porque tinham sumido, mas sentia que era o que mais precisava na vida… apenas voltar pra casa.

– Dar um jeito como? – a pergunta de Shaka parecia livre de qualquer ironia, embora a garota tentasse procurar aquilo. – Você não tem memórias, não há como eu simplesmente lhe mostrar a saída e esperar que dê um jeito nas coisas.

– Eu só queria… poder voltar para casa. – ela confessou, baixando mais a cabeça, sentindo-se ligeiramente aliviada por ele não ter-lhe mandado embora.

– Você vai, assim que souber onde fica. – Shaka respondeu, apoiando o queixo nas mãos, pensativo.

Mais uma vez o silêncio tomou conta da sala, enquanto a garota tentava comer mais uma torrada com geléia.

– Este lugar em que está é um lugar sagrado. – Shaka começou a falar, e a mulher voltou a atenção completamente para ele. – Como lhe disse antes, é o Santuário de Athena. Esse Santuário é completamente desconhecido ao resto do mundo, apenas aqueles que são treinados como cavaleiros da Deusa e os moradores do vilarejo além dos limites deste templo sabem de sua existência. Eu sou um dos 88 cavaleiros defensores de Athena, o Cavaleiro de Ouro de Virgem. Além dessa casa em que você está, existem mais onze destinadas aos outros cavaleiros de ouro, que se referem a cada uma das constelações zodiacais. Essas doze casas protegem o Salão do Grande Mestre, líder dos 88 cavaleiros, e o Templo de Atena, onde a Deusa vive.

– Você quer dizer… a verdadeira Deusa? – a morena piscou, não acreditando que aquilo tudo pudesse ser realmente verdade.

– Não poderia ser outra. – Shaka respondeu. – Todos os cavaleiros são protegidos pelas 88 constelações. Nesse Santuário, residem aspirantes, amazonas e cavaleiros de bronze e de prata, além dos 12 cavaleiros de ouro. Nós treinamos incansavelmente para garantir a segurança de Athena.

– Eu não deveria estar aqui então… – ela deixou a comida de lado. Estava mais que óbvio que aquele era o último lugar em que deveria estar. Não que desejasse aquilo, simplesmente não tinha alternativa.

– Você não tem outro lugar para ir. – Shaka disse, levantando-se e parando por uns minutos, antes de decidir se virar para sair da sala. – Por enquanto, acho que aqui tem tudo o que precisa. Se tiver fome, pode se servir, se tiver sono, descanse.

Ele andou até a saída da sala, ainda pensativo sobre o que deveria fazer primeiro, se deveria simplesmente mandá-la para o campo de treinamento das amazonas, ou se deveria falar com Athena para tentar descobrir alguma coisa sobre a identidade dela, ou se simplesmente a deixaria ali, na Casa de Virgem, até que ela conseguisse recobrar alguma memória – aquela era definitivamente a última de suas opções.

– Er… Sha… Cavaleiro de Virgem. – ela levantou-se quase de súbito, chamando-o antes que ela pudesse desaparecer pelo portal. Shaka parou de andar, mas não se virou completamente para encará-la, apenas virou levemente o rosto para que ela entendesse que ele estava ouvindo, o que quer que ela tivesse a dizer. – Obrigada. Eu ainda não tinha agradecido pelo que fez por mim. Obrigada, por salvar minha vida.

Shaka não sentiu necessidade de responder, apenas voltou o rosto para frente e continuou a andar. Precisava apenas de tempo sozinho, para pensar em tudo. Nada melhor do que se trancar por algumas horas em sua sala de meditação.

O cavaleiro de Virgem ainda respirou fundo ao chegar à sua sala de meditação. Não gostava de ter problemas demais em sua mente, e aquele era o melhor jeito de resolver tudo, meditando por um bom tempo. Assim conseguiria chegar a uma conclusão, finalmente sobre o que fazer.

Ainda na sala de jantar, a garota estava completamente perdida. Não sabia para onde ir, o que fazer ou sequer pensar. Agora que Shaka tinha lhe contado um pouco mais de detalhes sobre aquele lugar, sabia que não poderia ficar ali muito tempo, mas infelizmente não tinha idéia de como chegara lá. Depois de vários minutos sentada ainda à mesa de jantar, decidiu se levantar e explorar um pouco mais o lugar. Voltou pelo caminho que Shaka tinha mostrado, até chegar àquele enorme salão que ela suspeitava ser o centro da enorme casa. Como havia um caminho para ambos os lados, decidiu seguir pela direita, no mais largo corredor que tinha visto na casa. Aliás, aquela parte parecia mais um caminho de verdade do que os caminhos mais estreitos e escuros que levavam até as salas e ao quarto onde estivera. Andou cerca de dez minutos até que conseguisse ver a luz do sol iluminando a casa, e parecia vir de uma entrada muito grande.

Ela precisou piscar os olhos várias vezes quando chegou na plataforma de entrada da Casa de Virgem. Se ainda havia alguma dúvida sobre a veracidade do que Shaka lhe falara sobre aquele tal Santuário, tinha sumido por completo. Para além do lugar onde ela estava, conseguia ver incontáveis lances de escada que ligavam mais casas com aspecto de templos gregos antigos. Para qualquer lado que olhasse, conseguia ver rochas e mais rochas, como se aquilo fosse deserto, mas do seu lado direito havia sinais de uma floresta, e mais ao longe, podia ver o que deveria ser o vilarejo que o cavaleiro comentava. Podia contar cinco casas abaixo da que estava, portanto, ainda havia mais seis se ela seguisse até o outro lado da casa de Virgem, provavelmente. E se alcançasse a última casa, aí sim poderia ter uma vista mais ampla e detalhada do local. Mas claro que ela não se atreveria a tentar subir todas aquelas casas e encontrar com os outros tais protetores. Simplesmente sentou-se na beira da plataforma, encostada numa das colunas, apenas sentindo a brisa leve da manhã, sob a sombra da enorme casa. Pela primeira vez, teve vontade de sorrir… estava sentindo-se tranqüila ali, longe de tudo e de todos, em paz. Diferente da maioria dos sentimentos que a estavam perseguindo desde que recobrara a consciência na noite passada.

– Esse é um bom lugar… – deixou que as palavras escapassem de seus lábios, fechando os olhos para descansar.

– Ah… então deve ser você a nova moradora da Casa de Virgem.

A voz nova fez com que a garota se sobressaltasse, sentindo o coração acelerar e um medo crescente invadir seu peito. Abriu os olhos assustada, dando de cara com uma figura incrivelmente incomum, que definitivamente não parecia daquele mundo, não naquela armadura tão reluzente.

– Não precisa ter medo. – ele sorriu gentilmente e ela sentiu o coração se acalmar um pouco.

– Você me… assustou um pouco. – a morena respondeu, respirando profundamente para se recuperar. Apenas ali parou para observar o homem diante de si. Ele tinha longos cabelos lilases e olhos de mesma cor, estava usando um tipo de armadura simplesmente magnífica com um brilho dourado que ela tinha certeza, mesmo se tivesse memórias, jamais teria visto tal brilho antes.

– Ainda parece muito abatida. Shaka não lhe deu comida? – ele perguntou, divertido, aproximando-se da mulher ainda sentada. – Posso me sentar?

– Claro. – ela concordou, cruzando as pernas em posição de lótus. As roupas ainda eram as mesmas, completamente sujas e surradas, o que a fez se sentir um pouco mais incomodada. – Eu já tomei café da manhã… e comi muito bem, tinha muita comida.

– Isso é bom. – ele disse. – Eu sou Mu, Cavaleiro de ouro de Áries. Eu protejo a primeira Casa Zodiacal. Shaka lhe falou alguma coisa sobre o Santuário?

– Sim, ele me disse alguma coisa. Acho que só acreditei quando cheguei aqui fora. – ela olhou para frente, tentando observar a primeira Casa do Santuário.

– Deve ser difícil mesmo. – Mu falou. – Você não se lembra de nada ainda?

– Você… como sabe?

– Oh. Muito rude da minha parte. – o ariano riu. – Todos aqui sentiram quando você chegou à Casa de Virgem. Mas acho que só eu vim até aqui para descobrir com Shaka o que tinha acontecido. Ele me disse hoje que você não se lembra de nada.

– Infelizmente, acho que não lembro mesmo de nada. – ela confirmou. – Nem posso me apresentar direito.

– Você parece muito nova, não se preocupe, vai lembrar logo de tudo. Sua família deve estar muito preocupada agora.

– Eu não sou nova. – ela respondeu automaticamente, apenas para depois notar que sequer lembrava a própria idade. – Eu acho. Mas espero que minha família esteja mesmo preocupada.

– Eles estão. E logo vai se lembrar deles. – Mu sorriu cordial, levantando-se.

– Eu posso perguntar o que é essa… armadura que está usando? – não conseguiu conter a curiosidade, ao ver que provavelmente o outro homem estava de saída.

– Ah… isso… bom, nós cavaleiros lutamos muitas batalhas perigosas. É mais que justo que tenhamos algo para nos proteger. Essa é a armadura de ouro de Áries, protege cada novo cavaleiro desse signo. – Mu respondeu prontamente.

– Então existe uma armadura para cada cavaleiro?

– Sim.

– O cavaleiro de Virgem me disse que são 88 cavaleiros, e que doze de vocês são cavaleiros de ouro. Isso quer dizer que os outros têm armaduras diferentes? – continuou a perguntar, sentindo uma curiosidade crescente sobre aquele local.

– Muito curiosa você. – Mu sorriu, e viu a feição dela ficar preocupada, mas logo respondeu antes que ela tentasse se desculpar por aquilo. – Isso deve ser uma coisa boa. Talvez você lembre mais rápido de onde vem. Mas bom… são sim 88 cavaleiros que defendem Athena. Cada um corresponde a uma constelação. Apenas doze dessas constelações estão na linha do sol, e o ouro representa o brilho dele. As demais se dividem em armaduras de prata e de bronze.

– É um tipo de hierarquia, então.

– Exatamente. – Mu respondeu. – Bom, eu preciso ir agora.

– Claro… vamos nos encontrar de novo? – ela perguntou, sentindo-se mais confortável na companhia do ariano.

– Eu espero que não. – Mu respondeu, e viu o leve arregalar nos olhos dela, para depois completar, sorridente. – Estou de viagem para fora do Santuário por uns dias, então, espero que na volta não esteja aqui… isso vai significar que recuperou a memória e voltou para seus pais. Espero encontrá-la de novo quando puder me dizer seu nome.

– Eu espero o mesmo também. – ela sorriu tranqüila depois da resposta dele. – Boa viagem então, cavaleiro de Áries.

– Mu. – ele corrigiu, antes de desaparecer dentro da casa de Virgem.

Quando ele desapareceu, ela voltou a fechar os olhos para descansar. Todo aquele lugar lhe dava uma sensação confortável, inclusive as pessoas que moravam nele. Mu era muito mais amigável que Shaka e certamente seria bom ficar algum tempo com ele e conversar mais para saber sobre o Santuário. Mas mesmo que seu salvador fosse tão fechado, ela também conseguia se sentir extremamente calma e tranqüila ao lado dele, mesmo que ele não falasse nada. Era o tipo de sensação que não conseguia ter sozinha. Mesmo que aquele lugar lhe desse paz, ainda tinha um tipo de sensação angustiante em seu coração.

Depois de vários minutos tentando se sentir calma, percebeu que quanto mais mantinha os olhos fechados, pior aquela sensação ficava, e depois de um tempo, precisou se levantar com urgência e entrar na casa. Queria achar de novo o cavaleiro de Virgem, e talvez se sentisse melhor com ele por perto, mesmo que ele não lhe falasse nada. Queria apenas saber que tinha alguém ao seu lado, para se sentir segura.

Ela andou pelo longo corredor apressada. Olhou na sala de estar, na cozinha, na sala de jantar. Voltou para o corredor em que estava o seu quarto, rezando para não se perder, mas também não achou o virginiano. A passos mais apressados, voltou para a outra ala da casa, e precisou andar por longos minutos até achar finalmente um outro salão, bem menor, mas sem portas ou paredes, apenas envolto por aquelas colunas e corredores ocultos pela sombra. Ela não sabia de onde vinha a iluminação da casa, mas ficou extremamente aliviada quando viu que o loiro estava ali, sentado calmamente sobre uma pequena plataforma elevada, numa almofada vermelha, em posição de lótus e com os olhos devidamente fechados, as mãos pousadas elegantemente sobre as pernas. Sem a menor intenção de atrapalhá-lo, encostou-se calmamente na coluna, escorregando até sentar-se no chão, respirando aliviada. Esperava que seus passos não tivessem atrapalhado o virginiano, mas mudou de idéia quando a voz calma dele invadiu seus ouvidos.

– Alguma coisa errada? – ele saiu da posição de lótus para andar lentamente até onde ela estava.

– Me… me desculpe. Eu não achei que atrapalharia. Eu sinto muito. Meus passos devem ter feito barulho e… – ela parou de falar quando ele estava perto o suficiente para se abaixar e ficar com o rosto a mais ou menos um metro de distância.

– Você está chorando. – o loiro falou, levantando a mão para tocar o rosto dela, mas parando o movimento poucos centímetros antes de tocá-la.

Ela arregalou os olhos de leve. Não sabia o que era mais surpreendente ali, o fato de ele saber que ela estava chorando mesmo que não tivesse aberto os olhos por um segundo sequer, ou se o fato de sequer ter percebido que tinha começado a chorar…

– O que aconteceu? – Shaka perguntou, desistindo completamente da idéia de tocar o rosto da garota, baixando a mão.

– N-não aconteceu nada. – ela respondeu, levantando uma das mãos para limpar o rosto. Havia tantos rastros de lágrimas, e ela não tinha notado sequer a primeira. – Eu sinto muito por ter atrapalhado.

Ela rapidamente se levantou, arrastando as costas na coluna em que estava encostada, para não se aproximar mais do homem. Sem nem esperar que ele respondesse ou ao menos tivesse chance de se levantar, ela deslizou para o lado e deu um passo largo, já para começar a correr e sair dali. Não sabia onde estava com a cabeça para correr tão desesperada pela companhia do homem, só não conseguia se sentir bem completamente sozinha. Sua tentativa de fugir foi frustrada, quando sentiu seu pulso sendo segurado e puxado para trás delicadamente.

– Você não está se sentindo bem. – Shaka disse. – Acho que precisa de um copo de água, pra se acalmar.

– É, acho que sim. – ela respirou fundo e sorriu, mais calma. – Eu vou buscar. Acho que você quer voltar a meditar…

– Eu vou buscar. – ele se prontificou, passando pela mulher e soltando seu pulso. – Venha.

Ela não respondeu, apenas andou mais rápido para acompanhá-lo, internamente aliviada por ele ter decidido acompanhá-la.

Mais uma vez houve silêncio no caminho até a cozinha. Ali, a mulher teve certeza de que havia algo de diferente quando estava na companhia do cavaleiro. Por mais que tudo parecesse vazio, sabia que ele estava ali, e talvez por ele ter salvado a sua vida, tivesse aquela impressão de segurança tão forte.

Quando chegaram à sala de estar, ele mandou que ela esperasse, sentada, para voltar incrivelmente rápido com o copo de água, tão rápido que ela não sabia se aquilo seria fisicamente possível.

– Obrigada. – ela agradeceu, apressando-se em tomar pelo menos uns poucos goles da água.

– Acho que você precisa de um banho, e de roupas limpas. – Shaka falou, acenando a cabeça na direção em que ela estava sentada, no sofá maior.

Ela não respondeu, olhando para as condições miseráveis de suas roupas, ainda sujas de sangue e de terra e também rasgadas. Não tinha tomado um banho sequer e estava começando a se sentir realmente suja. Só não sabia ainda como ele deduzia tudo aquilo com os olhos fechados.

– Eu não tenho roupas próprias para mulheres aqui. – o virginiano falou. – Vou arrumar umas roupas limpas para você.

– Não precisa… eu posso dar um jeito nessas… – ela disse, observando as condições miseráveis das roupas.

– Você acha que pode dar um jeito em muitas coisas. – o loiro respondeu. – Não pode estar usando essas roupas para encontrar Athena.

– Encontrar… Athena? – a morena quase deixou o copo escapar por entre suas mãos, arregalando ligeiramente os olhos. – Por que eu tenho que encontrar Athena?

– Ela pode ajudá-la a encontrar sua família. Acho que é melhor ir encontrá-la antes de tudo. – Shaka deu uns passos na direção da saída, e instintivamente a mulher se levantou.

– Er…

– Venha. Vou lhe dar roupas novas e lhe mostrar o banheiro. – Shaka disse, para que ela pudesse segui-lo.

Ele mostrou mais cômodos que ela desconhecia e a mulher começou a imaginar que aquela casa era bem maior do que parecia, e escondia muito mais coisas do que poderia pensar. Ele mostrou onde ela podia tomar banho e lhe deu roupas dele mesmo. Eram bem maiores do que ela, mas a jovem ficou feliz de tirar aqueles trapos que estava usando. Ela precisou amarrar uma faixa na cintura para que a camisa grande não ficasse extremamente larga, e ainda teve que dobrar praticamente metade das pernas das calças para poder pisar no chão sem pisar o tecido. Ainda usava uma sandália simples de amarrar nas pernas que calçava desde que chegara ali. Elas estavam sujas, mas inteiras. Depois de estar completamente arrumada e limpa das marcas de terra e sangue que tinha no corpo, notou que estranhamente não tinha cortes ou ferimentos de onde aquele sangue pudesse ter saído, havia apenas alguns hematomas que estavam começando a se curar. Depois de amarrar os cabelos longos com uma fita, finalmente saiu do banheiro para andar pelo longo corredor até o salão principal da casa. Precisou parar e piscar os olhos mais de duas vezes para acreditar no que estava vendo.

Shaka estava ali, parado exatamente no meio do salão. Mas não estava com aquelas roupas simples de aspecto indiano, e geralmente brancas. Estava extremamente altivo, com uma armadura dourada que lembrava a de Mu, embora fosse bem diferente em sua estrutura, e ela devia admitir, combinava perfeitamente com ele.

– Athena está esperando… vamos? – ele estendeu a mão elegante na direção do outro lado da casa, onde ela sabia que dava para o resto das casas zodiacais.

A garota apenas acenou a cabeça positivamente e andou rapidamente na direção de Shaka. Quando chegaram ao outro lado da casa e ele já estava seguindo pelo lance de escadas até a Casa de Libra, ela hesitou, e o movimento não passou despercebido ao virginiano.

– O que foi?

– Não foi… nada. – ela respondeu, colocando as mãos sobre o colo, apressando o passo para ficar mais perto do cavaleiro de ouro. Chegar até a entrada da casa era uma coisa, sair para um lugar completamente desconhecido, era completamente diferente. E mais uma vez, ela se sentiu completamente insegura por andar por ali.

– Eu estou aqui. – o virginiano falou de uma maneira tão instintiva que ele mesmo não soube quando moveu os lábios para pronunciar as palavras, e a garota ainda se impressionou ao ouvir as palavras, mas se deixou sorrir confortável com aquilo.

O caminho não parecia nem um pouco cansativo para ele. Mas apenas ao fim do primeiro lance de escadas, ela já estava duvidando se conseguiria alcançar o topo do Santuário. A cada nova casa que chegou, conheceu novos cavaleiros, alguns deles usando suas armaduras reluzentes, outros usando roupas normais depois de treinar. Alguns lembravam Shaka, outros Mu, e outros tinham personalidades bem diferentes, como o cavaleiro de Escorpião, que tinha um ar de garanhão, e o cavaleiro de Peixes, que tinha um ar meio feminino. Havia também uma casa que não tinha protetor, e depois de uma pergunta que deixou escapar acidentalmente, Shaka respondeu que o último cavaleiro de Sagitário tinha morrido havia mais de dez anos, para proteger Athena.

Quando ela chegou à décima terceira casa, já estava sentindo falta de ar de tantos lances de escadas e casas enormes para atravessar. E ainda imaginava se conseguiria voltar todos aqueles lances e ainda estar viva para contar história. O mais impressionante, era que não tinha uma gota de suor sequer no rosto do loiro, e ele também nem estava ofegante. Ela quase deixou escapar um "finalmente" ao chegar à plataforma do Salão do Grande Mestre.

O novo templo era um tanto quanto diferente dos anteriores. Tinha as tradicionais colunas emoldurando a entrada, mas havia paredes visíveis enormes e brancas. Na entrada, havia duas portas gigantescas, e dois homens que não pareciam cavaleiros, na verdade, pareciam servos, os tais que Shaka comentara mais cedo.

Eles prontamente abriram as portas quando o cavaleiro se aproximou e a mulher decidiu se esconder mais atrás da armadura e da capa do virginiano. Ao entrarem no enorme salão, Shaka parou ao meio dele tão rápido que ela quase bateu de frente com as costas dele. Precisou dar um passo ao lado para saber o que havia à frente e se arrependeu ao ver o homem que estava sentado numa cadeira no topo de um pequeno lance de escadas, vestido numa enorme bata branca com detalhes dourados, e um elmo também dourado que deixava a vista apenas parte do seu rosto. Os cabelos tinham um tom azulado e caíam por sobre os ombros. Percebeu como eram longos quando ele se levantou.

– Athena já está esperando. – ele anunciou e a voz era bem grave, fazendo um gesto para indicar as portas que haviam do lado direito da sala. – Vocês podem entrar.

Shaka acenou a cabeça positivamente e andou até a sala ao lado, abrindo as portas. O homem mascarado ainda seguiu a nova garota com o olhar até que ela entrasse na nova sala, seguindo Shaka. Mais uma vez, ela precisou parar de súbito, mas o cavaleiro não tinha apenas cessado os passos, tinha também se ajoelhado numa reverência extremamente exagerada. Ela olhou ao redor para saber por que ele tinha feito aquilo, e percebeu que a sala parecia bem comum para uma casa normal, com sofás, uma mesa, algumas estantes. A alguns passos de distância deles, uma garota tinha acabado de se levantar de uma cadeira à uma mesa com tampo de vidro. Ela era um pouco mais baixa do que a morena, tinha os cabelos longos lilases e olhos de mesma cor. Estava num vestido branco simples, que alcançava seus pés. Parecia extremamente nova. Mas o mais curioso era a reação de Shaka ao vê-la. Será que era ela a Deusa? Mesmo sem resposta, ela decidiu se curvar também, embora um pouco menos exagerada do que Shaka, apenas abaixando a cabeça e evitando encará-la nos olhos.

– Pode se levantar, Shaka de Virgem. – Saori disse, se aproximando dos dois. – Você deve ser a nova convidada do Santuário.

– Eu… acho que sim. – ela respondeu, desviando o olhar de Shaka, que acabava de se levantar, para pousar sobre a garota que já estava perto o suficiente de si.

– Eu sou Saori Kido. – a dona dos cabelos lilases sorriu cordial. – Pode me chamar só de Saori. Venha, sente-se comigo.

Shaka apenas acenou a cabeça de maneira positiva quando ela o olhou, confusa. Não sabia exatamente o que fazer ali naquela situação.

– Acompanhe-nos também, Shaka. – Saori disse, mas ele prontamente recusou.

– Eu ficarei aqui, obrigado, Athena. – acenou com a cabeça para responder.

– Eu imaginei que sim. – a garota sorriu de novo, e não teve chance de ver a expressão estupefata da convidada. – Às vezes eu até me sinto incomodada com esse excesso de cuidado que os cavaleiros têm diante de mim. – ela confessou, quando as duas já estavam acomodadas no sofá.

– Você é mesmo… quer dizer, Athena? – a morena perguntou, extremamente curiosa, não se importando realmente se estava sendo muito rude.

– Não pareço, não é? – Saori disse, olhando para si mesma. – Eu tenho só quinze anos de idade. Descobri tudo isso há pouco mais de dois anos. É muito estranho, mas a gente se acostuma com o tempo.

– Imagino que sim.

– Shaka veio aqui mais cedo para pedir minha ajuda, para encontrar a sua família. – Saori disse, finalmente entrando no assunto importante. – Sei que vai ser meio redundante perguntar isso, mas não consegue se lembrar de nada mesmo?

– Nada. – ela confirmou, com um sorriso triste nos lábios. – A única coisa da qual tenho certeza é que… quero voltar pra casa. Deve parecer estranho, já que alguma coisa ruim deve ter acontecido para eu me esquecer de tudo, mas sinto que mais do que tudo, preciso voltar para casa.

– Nós vamos encontrar sua família. Eu vou fazer de tudo pra isso. – Saori disse, colocando uma das mãos sobre as mãos juntas dela. – Por enquanto, aceite a nossa hospitalidade. Eu a convidaria a ficar aqui comigo, mas eu sempre viajo muito por conta das empresas do meu avô, então, estaria sempre sozinha aqui. Tenho certeza que Shaka vai ajudá-la a achar o melhor lugar.

– Sem dúvidas, Athena. – Shaka confirmou, ao sentir o olhar da garota sobre si, como se fosse um tipo de ordem que tivesse de obedecer, embora ele quisesse fazer aquilo de bom grado.

– Muito obrigada pela sua ajuda. – a morena sorriu em resposta, parecia que aquele não era um mau lugar de todo. Todos eram tão gentis. – Eu vou dar um jeito de retribuir.

Shaka conteve um sorriso de lado quando ouviu aquilo. Era a terceira vez já que ela dizia que ia dar um jeito em alguma coisa, e nunca era uma boa proposta.

– Você não precisa. – Saori disse, se levantando de novo. A morena quase acompanhou o movimento dela, se ela não tivesse a impedido. – Eu acho que o que você precisa agora é de umas roupas novas. Acho que as roupas de Shaka ficaram um pouco grandes para você.

– Bom… eu… – ela ficou extremamente corada ao lembrar-se do tamanho da roupa que estava vestindo, e o vestido simples de Saori era extremamente elegante. Não queria concordar para dar mais trabalho, mas também não podia discordar, já que as suas roupas antigas estavam impossibilitadas de serem usadas.

– Eu vou arrumar algumas roupas para você. Você é um pouco mais alta que eu, mas deve servir, embora eu seja mais acostumada a usar vestidos, espero que não se importe. – Saori disse já dando a volta no sofá para seguir a uma porta do lado oposto da sala.

– Não tem importância. – ela rapidamente acenou com as mãos, antes de Saori desaparecer pela porta.

O silêncio permaneceu na sala por algum tempo, até que Saori voltasse, com algumas roupas cuidadosamente dobradas em suas mãos. Os tons eram sempre muito claros e praticamente perto de branco. Teve apenas uma leve impressão de que uma das roupas podia ser azul claro, mas as outras pareciam mais bege e salmão.

– Fique com essas por enquanto, se precisar de alguma coisa, não hesite em me procurar. – Saori disse, deixando a pequena pilha de roupas sobre os braços dela.

– Muito obrigada.

– Eu gostaria de ficar mais tempo conversando, mas logo terei que fazer uma viagem ao Japão. Então, sinta-se em casa. – a deusa sorriu cordial, quando a sua convidada se levantou, meneando a cabeça levemente em acordo. – Ah… eu sei que não consegue se lembrar de nada, então, seria bom pensar num nome, talvez? Por mais que fique aqui muito ou pouco tempo, não podemos chamá-la sempre de "você".

– Eu vou me lembrar disso. – a morena sorriu mais largamente. – Um nome.

– Isso mesmo. Então, eu fazer o possível para descobrir qualquer coisa sobre você, não se preocupe. Até mais ver. – Saori acenou, quando a mulher andou na direção em que Shaka estava. – Cuide bem da nossa convidada, Shaka de Virgem.

– Cuidarei, Athena. – Shaka concordou, fazendo mais uma exagerada reverência para poder abrir as portas para saírem.

A mulher apenas acenou de volta para Saori e saiu, acompanhada de Shaka do mesmo jeito como tinha entrado.

Ela precisou suspirar demoradamente quando viu a quantidade de lance de escadas que tinha que descer daquela vez. Bom, pelo menos estava descendo, devia ser um pouco mais fácil. Mas a quantidade não ajudava em nada. Enquanto cruzava o caminho entre as seis casas zodiacais até a Casa de Virgem, ficou pensando em algum nome que poderia ter provisoriamente. Poucas opções surgiram em sua cabeça, e ela chegou a achar que era uma coisa boa, talvez estivesse lembrando apenas de nomes importantes. Mas não tinha um que realmente lhe agradasse.

Apenas ao cruzarem todas aquelas casas e alcançarem Virgem, ela notou que estava bem mais cansada e mais suada também, embora Shaka continuasse com uma figura impecável sem ao menos uma gota de suor escorrendo pela testa. Foi apenas ao sentir o crescente calor que fitou sua sombra e imaginou que toda aquela caminhada tinha durado demais, a ponto de estarem no horário do almoço já. Sentiu-se extremamente aliviada ao colocar os pés sobre a plataforma de entrada da Casa de Virgem. Suspirou demoradamente.

– Deve estar cansada. – Shaka disse, parando depois de uns passos para se virar para a mulher.

– Um pouco. – mentiu. Ela estava simplesmente exausta. Queria tomar um longo banho e cair na cama para descansar o resto do dia. Imaginou que se tivesse ficado em alguma outra casa mais longe, teria morrido com a caminhada longa.

– Você está exausta. – ele corrigiu, o que fez com que ela corasse. Estava começando a ficar feliz por ele estar sempre com os olhos fechados para não poder ver aquilo, mas estava ficando curiosa também, se ele era cego ou se era alguma coisa daqueles cavaleiros ficarem com os olhos fechados. Embora todos os outros que vira estivessem de olhos bem abertos. – O almoço vai ser servido logo, quer ir logo almoçar?

– Hm… acho que vou tomar um banho primeiro. – ela estava começando a se sentir incomodada com o suor escorrendo por sua testa e também estava achando aquilo nojento. Mas ainda estava impressionada que mesmo naquela armadura enorme, ele não tinha uma gota de suor ou um sinal de que estava com calor.

– Faça como achar melhor. – Shaka acenou com a cabeça e se virou, fazendo a capa balançar elegantemente com o movimento rápido.

Ela ficou fitando a figura masculina desaparecer por alguns minutos, até finalmente sair de seus devaneios e andar na direção em que lembrava estarem alguns quartos e o banheiro em que tomara banho mais cedo. Agora que tinha algumas roupas emprestadas por Saori, não precisaria ficar puxando as mangas cumpridas da camisa a cada cinco segundos.

A mulher tomou banho o mais rápido que pôde. Estava cansada da caminhada, certamente, mas estava mais esperançosa que no almoço ele pudesse estar lá com ela, lhe fazer companhia na refeição pelo menos, e não queria se arriscar a chegar lá e descobrir que ele já tinha terminado. Colocou o primeiro vestido da pilha de roupas, bem simples e branco, chegava à metade das suas canelas, já que era um pouco mais alta que Saori, mas todas as outras medidas estavam boas, considerando-se como ela estava ainda extremamente magra.

Em menos tempo do que podia imaginar, chegou à sala de jantar, e surpreendeu-se em ver que a mesa já estava posta. Ficou contente ao notar também que não havia apenas um prato, mas dois, e que o virginiano ainda não tinha chegado ali.

Ia se adiantar e sentar no lado direito da mesa, afinal, o outro prato estava posto num dos extremos e aquele definitivamente era o lugar do dono da casa, mas parou o movimento ao ouvir a voz conhecida invadindo o ambiente.

– Você foi rápida. – Shaka disse, mais casualmente do que de costume. Estava de volta em suas roupas indianas, com uma calça simples e uma camisa de mangas curtas, com uma faixa na cintura. Os cabelos dourados estavam molhados ainda, o que deu certeza de que ele também tinha acabado de sair do banho. – Pode se sentar e se servir.

Ela fez exatamente o que ele disse, e mesmo que ele continuasse de olhos fechados, desviou o rosto, com a pele corada. Quando ela parava realmente para prestar atenção, ele era um homem muito bonito e atraente. Daquela vez, ele a acompanhou na refeição, mas ela não esperava mais do que a companhia dele mesmo, e não se incomodou ao todo com o silêncio da sala sendo quebrado apenas pelo toque dos talheres nos pratos. Depois de um tempo foi que ela não conseguiu conter a curiosidade crescente.

– Posso perguntar uma coisa? – perguntou, descansando os talheres por um segundo.

– Acabou de perguntar. – ele responde simplesmente, depois de tomar um gole do suco. – Pode perguntar outra.

– Você… não pode ver? – a morena finalmente deixou a pergunta escapar, procurando uma expressão melhor para não ter que perguntar se ele era cego.

– Eu posso ver. – o loiro afirmou unicamente, deixando espaço suficiente para que ela completasse o questionamento.

– Então por que está sempre de olhos fechados? E como mesmo assim parece que está enxergando tudo?

– Você disse uma pergunta. – Shaka não pareceu se alterar ou coisa parecida diante do questionamento, simplesmente continuou sua refeição calmamente.

– Ah, me desculpe. Sinto muito. – ela sentiu o rosto corar ainda mais e fez o mesmo que ele, voltando a se concentrar em terminar a refeição.

Alguns minutos a mais se passaram, até que a voz dele voltasse a quebrar o silêncio.

– É parte do meu treinamento.

– Ahn? – ela quase deixou o garfo cair ao perceber que ele tinha falado.

– Meus olhos. Parte do meu treinamento é me privar de um sentido para que eu consiga acumular um cosmo maior e mais forte para as batalhas e técnicas especiais. – Shaka completou, mas a morena ficou calada, e ele sabia que ela continuava curiosa, mas estava receosa depois que ele ficara sem responder a pergunta. – Eu consigo agir e andar normalmente porque meus outros sentidos são aguçados, e posso sentir a presença das coisas ao meu redor, principalmente de pessoas, por conta do cosmo. É como se a imagem das pessoas se formasse em minha cabeça de um ponto de luz que representa o cosmo delas.

– Cosmo? – a garota não conseguiu evitar que a pergunta escapasse.

– Cosmo é o nome que damos a energia que cada ser humano emana. É como um pequeno universo dentro de cada um que pode se expandir com o treinamento certo. Nós cavaleiros usamos o cosmo para lutar, a explosão dele faz com que tenhamos força e velocidade incomparáveis. – Shaka explicou, para voltar a sua refeição e finalmente terminar.

– Oh… – ela não soube se dava pra acreditar naquilo mesmo, e estava até curiosa para saber o tamanho daquela força e velocidade. Mas depois de ver o lugar inteiro, e de ver as armaduras, era difícil não acreditar em qualquer coisa que eles lhe contassem. Aquele lugar parecia mais do que irreal.

– Eu queria levá-la ainda hoje ao campo de treinamento das amazonas, mas parece cansada da caminhada. – Shaka disse de repente. – E o campo fica além do coliseu, teríamos que descer todas as escadas do Santuário.

– Campo de treinamento das amazonas? – ela questionou. – Por que eu tenho que ir lá?

– Você vai ficar lá enquanto não recupera a memória. – a garota sentiu um aperto no peito ao ouvir aquilo. Por que exatamente precisava sair dali? Bom, não podia reclamar da hospitalidade, devia apenas ficar onde eles achassem melhor, definitivamente. – Só há mulheres lá, vai ter mais companhia e provavelmente se sentir mais confortável.

Ela não precisou concordar, apenas levou mais uma poção da comida à boca para ter um pretexto para não responder aquilo.

– Eu a levarei amanhã. Descanse hoje. – Shaka se levantou e seguiu na direção da saída da sala, sem se preocupar em se despedir.

Quando ele estava fora do seu campo de visão, a morena suspirou demoradamente. Deixou o resto da comida de lado e ficou pensativa. Não devia estar se sentindo daquele jeito por uma coisa tão simples. Ela não tinha casa e não tinha memória, estava recebendo toda a ajuda possível, não tinha do que reclamar. Ficando ali ou com as amazonas, devia apenas estar feliz por estar viva e poder voltar para casa um dia. Mas ainda assim, sentia-se incomodada por ter que ir. Sentia-se insegura também. Quando se passou tempo suficiente e ela viu que já estava sozinha havia muito, levantou-se e andou até o outro lado da casa. Precisava deitar e descansar um pouco, relaxar antes de fazer uma cena como a daquela manhã, quando procurava por Shaka e acabou chorando sem mesmo notar ou saber o motivo.

Não demorou nem dez minutos deitada na cama, já conseguiu adormecer, de tão cansada que estivera da caminhada até a última casa do Santuário, ida e volta. Se arrependeu amargamente daquilo quando acordou ainda no meio da noite. Estava frio, estava silencioso, estava sozinha no quarto. Rodou na cama por mais de vinte minutos até decidir se levantar e andar pela casa. De certo que não ia procurar Shaka, precisava lidar com aquele sentimento ruim sozinha. Talvez fosse melhor andar até a entrada da casa, e uma respirada de ar puro, longe de paredes a cercando, fizesse bem para sua cabeça e seus sentimentos.

Ela não precisou conter um sorriso ao chegar na entrada da casa de Virgem e se deparar com o céu mais estrelado que imaginaria ter visto. Não era de se surpreender que provavelmente vivesse em uma cidade grande, talvez, e mesmo sem memória, não pudesse ver um céu como aquele todo dia. Sentou-se encostada numa das colunas, como fizera de manhã, e depois de uns minutos, percebeu que estava bem mais ventilado, e as brisas eram bem mais frias. O vestido que usava não ajudava muito para mantê-la quente, então deveria voltar logo para dentro, embora não sentisse a menor vontade de parar de olhar aquele belo céu naquele lugar completamente exótico, esquecendo por um momento aqueles sentimentos angustiantes.

– Você pode ficar doente nesse ar frio. – a voz conhecida se pronunciou atrás dela, e ela se impressionou por não ter se assustado com ela. – Ainda não está recuperada.

– Eu só queria um pouco de ar fresco. – a morena respondeu, abraçando as pernas mais forte e olhando rapidamente para Shaka que estava de pé apenas um passo atrás de si. – Não achei que estava acordado.

– Tente não pegar muito ar fresco. Pode ficar resfriada. – Shaka disse, cruzando os braços diante do corpo e se encostando por um minuto na coluna.

– Que pena que está com os olhos fechados. Não pode ver esse céu bonito.

– Eu o conheço bem. – ele respondeu, descruzando os braços. – Não demore muito, vou levá-la amanhã cedo para o campo das amazonas.

Shaka se virou para entrar de novo na casa, e a morena não conseguiu conter os movimentos quando se levantou rapidamente e sua voz escapou.

– Eu preciso mesmo ir? – perguntou, e viu o virginiano parar os passos para se virar para ela de novo. A expressão estava neutra. – É que… eu me sinto bem aqui. Foi você a primeira pessoa que eu conheci depois de… acordar. Eu não quero atrapalhar, devia estar grata pelo que fez por mim, mas… não queria ter que começar tudo de novo. Eu prometo que vou recuperar as minhas memórias pra não ter que dar mais trabalho… e… – ela hesitou por um minuto, e sorriu sem graça, passando a mão pela franja que cobria os olhos. – Sinto muito. Eu não estou fazendo o menor sentido… eu não devia pedir nada. Muito obrigada por cuidar de mim. Ficarei feliz de ir para o campo das amazonas…

Shaka ficou calado diante das palavras dela. O silêncio demorou por alguns minutos até que ela voltasse a andar para dentro da casa. Precisava só voltar para seu quarto e dormir até a manhã seguinte, para conhecer o novo lugar onde ficaria. Foi apenas quando passou direto pelo virginiano, na intenção de apressar o passo, que precisou parar de súbito.

– Já pensou num nome? – Shaka perguntou, no mesmo tom calmo de sempre, embora houvesse certa urgência em suas palavras para que ela as ouvisse antes de começar a correr.

– Um… nome? – ela se voltou para ele, confusa do porquê daquele assunto ter surgido naquele momento.

– Eu preciso de um nome pelo qual chamá-la, se vai ficar aqui. – Shaka percebeu que mesmo o seu tom estando normal, ele não sabia por que estava fazendo aquilo, estranhamente apenas sentia que precisava.

Ela não se incomodou ao abrir um largo sorriso satisfeito ao ouvir aquilo, afinal, ele não podia ver mesmo. Pensou no primeiro nome que surgiu em sua cabeça o quanto antes para não perder aquela chance. Não queria que ele mudasse de idéia de repente.

– Alice. – a morena disse rapidamente. – Eu pensei em Alice…

– É um bom nome. – foi a última coisa que ele disse antes de voltar a caminhar para dentro da casa de Virgem.

A morena se sentiu extremamente confortável ali, naquele momento. Ele podia ter saído, a casa podia estar apenas mal-iluminada com a luz do luar, e ela podia estar mais uma vez sozinha, mas sentiu-se bem quando a alegria ultrapassou aquela angústia que sentia toda vez que estava sozinha. Não sabia exatamente porque estava tão feliz com aquilo, mas mais uma vez, se sentia segura e com força suficiente para começar tudo de novo, e descobrir sobre si mesma… embora aquela ideia ainda lhe desse calafrios na espinha.

Final do Capítulo I