N.A.: Esta fanfic passa-se em meados dos anos 30. As cidades e vilas referidas não são reais (exceptuando Paris, Londres…) – pode-se dizer que se situam algures no Japão, mas a fic não segue a realidade histórica do Japão nos anos 30, mas a da Europa. Arigatou!

Disclaimer: Todas as personagens da série Naruto pertencem a Masashi Kishimoto.

Por Detrás das Cortinas

Capítulo I

Kanojo

Eram onze da noite. A cidade estava imersa na escuridão, apenas quebrada pelas luzes eléctricas azuladas. O nevoeiro erguia-se nas poças de água e em redor das casas, como uma mão esquelética e cadavérica. O próprio ar cheirava à humidade que há semanas persistia em envolver a pequena cidade de Greenstone. Esse cheiro misturava-se com o do alcatrão e fumos de escape, que se escapuliam dos escassos carros que passavam ainda por aquelas ruas.

Um vulto saía discretamente pela porta traseira do Greenstone Theatre para o frio da noite. Usava umas vulgares calças pretas, uma camisa fina, para onde pendia um laço preto, um colete e uma boina a tapar-lhe o rosto. Um casacão preto cobria todo o corpo. Assim que trancou a porta com a chave, fugiu rapidamente pela noite.

O frio percorria-lhe os ossos, já cansados daquele trabalho. As suas botas pesadas e velhas pisavam as inúmeras poças de água estagnada. A esparsa luz de luar era filtrada pelas nuvens, fazendo com que as poças adquirissem reflexos prateados.

Nada da beleza surreal das ruas de Tomoeda lhe interessava – caminhava rapidamente para chegar a casa. A sua barriga roncava com fome e doíam-lhe os pés. Na sua mão direita levava uma grande mala de couro e, na outra, alguns papéis. Ao cruzar com algumas pessoas, desviava-se ligeiramente do pavimento, como se receasse chocar.

Após ter virado por entre algumas ruas mais escuras, chegou a uma avenida iluminada onde os prédios sobressaíam em cores escuras. Atravessou a estrada até chegar a uma porta larga, com uma enorme aldrava no meio. Olhando sub-repticiamente para o lado esquerdo e direito, entrou pela enorme porta para uma pequena divisão escura, coberta de tapeçarias já meias carcomidas pelo tempo.

Limpou os pés ao pesado tapete e avançou suavemente pelas escadas de madeira, subindo até aos andares superiores do prédio. As suas botas faziam barulho nos degraus e, devido ao cansaço, a mala batia na madeira. Quando chegou a uma porta cujo tapete estava sujo e poeirento, retirou uma nova chave de dentro do bolso e, sem barulho, fê-la deslizar pela abertura.

Assim que aquele ser encapuçado transpôs a porta e entrou num frio apartamento, para um corredor escuro, apenas iluminado por uma vela quase gasta. A sua mão branca agarrou no suporte da vela e, abandonando a grande mala, deslizou até uma das portas escuras, fechada. Sem fazer qualquer barulho, abriu suavemente a porta. A luz amarelada da vela iluminou um volume numa cama de lençóis brancos, coberta por grossas mantas.

"Chegaste tarde Haruno."

Uma cara pálida e enrugada surgiu à luz da vela. As olheiras da anciã tornavam a sua cara cadavérica e algo repelente.

"Gomen Madame Chiyo." – Respondeu a figura encapuçada. Pousando a vela na pequena cómoda de carvalho, retirou a boina que lhe tapava o rosto. De imediato, uma enorme cortina de cabelos da cor das rosas escorregou pelos seus ombros. A garota sentou-se aos pés da cama da anciã.

"Não te sentes aí garota parva." – Rosnou a velha, revirando-se novamente na cama. A garota levantou-se rapidamente, fazendo com que o chão de madeira rangesse. Viu a velha tapar-se completamente com os lençóis e resmungar:

"Temos de comprar mais mantas…"

A garota anuiu.

"Tratarei disso amanhã de manhã, não se preocupe…"

A velha interrompeu-a.

"Vai para a cama. Garotas da tua idade não devem andar na rua a estas horas. Sabes bem que é perigoso…"

"Sim Madame…" – A garota entrara em modo automático. Os seus olhos, de um verde líquido espantoso, pareciam embaciados, ao fixar a pequena luz da vela. Fez uma pequena vénia à anciã, que voltara a ressonar e deslizou novamente para fora do quarto.

O corredor tornava-se realmente aterrorizador quando a noite caía – pequeno e sinistro. A garota dos cabelos cor-de-rosa dirigiu-se até uma outra porta, igualmente fechada, e do bolso retirou uma terceira chave, com a qual abriu a porta que dava para um pequeno quartinho, frio e com uma janela fechada. Lá fora a chuva começara a cair, miudinha.

Haruno Sakura atirou o casaco para a cama estreita – iria servir de manta naquela noite. Com gestos rápidos e fluidos, tentando preservar o pouco calor corporal, Sakura despiu as roupas de homem e enfiou-se dentro de uma camisa de noite grossa. Ao lado da sua cama, em cima de uma bíblia pequena, jazia um pente com incrustações em prata. Por mais que Madame Chiyo, sua mentora, insistisse na venda daquele objecto Sakura recusava-se a desfazer-se dele.

O brilho da prata à luz da vela fê-la acariciar a escova e agarrá-la para escovar os cabelos rosa. Sentou-se na cama e, oferecendo o corpo ao frio, penteou cuidadosamente cada mecha de cabelo colorido. A incrustação em prata possuía apenas o brasão de uma família e uma pequena flor ao lado. Era o seu bem mais precioso. Trazia-o com ela desde o dia em que partira da sua pequena vila e fora trazida para a cidade, com uma velha conhecida da sua família.

Os seus pais tinham morrido quando ela era uma criança de dez anos e, desde então, vivia com a velha Chiyo. Ao contrário do que ela inicialmente pensara, Chiyo não era, de forma alguma, pobre. Tinha bastante dinheiro guardado num velho cofre, que escondia constantemente. No entanto, viviam já há anos naquele velho apartamento, frio e húmido, e Chiyo continuava a fazer questão de racionar todas as refeições e controlar cada gasto. O guarda-roupa de Sakura, para além de velho e cosido, era bastante limitado – sempre que saía à rua arriscava-se a ser confundida por uma pedinte. Tinha sido por isso que juntara durante meses a fio uma parte do seu ordenado no teatro e, com ela, comprara um fato de homem em segunda mão. Desta forma, não só enganaria as pessoas quando saísse à rua como também afugentaria possíveis agressores. O seu único problema de momento eram as botas, demasiadamente largas…

Agora descalços sobre a pedra fria, os pés de Sakura tornavam-se roxos. Estavam ligeiramente inchados, após tantas horas encarcerados num par de sabrinas apertadas e dolorosas. Algures dentro da mala que Sakura deixara à entrada, jaziam no meio da roupa, perfeitamente guardadas dentro de um pano. Depois do pente, seria aquele o seu segundo objecto mais querido.

Mudou de direcção com o pente, encolhendo também as pernas para cima da cama. Sakura tinha dezassete anos. Trabalhava como bailarina no teatro local e, todos os sábados, actuava em pequenos espectáculos. Começara a actuar naquele teatro quando tinha apenas dez anos, porque Madame Chiyo assim o determinara. Ela conhecia o dono do teatro e sugeriu-lhe mais um membro para o grupo de ballet. Como Sakura era pequena e magricela, o dono aceitou de imediato. Claro que muitas garotas tentavam desesperadamente ter lugar naquele teatro, mas nem todas conseguiam. Não podiam ter mais de dez anos nem ser demasiado pobres. Todos os anos, uma nova garota entrava e uma garota das mais velhas saía. Geralmente, assim que atingiam os vinte e cinco anos, eram submetidas a um teste no qual ficava provado que eram já "velhas" demais para ali andarem. Assim, eram substituídas por menininhas.

Sakura pousou o pente novamente na cómoda e enfiou-se debaixo dos lençóis frios. Cobriu-se também com a roupa que tinha levado no corpo naquela noite e enroscou-se numa perfeita bolinha.

Gostava de ter um gatinho para me aquecer… - Pensou Sakura, enquanto os seus dentes começavam a bater furiosamente. Apagou a vela com um leve sopro. Pondo os braços em volta das pernas, pensou no longo dia que teria pela frente. Todos os dias da semana eram entregues a treinos intensivos e à limpeza do teatro. Claro que só ela e mais algumas é que faziam a limpeza, visto que as outras bailarinas tinham dinheiro suficiente para pagar as aulas. Assim, trocavam o serviço de limpeza pelas aulas, aguentando a chacota das colegas.

Naquela pequena cidade, eram poucos aqueles que não conseguiam ir assistir aos espectáculos semanais do teatro, porque era a única forma de entretenimento e de escape à vida quotidiana. Assim, toda a gente sabia que Sakura Haruno fazia limpeza e que era uma das bailarinas mais promissoras. No entanto, a bailarina que mais se destacava continuava a ser Yamanaka Ino.

Ao recordar o cabelo platinado da "princesa" do teatro, Sakura sentiu o seu sangue a ferver. Quando Sakura entrara pela primeira vez no teatro, ficara encantada com Ino. Ela era rebelde e ousada e não tinha medo de nada. No entanto, a amizade entre elas acabou no dia em que tiveram de competir pelo papel principal de uma nova peça.

E eu só perdi porque ela colocou resina nos meus sapatos… - Pensou, com azedume.

A sua grande oportunidade para ganhar um pouco mais e, quem sabe, vir a mudar de casa, perdera-se. Madame Chiyo ralhara com ela noites a fio e Sakura chegara ao teatro no dia seguinte com os olhos vermelhos. Hinata, uma das bailarinas que também ficava com papéis secundários, notava sempre a cor anormal dos seus olhos, mas nunca perguntava nada. Limitava-se a olhar para ela com uma expressão pesarosa enquanto Sakura lavava novamente as escadas. Não era, como Ino, arrogante ao ponto de pisar o chão lavado, apenas para mostrar a sua superioridade.

Rebolando na cama com frio e com raiva, Sakura cerrou os olhos, tentando livrar-se daqueles pensamentos. Quer fossem boas ou más, ganhavam o mesmo ao fim do mês. Não pensavam sequer em casar, muitas, porque, tal como Tsunade-sensei fazia questão de repetir vezes sem conta:

"Casam-se e saltam daqui para fora. Não queremos senhoras de casa nem futuras mamãs…"

E elas seguiam essa regra à risca. Se uma ousasse ter um namorado, era automaticamente expulsa.

Os seus dedos crisparam nas suas pernas, mas ela sorria. Namorado… A única pessoa de quem ela realmente gostara estava bem longe, nos melhores teatros do país. Ele já nem sequer se deveria lembrar dela… Sakura corou ao lembrar-se dos posters e recortes de jornal que guardava dentro do guarda-roupa, onde o garoto aparecia ao lado de um piano. Infelizmente a tinta do jornal não conseguia reproduzir com exactidão a escuridão dos seus olhos nem o desalinho dos cabelos…

Deixou que os cabelos cor-de-rosa lhe tapassem as orelhas frias. Enrolou-se novamente como um novelo e, pensando no quanto tinha frio, adormeceu.

"Haruno! Levanta-te sua preguiçosa!"

Tão querida… Sakura levantava-se lentamente, rogando pragas à língua de víbora de Chiyo. Dirigiu-se à casa de banho, arrastando os pés, e sentiu o aroma do pequeno-almoço. Era Domingo, o que significava melhores refeições.

Chiyo já tinha deixado a água quente dentro da enorme banheira. Sakura lavou-se rapidamente e vestiu um dos seus velhos vestidos, em tons de castanho. Voltou ao quarto para dar um jeito ao cabelo desalinhado e dirigiu-se à cozinha.

"Bom dia Madame Chiyo." – A vénia foi feita de forma desajeitada, ao mesmo tempo que a sua barriga se queixava com fome.

"Senta-te." – Rosnou a velha, enquanto se sentava numa das cadeiras. A cozinha era apertada. Havia dois armários pequenos com loiça e uma bancada com o fogão na outra parede. O resto não era mais que parede fria.

"Onde iremos hoje Madame?" – Perguntou Sakura, enquanto bebia o chá quase frio. A pergunta era um pouco desapropriada, uma vez que ela sabia perfeitamente que aos Domingos se ia à missa e se voltava para casa.

"Hoje vamos ao teatro." – Rosnou Chiyo, enquanto arrancava um pedaço de pão à dentada.

Sakura ficou perplexa.

"Ao teatro? Mas hoje é – "

"Domingo, eu sei, criança parva. Não vamos ao nosso."

"Que devo vestir então?" – Sakura sentiu um arrepio na espinha. Não se aprontava coisa boa, de certeza.

"Leva o vestido amarelo." – Chiyo levantou-se novamente, começando a lavar a pouca loiça. Vendo que Sakura não se levantara, sibilou: - "Vais ficar aí?"

Sakura ergue-se automaticamente e correu para a casa de banho, sentindo as tábuas de madeira a rangerem por debaixo dos seus pés. Após lavar os dentes, trocou de vestido rapidamente e calçou as suas botas. Por cima levava um espesso xaile e um casaco castanho.

O seu estômago contorcia-se. A última vez que Chiyo a levara a um lugar diferente da igreja, o dia terminara mal. Levara-a a uma casa de boas famílias, cujo filho precisava de se casar para pôr fim aos boatos sobre ele. Sakura, reconhecendo imediatamente sinais de doenças no rosto dele, recusou-se a comportar como uma senhora naquela casa e saiu antes que algum contracto pudesse ser discutido. A família do garoto recusara a noiva e Chiyo voltou para casa sem garantias de mais dinheiro. Sakura ficou com menos comida durante duas semanas, mas recebeu um par de botas novas, ao fundo da sua cama, no final da segunda. Ela acreditava que Chiyo, apesar de avarenta e fria, lá bem no fundo, gostava dela…

"Vamos embora criança parva!"

… E que os insultos não passavam de expressões de afecto disfarçadas.

Correu para a porta de casa e esperou que Chiyo a trancasse. Depois correu pelo edifício abaixo, saindo para a rua. Não passavam das oito da manhã e já havia movimento. Alguns carros passavam já pelas ruas e as pessoas apressavam-se para dentro das padarias e lojas.

Um táxi parou em frente à porta e Chiyo fez-lhe sinal para entrar. Sakura ficou perplexa. Chiyo chamara um táxi? Aquela velha avarenta não queria andar a pé? Enfiou-se dentro do carro e sentiu o cheiro a estofos novos e a cabedal. Por que raios fazia Chiyo questão de ir de táxi a um teatro?

"Tokyo Theatre, condutor."

A boca de Sakura abriu-se num bocejo incontrolado. Iriam ver um outro bailado… Aquilo era mortificante. Não bastava Sakura dançar dia e noite como também tinha de assistir outros a dançar melhor do que ela… Ainda por cima Tokyo Theatre não ficava longe dali – ficava numa cidade próxima do local onde Sakura vivera durante a sua infância. Demasiado perto.

Olhou de relance para as suas botas. Estavam já um pouco estragadas de tanto que as usara. Pelo canto do olho, tentava captar os traços do rosto de Chiyo. Ela adormecera novamente, deixando a boca aberta numa postura nada graciosa. Sentindo o frio do carro a atravessar-lhe os ossos, Sakura encolheu-se sobre si mesma e fixou longamente horizonte. Chiyo falava sempre por meias palavras: se lhe queria dizer que já não havia pão, punha-lhe a cesta do pão à frente do seu nariz; se faltasse carne, apresentava-lhe apenas vegetais no seu prato; se a levava a um bailado, era porque o seu dia de saída do teatro se aproximava a passos largos. Era verdade que Sakura poderia ficar naquela casa até ter trinta e muitos anos, como acontecera com Tsunade Sensei. No entanto, tal só se justificava quando as alunas eram realmente boas e rentáveis. E Sakura não passava de uma bailarina de segunda categoria que lavava o chão.

Sakura suspirou, cansada. Talvez Chiyo tivesse arranjado outro homem desesperado. Ao longe começava a avistar-se o largo e frondoso bosque que separava as várias cidades daquela. Era um enorme monte esverdeado e escuro, que contrastava fortemente com o céu azul claro daquela manhã.

A garota sentiu a sua cabeça a pesar. O pálido Sol que lhe batia nas faces, aquecia-a ligeiramente, fazendo-a sentir-se confortável…

O dia estava límpido e frio. As paredes das casas pareciam mais brancas, devido às inúmeras gotículas que ainda restavam do temporal da noite anterior. Sakura mal se conseguia mexer no meio de tanta roupa. Era pequenina, tão pequenina… Caminhava corajosamente pelo meio da rua, de cabeça baixa e olhar tímido. De vez em quando, pontapeava as folhas que caíam das árvores e corria atrás dos pássaros. Percorreu toda a vila até chegar a uma ponte de pedra.

Sakura ia para sua casa, que ficava no cimo da vila. Às suas costas levava uma sacola com os livros. Sabia que o pai já estava em casa e que iriam lanchar todos juntos. Só o pensar no pai e nos seus olhos grandes esverdeados fê-la sorrir. Atravessou rapidamente a ponte até ao outro lado, desembocando num caminho de terra batida, onde pequenos montes de terra revelavam flores azuis muito pequeninas. Quando Sakura se baixou para apanhar algumas, ouviu uma voz.

"Que estás aqui a fazer?"

Reconhecendo a frieza do tom de voz, Sakura virou-se para o interlocutor, com o coração a bater depressa. À sua frente estava Uchiha Sasuke, um garoto também da sua escola, frio e distante, pertencente à família mais importante de Tomoeda. Dizia-se que tinha um dom especial para os sons e que era por isso que raramente falava. Mostrava-se frio para todos os que o rodeavam, desprezando-os por vezes. A sua atitude assustava e deliciava as suas admiradoras. Sakura gostava muito de o ver tocar na sua flauta de madeira, escondida atrás dos arbustos.

"Konnichiwa…" – Sussurrou Sakura, baixinho. O olhar do garoto, negro e impassível, enchia-a de calafrios.

"Não devias estar aqui a estas horas. É perigoso."- Sasuke olhava-a com um óbvio ar de superioridade. Sakura sorriu ao ouvir aquelas palavras.

"Uchiha-kun, aqui ninguém é mau… Estou sempre segura, para onde quer que vá."

Por momento, o olhar do garoto ensombrou-se ainda mais. Olhando em volta com uma expressão de enfado, estendeu-lhe a mão, branca e perfeita.

"Anda, eu levo-te a casa…"

A garota abriu a boca, com espanto. Corou e ergueu-se rapidamente, agarrando hesitantemente a mão fria de Sasuke. As flores caíram das suas mãos de novo para a terra escura. O que faria aquele garoto naquele lugar, em vez de estar rodeado pelos da sua família, como era hábito? Porque lhe estava ele a agarrar a mão? Sakura encolhia-se, ao pensar nas mãos perfeitas de Sasuke a tocarem nas suas, teimosamente cheias de terra.

Enquanto se afastavam da ponte de pedra, Sakura observava atentamente cada detalhe do percurso. As pedras que brilhavam ao Sol. A relva esverdeada. As árvores cujas folhas caíam sem parar. Os campos vazios, com uma ou outra casa, afastadas. Ela recusava-se a abrir a boca, com medo de dizer uma palavra que o incomodasse. Era já tão bom tê-lo a caminhar com ela…

De relance, olhou para ele. Ele olhava também para tudo em seu redor, com uma leve expressão de calma, que substituía a sua habitual expressão séria ou zangada.

"Moras naquela casa lá em cima?" – De repente, Sasuke apontava com o dedo para uma casa fechada, com um jardim cheio de flores. Sakura acenou.

"Eu posso ir sozinha a partir daqui, Uchiha-kun…"

Ela sentiu a mão do garoto a apertar a sua com um pouco mais de força.

"Eu acompanho-a até lá a cima."

De repente, tudo ficou cinzento. A única nota de cor na paisagem era Sasuke, com os seus cabelos cor de corvo agitados pelo vento frio.

"Não devias ir para casa?" – Perguntou Sakura, timidamente.

"Não me apetece."

Ela mordeu os lábios, recriminando-se por aquela pergunta parva. Sasuke perdera os pais há um ano… Talvez as saudades deles fossem tantas, que só o facto de estar em casa se tornasse doloroso. A paisagem ganhou os tons normais novamente e Sasuke voltou a ser uma mancha de preto e branco.

Sakura engoliu em seco. Ele parecia tão triste. Tão horrivelmente adulto. Sem puder evitar, puxou ligeiramente a mão dele para a frente.

"Anda, quero-te mostrar um sítio."

Ele encolheu os ombros e murmurou algo parecido com "como queiras". Sakura começou a correr, deixando atrás de si pegadas firmes na terra. Sasuke não corria – limitava-se a andar mais depressa.

Aproximavam-se rapidamente de um velho poço, onde baldes repousavam, já velhos e carcomidos pelo tempo. Sakura largou a mão de Sasuke e correu para o poço de pedra. Em volta dele o musgo cobria a pedra que deveria ter servido de chão em tempos. As árvores surgiam do nada, em volta do poço, que se tornava agora num lugar escondido no meio de campos abertos.

Sasuke estava junto dela.

"Que tem um poço de tão especial?"

Sakura bateu as mãos uma na outra.

"É o meu poço de desejos."

Sasuke bufou de impaciência, fazendo com que Sakura se desanimasse. Ela apontou insistentemente para os baldes.

"Se pedires um desejo, ele realizar-se-á."

Um sorriso cínico surgiu dos lábios de Sasuke.

"Acreditas mesmo nisso?" – Perguntou ele.

Sakura acenou com a cabeça.

"Claro que sim! Queres ver?"- Dito isto, ela deixou cair a sacola e juntou as suas mãos. Com um olho aberto, olhava para Sasuke, que continuava com as mãos nos bolsos, olhando fixamente para a água negra do poço.

"Desejo que o Sasuke me dê uma flor."

Um sorriso trocista voltou a desabrochar no rosto de Sasuke.

"Pediste o impossível Haruno-san."

Ela sorriu meigamente e apontou para ele.

"É a tua vez. Mas tem cuidado com o que desejas!" – Advertiu-o ela.

Sasuke retirou as mãos dos bolsos e juntou-as.

"Cuidado para quê…?" – Sussurrou ele. - "Desejo sair deste lugar."

Sakura arrepiou-se com a voz fria de Sasuke.

"Porque queres sair daqui?" – Perguntou Sakura, baixinho, encolhendo-se para apanhar as suas coisas.

Sasuke virou costas.

"Por nada de especial." – Virou ligeiramente a cara para ela. – "Anda, já devem estar à tua espera." – Estendeu novamente a mão para ela.

Curiosamente, enquanto voltavam, Sakura ia apenas com o seu uniforme da escola. A mala parecia ter desaparecido no meio do nevoeiro que se levantava.

Ao fim de algum tempo, sem trocarem uma única palavra, Sasuke deixou-a ao portão de sua casa. Era um portão vulgar, de metal, no qual Sasuke se apoiou, fixando o céu.

Sakura fez menção de entrar nele, mas Sasuke barrou-lhe a entrada.

"Caso precises de alguma coisa… Diz-me, por favor."

Ele não olhava para ela, mas pela sua expressão Sakura conseguia perceber que algo de errado se tinha passado. Estaria ele a gozar com ela? Deu dois passos atrás e esticou a sua mão para o portão.

"Podes ir para tua casa, Uchiha-kun…"

De repente, a paisagem rodopiou novamente. Sakura estava agora junto a uma pedra tumular branca, com caracteres que ela não entendia. As suas mãos, frias, agarravam com força um ramo de flores azuis. Aquelas que ela não dera aos pais. A paisagem tornara-se cinzenta e vazia, repleta de chuva.

"Porque não me disseste…?" – A pergunta saíra-lhe da garganta seca, sem que entendesse porquê. Atrás de si, ouviu passos.

"Não era a minha função."

Sasuke olhava também para a pedra branca. Desta vez, trazia também vestido um casaco comprido e carregava uma mala. Sakura sentiu lágrimas a escorrerem-lhe pela cara abaixo.

"Eu avisei-te… Não devias ter pedido aquele desejo."

Sasuke encolheu os ombros, olhando-a com indiferença.

"Eu já sabia que me iria embora, mais cedo ou mais tarde."

As mãos de Sakura apertaram-se com mais força

"Eu também me irei embora daqui…" – Murmurou. Sentiu uma mão na sua cabeça, que lhe despenteava os cabelos.

"Não sejas um aborrecimento para a Chiyo." – Disse Sasuke apaticamente.

Sakura virou-se completamente para o garoto. Sem se puder conter, deitou-lhe os braços ao pescoço. Queria gritar-lhe que não se queria embora, para ele a levar com ela, mesmo que fossem apenas colegas de turma…

As mãos do garoto empurraram-na para baixo.

"Deixa de ser infantil Haruno."

Ela cerrou os olhos e virou-lhe a cara. Claro, estava a ser uma idiota. Ele nem sequer se preocupava minimamente com aqueles que cuidavam dele, como queria ela que ele se ralasse sequer com ela?

"Sendo assim… Boa viagem Uchiha-kun." – Sakura estendeu-lhe a mão, que foi ignorada pelo garoto. Com um aceno curto, ele agarrou na enorme mala e virou-lhe costas.

Enquanto observava o garoto a afastar-se pelo meio do nevoeiro, notou num brilho estranho no meio da relva. Baixando-se, agarrou num estranho objecto. Um pente com uma flor incrustada reluzia à luz ténue.

"Afinal, sempre recebeste a flor."

Sakura acordou em sobressalto, sentindo a sua cabeça a latejar. O carro tropeçara numa lomba da estrada e ela batera com a cabeça no tecto.

"A menina está bem?" – Perguntou o condutor barbudo, ao vê-la agarrar na sua cabeça.

"Hai… Daijoubu desu." – Sussurrou ela, reprimindo um trejeito de dor. Olhou para a anciã ao seu lado. Chiyo continuava a dormir pacificamente.

Encostando-se de novo ao seu assento, Sakura inclinou a cabeça para trás. Havia muito tempo que não tinha aquele sonho. Na verdade, eram raros os dias em que ela pensava sequer no Uchiha, apesar de ter os recortes e o pente. Para ela, eram recordações dos dias felizes que passara antes do garoto lhe agarrar a mão e a acompanhar a casa. Nesse mesmo dia, ela conhecera Chiyo que a informara que os seus pais haviam morrido num incêndio numa outra cidade. Ela correra novamente para o jardim, na esperança de encontrar Sasuke, mas este havia desaparecido. Após o funeral dos pais, os colegas disseram-lhe que Sasuke iria viver para outra cidade. Desde então, ela nunca mais pudera confrontar a escuridão dos seus olhos, sem ser através de míseros recortes de jornal.

Olhou pela janela. Haviam já entrado na cidade, ainda com pouco movimento. O grande teatro avistava-se ao fundo, no meio da enorme praça. O motorista parou abruptamente junto a um passeio. Ao acordar de repente, Chiyo praguejou. Saiu à pressa do carro, sem esperar que o motorista lhe abrisse a porta. Lá fora, compôs a sua roupa e endireitou-se, começando imediatamente a andar em direcção a uma loja.

Sakura saiu também do carro, do lado da estrada. Ao fechar a porta, ouviu uma sonora buzinadela à sua frente.

O que se passou de seguida não levou três segundos. O carro aproximava-se a toda a velocidade dela, tendo já derrubado algumas pessoas que atravessavam a rua. Sem reacção, Sakura limitou-se a proteger a cabeça com os braços, até que sentiu um forte puxão para o lado oposto. Esperando embater em algo duro e frio, retesou-se, esperando o choque. No entanto, caiu em cima de algo duro mas espantosamente mais macio que o chão. Do outro lado, ouviu o choque metálico e ensurdecedor entre os dois carros.

Permaneceu encolhida até que uma mão a tocou suavemente na cintura.

"Estás bem?" – Perguntou uma voz por baixo dela.

Ela abriu os olhos a medo. Por debaixo de si estava alguém vestido com um fato de cerimónia. Dos dois lados da rua juntavam-se gritos de horror e as pessoas juntavam-se para ver o acidente.

"Ai, acho que não parti nada…" – Sakura tentava erguer-se, pondo as mãos no asfalto molhado e quente. Assim que se ajoelhou na estrada, abriu os olhos e olhou para o homem que a tinha salvo. O seu coração começou a bater descontroladamente.

"Arigatou-…" – A voz perdeu-se ao olhar o (percebia agora) garoto que se encontrava semi-deitado no chão. De laço fino descomposto e de camisa suja, estava Uchiha Sasuke, que a olhava com um ar duvidoso e calmo.

"Não te magoaste?" – Perguntou novamente o garoto. Sakura abanou a cabeça e levantou-se rapidamente, estendendo uma mão para o ajudar a levantar. Sasuke ignorou a sua mão e levantou-se sem ajuda. De imediato, uma miríade de pessoas o rodeou, todas elas querendo saber se ele estava bem. Sakura foi afastada para trás, sendo também ela cercada de pessoas. Pelo canto do olho, via que ele não olhava ninguém em concreto e que se afastava novamente. De repente, um homem de cabelos cinzentos e olhos pequenos irrompeu pelo meio da confusão, trazendo atrás de si um polícia, que se deslocou até aos dois carros.

"Uchiha-sama! O menino está bem?" – Sasuke ignorou o homem que o interpelava com uma expressão de ódio, continuando o seu caminho. Sakura, após ter sido interrogada por várias mulheres que tentaram limpar o alcatrão do seu vestido e de lhes ter assegurado que se encontrava intacta, correu para Sasuke.

"Uchiha-kun." – A voz saíra-lhe um pouco desafinada, ainda mal refeita do susto. O homem de cabelos cinzentos olhou-a com desdém.

"É melhor que se vá embora. Uchiha-sama salvou-a, não o incomode agora." – Rosnou-lhe, erguendo o nariz. Sakura recuou dois passos, mas persistiu para o garoto que a olhava sem expressão.

"Tenho o teu pente."

"O pente é teu." – Replicou ele, em voz baixa. Com um relance, fez sinal para que o homem de cabelos cinzentos se afastasse. Contrafeito e com uma vénia, o homem afastou-se.

Sakura tentou sorrir.

"Nunca imaginaria que te encontraria aqui…"

"Eu trabalho aqui, agora. O que fazes aqui?" – A sua voz era ríspida. Com uma das mãos, sacudia o pó da sua roupa.

Subitamente, Sakura deu-se conta que estava num perfeito desalinho. Ele, embora tendo caído no chão, conseguia manter a mesma perfeição na postura e na altivez. Engoliu em seco.

"Madame Chiyo trouxe-me cá…"

Sasuke olhou-a nos olhos e Sakura sentiu o frio habitual a invadir-lhe os ossos. Ele tornara-se mais alto, mantendo a mesma palidez mórbida no rosto. Umas ligeiras olheiras escureciam-lhe o olhar, obscurecido pelas madeixas de cabelo negras.

"Tem cuidado contigo Haruno." – Murmurou, olhando de repente para algo por detrás de Sakura. Reconhecendo os passos rápidos e acutilantes, Sakura estendeu-lhe a sua mão direita e agarrou a dele. Conseguiu vislumbrar um certo espanto nos seus olhos, mas não teve tempo para mais.

"Haruno! O que te aconteceu?" – Madame Chiyo voltara e com ela a sua voz irritante. Pelo canto do olho, Sakura viu Sasuke a desaparecer por uma rua.

"Eu estou bem Madame…" – Replicou ela, tentando compor-se.

"Acho bem que estejas! Caso contrário, como pensas que poderei apresentar-te ao Director do teatro?"

Sakura abriu a boca de espanto, enquanto era arrastada pelas ruas fora pela anciã. Apresentá-la ao director? O seu coração advertiu-a para o pior. Mais uma tentativa de noivado forçado…

Os carros permaneciam espatifados no meio da rua. Curiosamente, agora só se encontrava o polícia a falar com o motorista. O outro condutor parecia ter-se evaporado pelo meio da multidão.

"O que se passou com o outro carro?" – Inquiriu Sakura a Chiyo. A velha resmungou.

"Não faço ideia – o condutor desapareceu."

"Não é preciso testemunhar nem nada?"

"Não… Eu já falei com o polícia. Além disso, és menor."

Sakura franziu as sobrancelhas. Após terem atravessado duas ruas, com gente a olhar para o seu vestido sujo, chegaram a uma antiga livraria vitoriana, onde um pequeno sino repousava em frente à porta. Com um aceno para o vendedor, Chiyo entrou com Sakura, atravessando toda a livraria até uma pequena porta. Dentro da porta encontravam-se umas escadas íngremes.

"Sobe e troca de roupa." – Rosnou-lhe Chiyo. Sakura subiu rapidamente as escadas, até se deparar com um alçapão no tecto. Empurrou-o com força e, sentindo-o ceder, puxou-se para cima, agarrando-se ao solo. Chegara a um sótão espaçoso, onde uma janela ao fundo a deixava ver a cidade inteira. Havia uma cama no meio do sótão e um velho armário. Ao fundo, encontrava-se um velho lavatório, no qual ela lavou a cara e as mãos. Tudo o resto eram caixotes e livros espalhados. Na cama, meia poeirenta, encontravam-se umas calças de ganga e uma velha camisola. Sentando-se, Sakura esfregou o rosto. Como raios é que Chiyo sabia que ela precisaria de mudar de roupa? O vendedor da loja conhecia-a, era óbvio. E porque diabos o condutor desaparecera após o embate? A sua cabeça começava a fervilhar. Tudo se passara de forma tão rápida que lhe parecia que tinha acabado de ver um filme com a velocidade alterada. O seu corpo tremia, agora que se apercebia que quase tinha sido atropelada.

Na sua mente continuavam gravados os olhos de Sasuke. Negros e frios, tal como em pequeno. Na realidade, Sakura não entendia por que razão o facto de o ver lhe causava tanta alegria. O garoto nem sequer lhe tinha dado muita atenção. Com um sorriso resignado, Sakura voltou a calçar as botas.

Após três minutos, nos quais se compôs e penteou tremulamente com os dedos o cabelo, Sakura desceu novamente pelo alçapão, regressando à loja. Chiyo falava animadamente com o vendedor. Com a pressa ao entrar, Sakura nem reparara nele: era alto e bastante musculado (não deveria ser SÓ vendedor, de certo…), e possuía uma espessa cabeleira branca. O sorriso rasgado na sua cara morena revelava um homem simpático.

Chiyo despediu-se com mais algumas palavras e saiu da loja. Sakura limitou-se a segui-la, sentindo o olhar do homem cravado nas suas costas. Na rua, Chiyo continuava a caminhar, apressadamente. Sakura correu até a apanhar.

"Madame Chiyo… Quem era aquele homem?" – Perguntou Sakura, tentando controlar-se para não agarrar a velha e desatar a fazer perguntar sobre o seu estranho modo de agir naquele dia.

"Um velho amigo." - A velha olhou-a de relance. – "Eu avisei-o para ter roupas preparadas. Afinal de contas, a viagem era longa e tu irias chegar aqui com o vestido amarrotado…"

Sakura franziu o nariz. A velha estava, obviamente a tentar aldrabá-la, mas não tinha como que lhe dizer isso. Limitou-se a arrastar-se atrás dela, enquanto se encaminhavam para o teatro, imponente e em tons de dourado. No seu topo possuía dois anjos em dourado e vermelho, já um pouco desbotados pelo tempo. A porta do teatro era enorme e toda ela feita de madeira. À frente havia dois pilares enormes, os quais possuíam cartazes. Num deles a cara de Sasuke aparecia estampada. Sakura não conseguiu ler o que estava noticiado, porque Chiyo a arrastava para um das portas laterais. Naquela zona não se encontrava ninguém, e os carros passavam lentamente por ali. A calma daquele local, aliada ao brilho do dia, conseguia ser assustadora.

Entraram à pressa por uma das portas laterais, que pareciam ter sido deixadas abertas propositadamente, deparando-se com um ambiente escuro e sinistro, diferente do dia azul e brilhante que se encontrava lá fora. As paredes estavam decoradas com retratos antigos e velhos recortes de jornal, até uma escada que subia em espiral. Subiram pela escada, agora mais devagar. Enquanto subiam, Sakura mordia os lábios e pensava no teatro que teria de fazer daquela vez, para não se casar. Fingir que era louca? Morder-se? Não ter maneiras? Ela tinha consciência que haveria uma altura em que o homem em questão não se ralaria minimamente com isso e a ideia assustava-a.

Desembocaram num corredor e Chiyo fez sinal a Sakura para que ela avançasse para a última porta. Com o coração apertado, Sakura enfiou as mãos nos bolsos e avançou para a sala. As paredes estavam revestidas com painéis e pinturas de bailarinas. Um velho candelabro suspenso no tecto brilhava à luz eléctrica. Tudo parecia estar revestido por um tom carmesim.

Inspirando fundo, Sakura estendeu a sua mão para a maçaneta dourada.