Em sua cabeça, ela tinha esquecido. Tinha superado. Foi uma fase, dizia para si mesmo, e realmente acreditava porque a figura da mulher não cruzava sua mente a tempos.
Estava apaixonada. Apaixonada de verdade, dizia. Justin era o homem dos sonhos de qualquer mulher e Selena sentiu-se a mulher mais sortuda do mundo quando foi a escolhida.
Eles se conheceram em uma cena digna de Hollywood. Ambos estavam esperando o metro quando, no meio do tumulto canadense, e a saia de Selena enroscou no pedal da bicicleta de Justin. Eles perderam o trem e tiveram que esperar o próximo juntos.
O cavalheirismo de Justin assustou Selena. No começo pensou que era somente um jeito de flertar, mas ele continuou puxando as cadeiras para ela sentar e elogiando seus vestidos, e sempre a lembrando do quão especial ela poderia ser para o mundo até que um dia ele esticou a mão pela mesa do café, entrelaçando seus dedos e disse o quão especial Selena era para ele.
Selena nem pensou para aceitar o pedido de namoro e muito menos o de casamento. Mas os problemas reais começaram aí. Ou melhor, o problema.
Era tudo tão perfeito. Perfeito demais... e exatamente por isso que agora ela se julgava estupida. Culpava-se por não ter previsto.
Com a organização do casamento as coisas começaram a mudar. As poucas discussões que tinham, acabaram. Eles misteriosamente concordavam com tudo. Ou melhor, Justin concordava com tudo que Selena sugeria, e quando um desentendimento ameaçava tomar conta do assunto, o que quase nunca acontecia, Justin fechava os olhos com ternura e balançava a cabeça.
"Tudo bem" Sorria. "Não me importo. Só me importo com sua felicidade."
Ele cedia. Nem contestava, nem estudava as opções, só cedia. O casal não tinha duas opiniões sobre as coisas, tinham uma só.
Mas, embora isso chegasse a irritar Selena, ela nunca pensou em deixá-lo. Eles se amavam tanto e Selena sentia isso. Era como viver em um conto de fadas onde o príncipe encantado dormia ao seu lado na cama, sorrindo e dizendo o quão linda ela era pela manhã.
Não queria acordar desse sonho, mas, infelizmente, acordou.
Quando Selena o chamou para conversar sobre essa falta de personalidade, ele simplesmente fechou os lábios em um sorriso terno sem dentes e acariciou as costas da mão da amada.
"Você esta certa." Suspirou. "É que... fiquei com medo de você... de alguma forma... desistir do casamento porque talvez nossos gostos não batam."
Selena sorriu, o beijando com amor. "Nunca abandonaria você por algo bobo assim."
Ele se levantou, se despedindo com pressa com um último beijo, prometendo que não ficaria mais calado. "Tudo por você." Falou.
Selena sorriu para si mesmo quando ele deixou o quarto. Já moravam juntos a algum tempo e casar não faria muita diferença, mas não se importava. Era com ele que queria passar o resto da vida.
Deitou-se na cama, as pernas ainda pra fora e o sorriso ainda presente.
Demi deveria ter aprendido com Justin, pensou, se ela fosse metade do que ele é elas talvez ainda estariam juntas e...
Selena paralisou.
"Não não não não." Não conteve o pensamento de sair pela boca. Ela não podia pensar em Demi. Prometeu para si mesmo não pensar mais naquela fase errada de sua vida.
Voltou a se sentar. O desespero ainda tão vivo quanto ela própria.
Também não sabia por que tamanho desespero. É passado. Todos temos vergonha do passado, pensou, a única diferença era que enquanto as pessoas tinham vergonha de algumas partes dele, Selena tinha dele todo.
Ela queria parar de pensar, mas agora a figura da mulher não deixava sua cabeça e parecia tão... normal. Como se ela estivesse lá o tempo todo. Como se ela nunca tivesse deixado sua memoria.
Sentou-se de noite para assistir TV mas o aparelho era um detalhe no filme de memorias que passavam por sua mente.
Lembrava dos olhos escuros e o cabelo preto tingido, as tatuagens brilhavam na pele branca.
Justin odiava tatuagem, pensou, ele nunca a deixaria fazer uma. Ou melhor, ele não a impediria, afinal, ele é um cavalheiro, diferente do espirito de Demi.
Justin chegou tarde, se desculpando como se o mundo fosse acabar pelo horário e lá eles ficaram até tarde: abraçados no sofá "assistindo" televisão.
Só meses depois que Selena percebeu o quão errada estava.
Demi não saía de sua cabeça. A imagem da garota de vinte anos estava lá quando fechava os olhos, estava lá para comparar quando Justin estava sendo perfeito e estava lá para deixar cada fez mais claro que seu lugar não era ali. Que seu lugar não era no Canadá. Seu lugar era em Nova Iorque.
O casamento já estava todo preparado. Tudo comprado, tudo alugado, o vestido de noiva estava escondido no quarto de hospedes e o terno pendurado no guarda-roupa, tudo pronto para a nova fase da vida dessas duas pessoas que se amavam. Mas Selena não queria mais.
Ela não sentou e pensou no quanto tudo era grande e no quanto não merecia o sentimento de Justin, ela simplesmente deixou que o pânico a tomasse e descobriu não estar preparada.
Descobriu que Demi sempre esteve em sua mente, a observando de longe, encostada no batente da porta dos sonhos com aquele sorriso sério, esperando o momento para entrar e fazer a bagunça que estava acostumada a causar. Esperando o momento certo para deitar ao seu lado na cama e avisar que o lugar de Selena nunca seria ali, e se isso não fosse verdade Selena não estaria tão apavorada.
Ela era jovem e impressionável quando conheceu Demi. A garota simplesmente a encantou quando sentou-se ao seu lado no balcão do bar e começou a lhe passar cantadas inteligentes durante uma conversa sem rumo. A conversa que Selena julgava como a melhor de sua vida até encontrar Justin, mas agora percebeu que estava cansada de mentir para si mesmo.
Ela ainda amava Demi e isso não iria mudar, o que não mudava o fato que amava Justin e isso também não iria mudar. Então as opções eram claras. Um: ficar, casar e ter uma família perfeita com Justin, esquecendo Demi do modo que estava acostumada. Dois: fugir, procurar Demi ao redor do mundo e torcer para ser aceita de volta. Três: fugir e encontrar uma nova vida, sem Justin e sem Demi.
Poderia escolher a primeira, mas nunca se perdoaria por mentir para Justin. Mentir e impedir que ele encontre alguém que realmente o mereça. Poderia escolher a segunda, mas era covarde demais para deixar o país por um fantasma. Poderia escolher a terceira, mas não sobreviveria sem ser amada. Ela não era Demi. Não era autossuficiente e fria o bastante para assistir o amor de sua vida passar pela porta e não mover um musculo para parar.
Sinceramente, Selena esperava que Demi viesse ao seu encontro. Que Demi não a deixasse partir. Mas ela nunca veio.
Chegou até considerar a opção de Demi ter morrido, o que não seria surpresa em seu ramo de trabalho, mas isso parecia impossível em sua cabeça. Simplesmente não conseguia imaginar essa personagem –era o que Demi passou a ser– morta. Seria como queimar o livro da vida de Selena sem mesmo estar terminado.
Ela teria que enfrentar um medo. Ou mentiria pela vida toda, ou seria corajosa, ou desistiria do amor.
Foi ai que ela levantou de madrugada, tirou a aliança do dedo, colocou encima de um bilhete ao lado de Justin, que ainda dormia, e saiu com uma mala precária e uma passagem de avião. E agora estava aqui: de frente para essa porta, sem saber o que sentir.
Ela não sabia por onde começar, mas tinha que iniciar pelo lugar mais claro em sua mente.
A casa continuava a mesma. Os mesmos portões de ferro que abriam para o pub quase abandonado ao lado da porta discreta que dava caminho para onde Demi morava. Para onde elas moravam juntas.
A solução mais clara seria tocar a campainha, mas essa era a ultima opção para Selena. E se ela não morasse mais aqui? E se ela morasse? O que seria pior: morar ou não morar?
Suspirou, cansada de olhar para a porta como uma retardada. Pegou um chaveiro velho na bolsa, havia apenas uma chave no anel.
Tentou encaixar a chave na fechadura mas ela não serviu.
Claro que ela tinha que trocar a tranca nesse meio tempo, pensou óbvia, ela trocava praticamente todo mês.
Colocou a mão sobre a maçaneta, tentando abrir como se fosse abrir num passe de mágica, mas, para sua surpresa, e quase choque, a tranca destravou e a porta abriu em silencio.
Agora estava apavorada novamente. Agarrou a mala, quase voltando para trás. Quase voltando para os braços de Justin, chorando por perdão.
O corredor estava vazio e Selena cogitou estar abandonado, afinal, Demi se mudava muito e o fato da porta não estar trancada só alimentou mais os fatos que a garota –agora mulher– não morava mais aqui. Ninguém morava aqui, percebeu.
Entrou na casa, fechando a porta um pouco mais calma. Esqueceu a mala em qualquer lugar ao reconhecer alguns moveis na pouca luz e estranhou não estarem empoeirados. Na verdade estavam bem organizados.
Foi até as costas do sofá, passando as mãos pelo estofado e fechando os olhos, não escondendo o sorriso de saudade.
Aquele sofá era horrível, lembrava. Duro, frio no inverno, quente no verão, e apertado demais para dois. Era a primeira coisa que cogitavam em mudar na casa... mas nunca o trocaram.
Ela ainda mora aqui, sabia. Os moveis são os mesmos e não há sujeira, sorriu, ela odiava sujeira. Ficou feliz por um momento, depois assustada... depois preocupada. A porta estava destrancada. Essa porta nunca ficava destrancada. Não podia ficar destrancada.
Subiu a escada com rapidez e parou ofegante ao ver que a porta do quarto estava entreaberta, uma luz fraca e azulada refletia da fresta acompanhada por vozes eletrônicas baixas.
Não podia esperar mais, estava perto demais para simplesmente ser covarde. Concentrou-se em não fazer barulho enquanto empurrou a porta com delicadeza, perdendo todo ar com a cena.
Lá estava ela. O corpo pequeno, mal vestido, enrolado no lençol, o peito descendo e subindo no sono calmo, a televisão tirando o silencio do ambiente. Segurou-se na maçaneta. Ela tinha voltado a ser morena, sorriu. Depois de Selena ter insistido tanto para Demi se livrar do cabelo preto, ela o fez. A luz era muito precária para realmente notar, mas era claro a quantidade significativa de tatuagens que Selena não conhecia.
Óbvio que ela não pararia o mundo, admitiu, nem Selena tinha parado seu próprio.
Selena apoiou a cabeça contra a porta. Nunca teve tanta certeza de seu amor por ela como agora.
O relógio digital marcava quase dez na noite, um horário estranho para Demi já estar dormindo mas não se importou muito. Ela só queria aproveitar esse momento de felicidade antes que o desespero chegue novamente. Antes que os olhos de Demi se abram e foquem o seus.
Selena sentia que poderia observá-la para sempre. Sentia tanta saudade que não conseguia admitir que esse momento era real. Havia reencontrando Demi.
Elas se conheceram no aniversário de dezenove anos de Selena. Demi a comprou uma bebida alcoólica porque conhecia o dono do bar.
"Teu aniversário?" Demi perguntou e Selena acenou a cabeça. "Tá de zoa. E porque você tá sozinha aqui? Seus amigos vão chegar depois?"
"Hm, não, eu... eu não tenho amigos aqui." Respondeu. Selena ficava tensa quando estranhos puxavam conversa. "Não sou daqui. Estou a passeio."
"Isso ainda não justifica." Demi deu de ombros.
Selena observou a garota ao seu lado. O cabelo preto na altura do busto, o delineador preto, o óculos de armação grossa mas o que chamou atenção foi uma linha preta quecortava o pescoço pálido na vertical, começando no meio da garganta e se escondendo na camisa roxa fina abotoada até a gola apertada, que estava dobrada desleixadamente até os cotovelos, exibindo mais algumas poucas tatuagens.
"Quantos anos você tem?" Selena falou sem pensar.
Demi pegou a latina olhando suas tatuagens. "18." Sorriu. "19 mês que vem."
"Sua família não tem problemas com as suas..." Selena não terminou.
"O que? Tatuagem é palavrão?" Demi riu, empurrando o liquido âmbar pela garganta sem senti-lo com a língua.
"Não." Selena falou rapidamente. "Não quis te ofender, por favor..."
"Ei, calma latina." Demi puxou os lábios. "Relaxa."
"Como sabe que sou latina?" Selena estreitou os olhos.
Demi riu, cruzando os braços com os cotovelos no balcão. "Você tem corpo."
"Meu pai é mexicano."
"Eu tecnicamente nasci no México." Demi falou. "É. Mas fui registrada no Texas porque, bem, México estava no meu caminho. Não foi nada planejado."
Selena riu baixo. "Você não respondeu a minha pergunta."
"Que pergunta?" Demi se fez de sonsa. Ela sabia evitar coisas.
"Sobre sua família e as tatuagens."
"Nosso primeiro encontro e já estamos falando sobre família?"
"Encontro? Quê? Eu..." Selena se confundiu.
Demi riu alto. "É brincadeira, latina." Falou. "Ser séria assim faz mal pra saúde."
"Não sou séria." Selena protestou. "É você que ainda não me conhece."
"Isso é um convite?"
Selena abriu a boca para responder e parou quando viu o sorriso pequeno nos lábios vermelhos da garota. Ela era linda, admitiu.
"Talvez." Respondeu simples, voltando o olhar para frente e tomando um delicado gole da bebida forte.
Demi encostou nas costas da cadeira alta, observando a latina até o próprio sorriso cair. Selena podia vê-la pelo espelho do bar e percebeu que Demi não estava preocupada em ser discreta.
Selena balançou a cabeça no silencio. "Ah." Reclamou. Se tivessem intimidade, teria dado um tapa brincalhão no ombro da garota. "Você não me respondeu!"
Demi sorriu simples. "Eu não tenho família."
"Não tem família aqui?"
Demi voltou a colocar os cotovelos no balcão. "Não tenho família em lugar nenhum."
Selena se sentiu desconfortável com a resposta. Não sabia o que responder. Principalmente porque o tom de Demi não demonstrava nenhum remorso ou dor. Ela simplesmente respondeu que não tinha família como se responde o horário para quem pergunta.
"Não se preocupe." Sorriu empurrando levemente o ombro de Selena com o seu. "Sei me cuidar."
"Estou vendo." Selena olhou para as tatuagens.
"Ei, não julgue" Demi riu na frase. "Você gosta de ler?"
Selena franziu o cenho. "Sim, mas o que isso tem a ver?"
"Tem a ver que eu sou um livro." Esticou os braços no balcão lustroso. "Minha pele são as páginas, a maioria está em branco porque ainda não vivi muito, e os desenhos são as palavras". Falava. "Pra entender você precisa colocar tudo junto."
"E qual é a sua história?" Selena perguntou, encostando a ponta do dedo indicador em um desenho de tamanho médio um pouco abaixo do pulso fino.
Demi focou a imagem. Era um triangulo em linhas pretas grossas com um x em cima, como se o estivesse cancelando, em linhas finas. Voltou o olhar para a latina, que exibia um sorriso tímido e ousado ao mesmo tempo.
"Realmente quer saber?" Perguntou.
"Por favor." Selena largou o copo, interessada.
Vicio é uma necessidade do instinto. O instinto é o egoísmo, é procurar prazer sem pensar. O vicio atinge a fase adolescente por que é a idade do humano organizar e aprender a controlar o instinto.
Arte é qualquer feito que exale algum sentimento. Sentimento é um mistério que acontece internamente. Não há definição, só nomes. Raiva é raiva, simplesmente. Necessidade é dividida nos estágios do desespero. Instinto é egoísmo, que é egocentrismo, que é instinto. Um circulo vazio. Uma rua de duas mãos onde uma palavra tenta dar sentido a outra até o estágio onde o último define o primeiro e o circulo fecha, cheio de letras sem aquele espírito entendedor atacando o estudante da filosofia em forma de felicidade.
Essa redundância assombra os sonhos dos loucos.
Há uma lógica para tudo pois perguntas são feitas para serem respondidas, mas essas respostas parecem estar tentadoramente bem aqui na sua frente, mas em outra língua. A lógica é matemática, matemática é exata, exatidão é universal e a única coisa universal é a lógica, fechando mais um ciclo.
Os grandes Entendedores também usavam drogas, em sua maioria. Uma necessidade de retardar a loucura, tentando parar de pensar pelo tempo que a substancia permitir. Uma opção virando instinto por necessidade, que é desespero.
Demi caminhava com rapidez, as mãos escondidas nos bolsos apertados da calca jeans, a mandíbula tensa. Não estava frio, mas o vento de fim de tarde estava gelado.
Parou puxando uma mão no bolso, olhando para o papel mal cortado entre os dedos, procurando o número certo entre as casas. A franja reta já longa demais para conseguir enxergar com conforto.
Mas o tempo chega e a loucura também. Ou melhor, o Entendedor chega à loucura. Ele não fica louco, ele se descobre louco, e se aceita.
Dizem que não há definição para "ser normal" mas, se o objetivo são ciclos cheios de nada, eu tenho palavras para completar a tabela. Ser normal é rir da piada ao mesmo tempo que todos, pelo mesmo motivo que os outros e optar por um hipocrisia inconsciente e saudável.
Todos fogem da loucura, mas talvez ela seja a tradução das respostas dos anjos. Se não temos o resultado final da conta confirmado, somos obrigados a aceitar todas as possibilidades.
O normal não consegue ser laico. Ele não consegue sair de uma perspectiva e observar a situação do alto e, exatamente por isso, ele pensa que só há um caminho. Eles confundem "caminho" com "objetivo". O objetivo é único: o perdão em qualquer aspecto. O objetivo é sempre o Bem, e para o Bem existir é preciso o perdão no senso. O caminho para esse objetivo são infinitos.
Demi bateu na porta educadamente, checando e re-checando se estava na casa certa. A construção parecia normal demais para ela. Parecia uma simples casa de família com um grande jardim na frente e um carro de classe média.
Uma mulher com avental atendeu a porta, um sorriso maternal nos lábios. "Olá querida, posso ajudar?"
Demi se sentiu uma idiota. Estava na casa errada com certeza.
"Hm, desculpe, acho que errei o número." Falou, tentando sorrir, já começando andar para trás.
"Tem certeza?" A mulher confirmou, a voz confusa. "Talvez eu possa te ajudar. Quem sabe."
Demi parou, o cenho franzido. "Pode?"
"Não sei." Deu de ombros, ajeitando o guardanapo no ombro. "O que precisa?"
Voltou a tirar a papel amassado do bolso, limpando a garganta. "O que põe comigo a mão no prato, esse me há de trair." Leu, erguendo os olhos para mulher ao terminar. "26,23."
A mulher sorriu simpática. "Isso foi lindo." Elogiou. "Entre, vou fazer-lhe um chá."
Ser louco é cansar de usar máscaras. É cansar de sorrir e chorar por uma mesma lógica, mas não conseguir parar.
A maioria dos loucos são suicidas. Se matam lentamente por super-analisar e acabam deixando sequelas em suas relações. O louco –antes chamado de Entendedor– aceita seu egocentrismo exatamente por enxergar a lógica do desespero em seus familiares e fazer de tudo para não cair no mesmo buraco. Ele não quer dor e fará tudo por isso. Ele é egoísta para auto-proteção de qualquer tipo de dor e isso o faz um covarde. O pior tipo de covarde: o com máscara de valente.
"Então." A mulher apressou, batendo os dedos no balcão da cozinha, onde Demi bebia o chá gelado.
Demi franziu o cenho em confusa. "Sim?"
A mulher riu baixo. "Você é nova nisso, não é?"
Demi olhou constrangida para o copo em suas mãos.
"Calma, querida." A mulher se aproximou, acariciando o pulso da menina. "Vou dar um jeito em você."
Demi ergueu os olhos para o sorriso simples na mulher. "Você é o... Corvo?"
"Sim, e você, mocinha?"
"Dem... Mitchie. Mitchie... Torres." Mentiu rápido.
"Mitchie Torres?" Corvo repetiu. "Tem certeza? Pareceu meio confusa."
"Claro que tenho certeza do meu nome."
Corvo sorriu. "Vamos lá, menina, qual seu nome de verdade?"
"Mitchie To..." Tentou repetir mas viu o olhar descontente da mulher. Parecia uma mãe dando bronca no filho. "Demi."
"Demi?"
"Demetria Lovato." Demi admitiu. "Demi."
Agora era tarde demais para voltar a trás.
"Quantos anos você tem, Demi?" Corvo perguntou. Demi abriu a boca para responder mas Corvo a interrompeu. "E não minta dessa vez."
Demi suspirou. "13."
"É muito nova para isso, não acha, Demi?"
"Eu..." Começou. "Por favor, eu preciso disso. Preciso do dinheiro."
"O que a sua família pensa disso?"
Demi suspirou novamente, mais cansada que triste. "Não tenho família."
"Todo mundo tem família, Demi."
"Mas eu não." Respondeu.
Corvo deu mais um olhar duro.
"Eu fugi." Demi complementou.
"Por quê?"
"Não era pra eu vir, pegar o bagulho e ir embora?" Demi falou, tentando ser educada com o assunto desconfortável. "Por que todas essas perguntas? Não vai fazer diferença na tua vida."
Corvo recolheu a mão que ainda acariciava a menina, tentando esconder o sorriso divertido. "Desculpe Demi, mas não acho que posso te dar nada."
Os olhos de Demi caíram desesperados. "Não, não, por favor." Implorou. "Sei que sou nova, mas consigo vender. Sou menor, posso entrar em escolas. Confie, eu sei como fazer isso." Falava rápido. "Se lhe der algum tipo de problema, qualquer que seja, pode me despedir ou seja lá o que for, eu só preciso... preciso do dinheiro."
Corvo observou o desespero a sua frente. Era sempre a mesma coisa. "Não, criança." Negou, a voz séria. "Além do mais, ninguém é demitido aqui, boneca. Vender droga não é pra qualquer um. Você quer uma carteira assinada? Vá à cafeteria mais próxima e implore uma vaga para garçonete."
"Mas... me indicaram." Demi rebateu. "Me indicaram por que eu sou boa." Se levantou da cadeira. "Corvo." Era estranho chamar uma mulher de aparência tão normal com o nome de um animal. "Corvo, eu faço o que quiser. Posso ser apenas mais uma criança pra você, mas ninguém sabe o que eu passei, ok? Fugi de casa aos 11 anos e, detalhe, minha casa é no Texas. E com 13 anos estou em Nova Iorque, sem um centavo no bolso, mas viva."
"E por que você fugiu, Demi?" Curvo riu. "Papai não te deixou jogar Nintendo?"
"Não." Negou, a voz cada vez mais firme. "Fugi por que minha mãe era uma puta, meu pai um bêbado e minha irmã mais velha nojenta." Falou. "Não tínhamos dinheiro para comer, mas minha mãe misteriosamente fazia unha toda semana e nunca faltava cerveja na geladeira." Se preparou para continuar a história mas parou. "Quer saber? Ok. Foda-se. Eu sou melhor que isso. Passo fome, mas não me humilho assim."
Deu uma ultima focada no olhar indiferente da mulher a sua frente e virou as costas, andando pesadamente para a porta de saída.
"Ei, Demi." Ouviu ao abrir a porta, parando no meio do caminho. "Volta aqui, criança."
Virou-se, estreitando os olhos para Corvo, que tinha aquele mesmo sorriso maternal de antes.
"Não me chame de criança." Falou dura.
"Ok." Corvo sorriu. "Vem. Vou te preparar um banho."
