CAPÍTULO 1
Ontem à noite meu mundo inteiro desabou. Agora estou fugindo, com medo.
Já aconteceu de você estar seguindo em frente, vivendo sua vida, vivendo a sua realidade e, de repente, acontece uma coisa que parte seu mundo ao meio? Você vê ou ouve alguma coisa, e, de repente, tudo o que você é, tudo o que está fazendo, se estilhaça em mil pedaços graças a uma amarga percepção?
Aconteceu comigo na noite de ontem.
Eu estava em Londres. Com meus amigos, como sempre. Estávamos saindo à noite, como sempre.
— Não, não, vire aqui! — Demetri se inclinou para a frente e cutucou o motorista do táxi no ombro. — Aqui!
O motorista, os ombros enormes e largos mal cabendo num suéter e num colete de lã quadriculado, se virou e lançou a Demetri um olhar que teria feito uma pessoa normal voltar para o seu lugar e ficar muito quieta.
Mas Demetri não se parecia em nada com uma pessoa normal: era mais bonito do que a maioria, mais escandaloso do que a maioria, mais engraçado do que a maioria e, só Deus sabe, mais burro do que a maioria. Tínhamos acabado de sair de uma boate onde, do nada, havia começado uma briga de faca. Duas garotas malucas puxavam cabelos e gritavam palavrões, e então uma delas sacou uma faca. Meu grupo quis ficar e assistir — eles adoravam coisas assim —, mas, você sabe, basta ter visto uma briga de faca para saber como são todas. Eu os arrastei dali e caímos na noite, dando a sorte de pegar um táxi antes que o frio nos deixasse sóbrios.
— Aqui! Bem no meio do quarteirão, meu bom homem! — disse Demetri, ganhando do motorista um olhar assassino que me deixou agradecida mais uma vez pela restrição a porte de armas na boa e velha Inglaterra.
— Meu bom homem? — falou Chelsea ao meu lado, prendendo o riso.
Nós seis estávamos espremidos na parte de trás desse grande táxi preto. Mais gente podia ter ido conosco, mas achamos que seis imortais bêbados era o máximo que um táxi londrino podia suportar, e isso se ninguém vomitasse.
— Sim, Alfred! — prosseguiu Chelsea com alegria. — Pare aqui.
O motorista enfiou o pé no freio e todos fomos lançados para a frente. Demetri e Heide bateram com a cabeça na divisória de vidro entre nós e o motorista. Felix, Jacob e eu fomos catapultados dos nossos lugares, caindo no chão sujo do táxi rindo, um por cima do outro.
— Ei! — falou Demetri, esfregando a testa.
Jacob me encontrou no meio do emaranhado de braços e pernas.
— Você está bem, Bells?
Fiz que sim, ainda rindo.
— Saiam do meu táxi! — gritou o motorista.
Ele saltou do banco da frente, deu a volta e abriu nossa porta. Eu estava encostada nela, e caí imediatamente na sarjeta, batendo a cabeça no meio-fio de pedra.
— Ai! Ai!
A sarjeta estava molhada, pois obviamente estivera chovendo. A dor, o frio e a umidade mal foram percebidos por mim — tirando a briga de faca, a noite de celebração intensa tinha me envolvido num casulo quente de bem-estar confuso.
— Fora! — falou de novo o motorista, me pegando pelos ombros para que eu saísse do caminho. Ele me largou na calçada e esticou o braço na direção de Jake.
Certo, nesse ponto dei um oi para a raiva e recobrei um pingo de consciência. Franzi a testa e massageei meu ombro, sentando ao mesmo tempo. Estávamos a um quarteirão do Dungeon, outro decadente bar subterrâneo aonde costumávamos ir. E mesmo a tão pouca distância de lá, a rua estava escura e deserta, com terrenos vazios se alternando com casas incendiadas onde se fumava crack, dando à rua a mesma aparência de uma boca banguela.
— Tudo bem, tire as mãos de mim! — disse Jacob, caindo na calçada ao meu lado. O rosto dele estava crispado de fúria e ele parecia mais desperto do que eu imaginaria.
— Malditos! — rosnou o motorista. — Não quero ninguém do seu tipo no meu táxi! Garotos ricos que acham que são melhores do que todo mundo! — Ele se inclinou para dentro do táxi, pegando o colarinho do casaco de Heide enquanto Demetri saía sozinho.
— Argh, vou vomitar — disse Heide, metade dentro, metade fora do táxi. Demetri saiu do caminho com um salto na hora em que o organismo de Heide se purificou de uma noitada de uísque barato, bem nos sapatos do motorista.
— Puta merda! — gritou o motorista, sacudindo os pés com nojo.
Demetri e eu rimos. Não conseguimos controlar. Sr. Motorista de Táxi Malvado.
O motorista pegou os braços de Heide com a intenção de jogá-la na calçada e, de repente, Jake murmurou alguma coisa e abriu as mãos.
Tive uma fração de segundo para pensar "Hã?" e então o motorista do táxi cambaleou como se tivesse sido atingido por um machado. Heide escapou das mãos dele e ele se encolheu, a coluna se curvando quase no meio. Então o homem foi lançado para trás, caindo pesadamente no asfalto, o rosto pálido e os olhos arregalados.
Uma onda de náusea e cansaço tomou conta de mim — talvez eu tivesse bebido mais do que pensava.
— Jake, o que você fez? — perguntei, perplexa, enquanto me levantava. — Usou magick nele? — Dei uma risadinha. A ideia era meio ridícula. Eu me apoiei no poste, erguendo meu rosto para a neblina fria. Depois de respirar fundo algumas vezes, me senti melhor.
Heide piscou sem entender direito e Demetri riu.
Jacob ficou de pé, franzindo a testa enquanto olhava para as novas botas Dolce & Gabbana, agora respingadas de chuva.
Felix e Chelsea saíram pelo outro lado do táxi e se juntaram a nós. Olharam para o motorista, caído e paralisado no asfalto molhado, e balançaram a cabeça.
— Muito bem — disse Felix para Jake. — Muito impressionante, Sr. Mágico. Pode deixar o pobre coitado se levantar agora.
Estávamos nos entreolhando e observando o motorista. Não conseguia me lembrar da última vez que tinha visto alguém usar magia assim. Bem, talvez para conseguir uma boa mesa em um restaurante ou para pegar o último trem do metrô...
— Acho que não, Eli — falou Jacob, o rosto ainda crispado. — Acho que ele não é um cara muito legal.
Felix e eu nos entreolhamos. Dei uma batidinha no ombro de Jacob. Ele e eu éramos parceiros havia quase um século, e nos conhecíamos muito, muito bem, mas essa fúria e frieza eram coisas que eu não tinha visto muitas vezes.
— Certo, deixe-o então. Ele ficará bem em alguns minutos, né? Vamos, estou com sede. E acho que Heide também está agora.
Heide fez uma careta.
— Eca.
— É, vamos — disse Chelsea. — Tem uma banda tocando hoje e quero dançar.
— Quando ele se recuperar, estaremos bem longe. — Dei um puxão na manga de Jake.
— Espere — disse Jake.
— Deixa ele — repeti. Eu me senti um pouco mal em deixar o motorista na garoa fria, mas ele ficaria bem quando o feitiço passasse.
Jacob afastou minha mão, me pegando de surpresa. Enquanto eu observava, ele abriu as duas mãos em direção ao motorista, os lábios em movimento. Não ouvi o que ele disse.
Com um som alto e horrível de coisa se partindo, o motorista se contorceu para cima, uma vez, a boca se abrindo em um grito que ele não conseguia emitir.
Mais uma vez senti uma onda de náusea e parecia que meus olhos tinham sido cobertos por uma película escura. Pisquei várias vezes, esticando o braço para me apoiar no braço de Chelsea. Ela riu quando cambaleei, obviamente culpando a bebida. Alguns momentos depois, minha visão clareou e eu me endireitei, olhando para Jake e para o motorista.
— Agora o quê? O que você fez?
— Ah, Jake — disse Felix, balançando a cabeça. — Tsc, tsc. Um tanto desnecessário, sem dúvida. Bem, vamos em frente então. — Ele saiu andando pela calçada em direção ao Dungeon, fechando o casaco para se proteger do frio.
— Jake, o que você fez? — repeti.
Jake deu de ombros.
— O cara mereceu.
Heide, ainda um pouco pálida e enjoada, ficou olhando do motorista para Jacob com cara de boba. Ela tossiu e balançou a cabeça com força, depois saiu andando com Felix. Soltei o braço de Chelsea e ela deu de ombros, pegando o braço de Demetri. Eles seguiram os outros dois, e logo o som de seus passos desapareceu na escuridão.
— Jake — falei, surpresa pelos outros terem ido embora. — Jake, você... quebrou a coluna dele com magick? Onde aprendeu a fazer uma coisa dessas? Não... você não fez isso. Não é?
Jake olhou para mim nessa hora, uma leve expressão de divertimento no rosto misterioso, moreno e belo. O cabelo escuro estava salpicado de pequenos diamantes de chuva, brilhando com a iluminação da rua.
— Querida. Você viu como ele era — disse ele.
Olhei para ele, depois para o motorista, ainda imóvel, o rosto uma máscara de dor e pavor.
— Você quebrou a coluna dele? — repeti, me sentindo repentinamente sóbria e consciente de uma maneira horrível. Meu cérebro saltava ao redor do pensamento como se ele fosse uma brasa quente a ser evitada. — Você usou magick para... Meu Deus. Certo, muito bem, vá em frente e conserte-o então. Quero uma bebida, mas posso esperar.
Eu mesma não podia ajudar o motorista. Não fazia ideia de onde Jake tinha aprendido um feitiço como aquele, e nem como anulá-lo, desfazê-lo, sei lá. Na maior parte do tempo eu me esquivava de magick, a magia com a qual os imortais nascem, que faz parte de nós naturalmente. Era problema demais e geralmente me fazia passar mal. Na última vez que eu tinha me interessado por ela, o máximo que fiz foi conseguir que uma pessoa desse de cara com uma porta ou derramasse café em si mesma. E isso tinha sido séculos atrás. Nada como aquilo que acabara de acontecer.
Jacob me ignorou e olhou para o motorista.
— Certo, camarada — disse ele em voz baixa.
Os olhos do motorista, enlouquecidos de choque e dor, se focaram com dificuldade.
— É isso que acontece quando se é grosseiro com meus amigos, está vendo? Espero que tenha aprendido uma lição.
O motorista não conseguia nem gemer, e me dei conta de que ele estava sob um feitiço de silêncio. Eu só tinha visto um desses uma vez ou duas em centenas de anos. Quanto mais...
— Vamos lá, desfaça — falei com impaciência. Nunca tinha visto Jake assim, fazendo uma coisa dessas. — Já deu uma lição nele. Os outros estão esperando. Desfaça para que possamos ir.
Jake ergueu os ombros e os soltou, depois pegou minha mão de uma maneira grosseira e dolorosa.
— Não sei desfazer, meu amor — disse ele, e levou minha mão até os lábios para beijá-la. Ele me puxou em direção ao Dungeon, e olhei para trás na direção do motorista.
— Não sabe desfazer? Você quebrou a coluna dele para sempre? — Fiquei olhando para Jake, meu melhor amigo havia um século. Ele sorriu para mim, o belo rosto angelical com uma auréola provocada pela luz do poste.
— Se você vai fazer um trabalho, que faça por inteiro — disse ele alegremente.
Meu queixo caiu.
— O que vem depois, vai botar Felix num cortador de madeira?
O tom de voz foi subindo enquanto a névoa crescente molhava meu rosto. Jake riu, beijou meu cabelo e me empurrou para a frente. No decorrer desses instantes, vi uma coisa diferente nos olhos dele; mais do que indiferença, mais do que uma necessidade casual de vingança. Jake tinha gostado de quebrar a coluna daquele homem, gostara de ver alguém se contorcendo de dor e medo. Tinha sido excitante para ele.
Meu cérebro deu uma reviravolta. Será que eu devia ligar para a emergência? Seria tarde demais para o motorista? Será que ele ia morrer, já estava morrendo? Afastei-me de Jake e comecei a me virar para voltar, mas em poucos segundos senti as batidas vibrantes da música de alguma banda, passando pelo chão e chegando aos meus sapatos. O Dungeon parecia outro mundo, outra realidade, me chamando, me atraindo com seu barulho, me permitindo deixar o terrível choque do motorista paralisado do lado de fora. Eu queria tanto apenas me deixar levar.
— Jake... mas... você tem...
Jake me lançou um olhar divertido, e um minuto depois estávamos descendo um íngreme lance de escadas escorregadio por causa da chuva. Fiquei dividida pela indecisão quando Jake ergueu o punho e bateu na porta pintada de vermelho. Senti como se tivéssemos descido a escada para o inferno e estivéssemos esperando para sermos aceitos. Uma pequena fresta foi aberta na porta e Afton, o segurança, fez um gesto para nós. A porta se abriu e o som alto de música veio em nossa direção e nos atraiu para dentro, para a escuridão iluminada por pontas de cigarro, as centenas de vozes competindo com o som da banda, o cheiro de álcool suavemente chegando a mim cada vez que eu inspirava.
O motorista, do lado de fora — aquela pareceu ser minha última chance. Minha última chance de tomar uma atitude, de agir como uma pessoa que se importava, como uma pessoa normal.
— Bellsy! — Fui envolvida por um abraço enorme e um tanto sem equilíbrio. — Amei seu cabelo! — gritou minha amiga Makenna o mais alto que pôde no meu ouvido. — Vamos dançar! — Ela colocou o braço em torno dos meus ombros e me puxou para o salão escuro e de teto baixo.
Hesitei apenas um segundo.
E foi assim, de repente, que me permiti deixar o mundo exterior para trás, me permiti desaparecer no barulho e na fumaça. Fiquei horrorizada, e, se você soubesse o tipo de coisa em que eu costumava me meter, essas palavras teriam pesado muito mais para você. Afastei-me de Jake, sem saber o que pensar. Ele tinha acabado de fazer o que eu achava que devia ser a pior coisa que eu o tinha visto fazer. Pior do que o incidente com o cavalo daquele prefeito nos anos 1940. Pior do que com aquela pobre garota que quis se casar com ele nos anos 1970.
Aquilo tinha sido um desastre. Eu conseguira lidar com aquilo tudo sozinha, fiz com que fizessem sentido para mim. Mas dessa vez estava sendo mais difícil.
Me dando um último e lindo sorriso, Jake mirou a multidão que já emitia sinais de interesse, tanto de garotas como de garotos. Jake era irresistível, um ímã sedutor, e a maioria das pessoas, tanto humanas quanto imortais, ficava indefesa sob o encanto que escondia, um lado que ficou, de repente, muito mais sombrio do que eu imaginava.
Vinte minutos depois, eu estava aos amassos em um sofá nojento com Paul, amigo de Makenna, que estava bêbado e era um amor. Eu queria me afundar nele, ser outra pessoa, ser a pessoa que Paul via ao me olhar. Ele não era imortal, e não sabia que eu era, mas era uma distração bem-vinda à qual me entreguei desesperadamente. As pessoas conversavam e fumavam e bebiam ao redor de nós enquanto eu passava as mãos por debaixo da camisa dele e ele enroscava as pernas em mim. Ele enfiou os dedos no meu cabelo preto curto, e com um choque repentino senti uma brisa morna inesperada no pescoço.
Eu já estava me afastando dele, pegando minha echarpe e rapidamente a enrolando em torno do pescoço quando ouvi Jake dizer:
— Bells? O que é isso na sua nuca?
Olhei por cima do ombro para Jake, que estava parado na beirada do sofá, uma bebida em uma das mãos, um longo cigarro ardendo na outra. Seus olhos eram buracos negros, brilhando para mim na escuridão.
Meu coração batia com força. Não reaja de forma exagerada, Bella.
— Nada. — Dei de ombros e caí nos braços de Paul, e ele me abraçou de novo.
— Bells? — A voz de Jake era baixa, porém determinada. — Sabe, não me lembro de já ter visto sua nuca, agora que pensei nisso.
Forcei uma risadinha e olhei para ele quando Paul tentou me beijar de novo.
— Não seja doido, é claro que viu. Agora me deixe em paz. Estou ocupada.
— É uma tatuagem?
Apertei mais minha echarpe em volta do pescoço.
— É. Está escrito: Se você consegue ler isso, está perto demais. Agora cai fora!
Jake riu, para meu alívio, e se afastou. Quando o vi pela última vez, uma garota bonita com um vestido de cetim apertado estava se enroscando nele como uma cobra.
E não me permiti pensar no motorista de táxi de novo. Quando o pensamento, a visão, se intrometia, eu apertava bem os olhos e bebia mais um pouco. Mas na manhã seguinte tudo voltou com força: o rosto do motorista, a dor impressa nele. Ele jamais andaria e jamais dirigiria de novo, porque Jacob tinha partido sua coluna e o deixado numa rua chuvosa de Londres, pior do que morto.
E eu não tinha feito nada, nada. Eu fui embora.
A coisa boa de ser imortal é que não dá para beber até morrer literalmente, como acontece com alguns universitários. A coisa ruim de ser imortal é que não dá para beber até morrer literalmente, então você acorda na manhã seguinte, ou talvez dois dias depois, e sente tudo o que não precisaria sentir se tivesse tido a sorte de morrer.
Estava meio claro lá fora quando finalmente abri meus olhos por mais do que alguns segundos. Dei uma examinada no quarto e vi uma janela. A luz que entrava era pálida e meio rosada, o que significava anoitecer ou amanhecer. Era um ou o outro. Ou talvez o bairro estivesse em chamas. Era sempre uma possibilidade.
Eu sabia que seria ruim tentar me sentar, então fui devagar, mexendo uma pequena parte de mim de cada vez. A última coisa foi a cabeça, que ergui com cautela a alguns centímetros do colchão. As rosas amarelas desbotadas do colchão lentamente foram ficando nítidas. Só colchão, sem lençol. Janela com luz. Paredes de tijolo pintadas de cor escura, como uma fábrica ou algo parecido.
Virei minha cabeça devagar e vi outro corpo adormecido, um cara com cabelo verde espetado, uma grossa corrente de prata ao redor do pescoço, uma tatuagem retorcida de dragão cobrindo a maior parte das costas. Hum, Phil? Peter? Percy? Alguma coisa com P, eu tinha quase certeza.
Atingi uma posição quase sentada vários minutos depois, e aí imediatamente senti uma náusea quando meu corpo tentou se livrar das toxinas que eu tinha ingerido na noite anterior.
Não cheguei até o banheiro. Foi mal, Peter.
Sentindo-me vazia, trêmula e desejando que a imortalidade não fosse tão incrivelmente literal, vi que ainda estava totalmente vestida, o que significava que ou o carinha com P ou eu, ou até mesmo os dois, estava chapado demais para aprofundar... nosso contato na noite de ontem. Melhor assim. Por reflexo, procurei a echarpe e a encontrei ainda amarrada no meu pescoço. Relaxei um pouco, depois me lembrei de Jake parado ao meu lado, perguntando sobre a marca na minha nuca. Não consegui acreditar que aquilo tinha acontecido na mesma noite do motorista. Engoli em seco, fiz uma careta e decidi pensar nisso depois.
Minha jaqueta de couro e uma das minhas lindas ankle boots de pele de lagarto verde tinham sumido inexplicavelmente, então peguei o pé que encontrei e saí furtivamente, embora nem mesmo um terremoto pudesse acordar Percy. Eu tinha certeza de que ele estava vivo — o peito dele parecia subir e descer. Eu me lembrava vagamente de tomar duas bebidas a cada uma que ele tomava.
Passei por cima de mais dois corpos adormecidos ao sair. Era um prédio grande que parecia um armazém, provavelmente nos arredores da cidade. Meu ombro e minha bunda doíam, e todos os outros músculos reclamaram quando desci mancando os degraus industriais de tijolo. Estava muito frio do lado de fora, e o vento jogava lixo de um lado para o outro na rua deserta.
Pelo menos não estava chovendo, pensei, e aí tudo voltou para o meu cérebro, contra minha vontade: a noite anterior, tudo o que tínhamos feito, a chuva, a briga de faca, eu caindo na calçada, Jake quebrando a coluna do motorista, eu quase perdendo a echarpe na boate, na frente de todo mundo. Meu estômago se revirou de novo e parei por um momento, inspirando o ar frio enquanto examinava os detalhes, o horror tomando conta de mim de novo. Onde Jacob tinha aprendido aquele tipo de magick? Pelo que eu sabia, ele não tinha demonstrado conhecer nenhuma e, no século que passamos juntos, eu nunca o vira fazer muito, e certamente nada tão grandioso e sombrio. Nenhum dos amigos em nosso círculo imediato tinha aprimorado as habilidades de usar magia. Recostei-me na parede de concreto pichada do armazém para enfiar o pé descalço na única bota que me restara.
O ar frio penetrou no meu nariz e fez com que ele começasse a escorrer, então de repente a manhã ficou horrivelmente iluminada, horrivelmente clara. Jake tinha feito uma coisa horrível na noite anterior com magia poderosa, do nada. E eu tinha feito uma coisa tão horrível quanto ele, mesmo não tendo nada a ver com magick. Tinha assistido Jake quebrar a coluna daquele cara, e então simplesmente... fui embora. Fui embora para dançar em uma boate. Qual era meu problema? Como pude fazer aquilo? Será que alguém tinha encontrado o motorista à noite? Alguém provavelmente o encontrara, claro. Apesar de aquele bairro ser praticamente deserto. Apesar de ter sido tarde da noite. E de estar chovendo. Mesmo assim, alguém devia tê-lo encontrado e o levado para o hospital. Certo?
E, para completar, Jake tinha visto a marca na minha nuca. E podia muito bem não ter se esquecido. Que irônico. Eu tinha a obsessão de manter o pescoço coberto o tempo todo nos últimos 449 anos e, de repente, uma noite, esse esforço foi por água abaixo. Jake saberia o significado do que tinha visto? Como? Ninguém sabia. Ao menos ninguém que ainda estivesse vivo. Então por que eu estava com tanto medo?
E todos esses pensamentos horríveis e febris levam ao começo.
Ontem à noite meu mundo inteiro desabou. Agora estou fugindo, com medo.
