Prólogo
Demorou alguns segundos para compreender quem estava à sua porta. É de se imaginar que o reconhecimento deveria ser automático. Instintivo. Mas não é assim que as coisas funcionam. Precisou ver os olhos dela. Os olhos dele. Só então entendeu. Abrira a porta para o maior de seus arrependimentos.
Sua vida estava perfeita. Estava de volta aos trilhos. Estava controlada. Tinha o emprego de seus sonhos. O apartamento que sempre imaginou para sí quando era criança. E o namorado que era perfeito para ela. Por que a menina teve que aparecer? Como lidaria com isso? Mas então entendeu. Nada pode ser mantido em segredo para sempre. Foi muita ingenuidade de sua parte pensar diferente. Queria muito saber quem fora o idiota que disse que uma mentira contada mil vezes torna-se verdade. Ele estava totalmente enganado. A menina na sua frente era muito real. E a lembrava dele. Teria sido mais fácil se não fossem tão parecidos.
Decidiu abrir totalmente a porta, e deixar a garota entrar. Era o mais correto. Era o justo. Mas e agora? O que faria? Isto não deveria estar acontecendo. Não agora, pelo menos. Não dentro de 7 anos. Entrou em modo automática enquanto tentava reorganizar seus pensamentos. Virou a anfitriã perfeita, lidando com tudo com maestria. Mas ignorando as questões importantes. Não podia ter medo de uma criança de 11 anos. Mas ela tinha. E precisava de espaço. Então foi para a cozinha, com a desculpa de buscar algo para tomarem.
Ligou a torneira e ficou ouvindo a água cair, enquanto tentava se acalmar. Olhou para suas mãos. Elas estavam em perfeito estado. Mas sentia uma vontade incontrolável de arrancar suas cutículas. No momento, achava que a dor poderia nublar qualquer outro sentimento que estivesse tendo. E sentia muita vontade de tomar um café irlandês bem forte. Cafeína misturada com whisky sempre tornava qualquer situação menos obscura. Mas se controlou. Precisava evitar qualquer impulso. Decidiu olhar a geladeira. Viu que não tinha nada além de chá. Suspirou. Teria que servir.
Voltou para sala e olhou para sua visita. A garota estava no sofá, analisando os detalhes do comodo. Só de observar o perfil da menina, foi capaz de voltar no tempo. Sentiu falta de ar. Quase como se tivesse levado um soco no estômago. Parece que era a mesma de 12 anos atrás. Fraca. Inútil. Querendo aprovação. Respirou fundo. Tentou se recompor. Hoje, eu era mais do que tudo isto.
Sentou no sofá, em frente à visita. Realmente, era difícil nublar a profusão de sentimentos que estava tendo, ainda mais estando sentada na frete da menina. Medo. Da conversa que iriam ter. Que alguém descobrisse sobre ela. Do julgamento da menina e dos outros. De como iria isso poderia influir na sua vida atual. Vergonha. Do que fez na adolescência. De que outros descobrissem o que ela fez na adolescência. Orgulho. Pela coragem da menina, que decidiu enfrentá-la de frente. Tinha certeza que com a idade dela, nunca teria tido coragem por fazer isso, muito menos se portaria desta forma. Raiva. De todos que colaboraram para essa situação acontecer. Dos pais da menina, que nunca deviam ter informado seu contato para a menina. Da menina, que não desapareceu de sua vida como deveria. E mais importante, dela mesma.
E no final disto tudo, por mais que quisesse negar, havia amor. Era difícil não amar uma parte sua. Por mais difícil que a situação fosse. A menina era a única pessoa sem culpa na situação. Mesmo antes, sempre que pensava nesta situação, queria voltar no tempo. Desfazer tudo. Tudo.
Respirou fundo e voltou para realidade. Estava na hora de enfrentar a situação. Ser adulta. Encarar seu maior erro. E dar algumas respostas.
Como foi que tudo isso começou?
