Título: Second Mind
Autor: Tachibana (Rikku)
Contagem de Palavras: 5.811
Estilo: Redação
Gênero: Aventura/Romance
Tipo: Capítulos (Em Desenvolvimento)
Rating: T (palavras de baixo calão, insinuações sexuais, sangue, violência)
Data de Postagem: 16/09/07
Disclaimer: Bomberman, seu nome, logotipo e relacionados pertencem a Hudson Soft, e não são usados de maneira alguma para fins lucrativos.
Sumário: Quando uma empresa é tão poderosa a ponto de interferir na política, problemas estão fadados a acontecer. E quando crianças que não querem ser heróis acabam envolvidas, só lhes resta encontrar uma saída, e tentar sobreviver.
Motivos do Autor: Existem pouquíssimas, talvez nenhuma, fics decentes de Bomberman, com temática séria e que não envolva piadinhas tolas com as gafes do jogo. Em português, não pude encontrar sequer uma pessoa que tenha tido o incentivo para criar uma fic desse tipo, assim, resolvi fazê-lo.
Mundo
Estamos em 20XX. Ainda que modesta se comparada a tantos filmes de ficção científica do passado, a tecnologia dos tempos atuais não pode ser considerada nada menos que magnífica, sendo a mente do indivíduo o objeto mais explorado por ela. Quase tudo faz uso da tão bela realidade virtual, tanto as de pequeno porte, utilizando-se de visores, quanto as mais eficientes e complexas, que se enquadram em um sistema que não me convém explicar neste momento, mas que se aprofunda na mente com uma intensidade tão grande que é possível afetar o próprio corpo. E, por mais incrível que pareça, tudo isso foi idealizado por apenas uma empresa, uma pequena empresa que a princípio produzia apenas produtos para computadores pessoas, mas que foi lentamente se expandindo, eventualmente passado para o status de produtora de jogos, e todos pensaram que ficaria por isso mesmo. Assim, quando ela lançou seu primeiro módulo de realidade virtual, não foi de surpreender que seu nível e reputação se elevassem consideravelmente, e essa estava longe de ser a última das surpresas, pois de tempos em tempos a agora famosa empresa inovava com uma de suas criações. Passados alguns anos, ela se tornou tão poderosa e necessária para a população que suas ações poderiam interferir até mesmo na política.
O nome dessa empresa? Hudson.
Em meados de 1983 foi lançado um jogo, que consistia em nada mais do que um personagem, ainda sem forma definida devido às limitações gráficas da época, que deveria achar seu caminho através de um labirinto de blocos utilizando bombas para, literalmente, explodir os inimigos presentes. Apesar de não ter feito um sucesso estrondoso, foram lançadas inúmeras continuações para ele, e pouco a pouco os personagens foram ganhando profundidade. O principal deles era um indivíduo, um garoto, que usava uma roupa branca e azul e tinha em lugar de sua cabeça um enorme capacete contendo apenas um visor, que mostrava os olhos extremamente expressivos do personagem, que certa vez foi eleito como um dos personagens mais carismáticos de todos os tempos, e com o passar dos anos, acabou por se tornar um dos símbolos mais reconhecidos do mundo. Esse jogo se chamava Bomberman, e nos tempos atuais, ele é conhecido por sua última e mais perfeita versão, sendo possível jogá-la online usufruindo da melhor tecnologia de realidade virtual jamais desenvolvida, não sendo limitado apenas a crianças, ainda que grande parte delas faça parte da comunidade do jogo, que constitui quase um terço da população mundial ativa, possivelmente mais. E essa história trata sobre três crianças que faziam parte deste terço.
O último dia de aula é sempre o mais agitado, e nenhuma criança tem em sua mente algo que não seja o fim das aulas, ou o que fazer quando elas acabarem. Em todos os colégios do mundo se via a mesma cena: os pequenos saindo felizes e exaltados pelos portões ao som do último badalar do sinal. Foi assim em nossa escola também.
"Wah!" disse um garoto, soando bastante aliviado.
"Feliz com as férias, Shiro?" perguntei, em um tom desinteressado.
Éramos duas crianças que, ao tocar do sinal, acabavam de terminar a quarta série do ensino fundamental. Eu, com meu olhar sério e concentrado, apenas observava meu amigo pular alegremente enquanto repassava tudo o que faria nas férias, não pretendendo olhar para um livro por, no mínimo, dois meses.
Shiro Yüji, dez anos.
Shiro era um garoto normal, a perfeita imagem de uma criança da sua idade. Tinha expressões leves, de modo que a primeira vista não se pudesse imaginar ele de outra maneira que não com seu largo sorriso repleto de dentes de leite, um desses deixando um enorme vazio na parte da frente, não que ele se importasse muito com tal coisa. Essa era uma concepção errada, é claro, pois ele ficava emburrado constantemente. Seus cabelos eram, ainda que muito lisos, bagunçados, e por mais estranho que possa parecer para um garoto japonês que nunca tingiu o cabelo e que nenhum dos ancestrais é estrangeiro, tinham um tom loiro extremamente claro, que chamavam a atenção em todo lugar, dada sua pouca idade. Ele parecia não gostar muito deles, em parte porque precisava afastá-los do rosto constantemente se quisesse enxergar alguma coisa, e sua mãe não o deixava cortar por algum motivo além da minha compreensão. Entretanto, contrariando as expectativas dos desavisados, seus olhos eram escuros como um breu, sem nada de especial neles. Seu uniforme era uma ótima demonstração de como as aparências podiam enganar, pois embora Shiro parecesse um anjinho, ele na verdade era mais do que levado. Para se ter uma idéia, naquele dia uma festa, organizada pelos professores, havia acontecido em nossa sala, e Shiro, que chegou lá com o uniforme carinhosamente passado e engomado pela mãe, agora se unia a uma mistura de lama e chocolate. E os professores se arrependeram e quiseram enforcar o idiota que teve a idéia de fazer um bolo de chocolate ou uma festa.
Eu, por outro lado, sempre tive feições muito sérias, meus cabelos sendo negros e sem nenhuma característica que chamasse atenção, e meus olhos, por uma estranha ironia do destino, azuis, mas que ficavam sempre ocultos por trás do reflexo dos meus óculos. Eu parecia um intelectual, na verdade, ou então um adulto encolhido. Tinha joelhos ossudos e braços fracos, quase sempre carregando livros que eu lia nas horas vagas. E meu uniforme continuava impecável, mesmo com a festa, isso porque dispensei a brincadeira e pega-pega idealizada por um outro lado e fiquei sentado conversando com um dos professores, este minutos depois completamente desesperado e tentando parar uma guerra de comida. Como uma simples brincadeira de pega-pega havia resultado nisso, eu nunca vou saber, mas tenho certeza absoluta de que teve um dedo de Shiro na situação.
Midoru Kudo, meu nome.
Nome esse que fora reduzido a um simples "Mido" pelas outras crianças, coisa com a qual eu tive que me acostumar, inclusive para os professores que como sempre acham que gostamos dos nossos apelidos. No primeiro dia de aula, anos antes, acabei fazendo amizade com Shiro, não que isso tenha sido um ato de minha vontade. Eu havia apenas me sentado em um canto e começado a rabiscar algo em uma folha, algo com matemática, visto que eu achava que a escola seria o melhor lugar para praticá-la. Um pequeno equívoco de minha parte querer estudar, um absurdo, numa sala cheia de crianças que pulavam e brincavam o dia inteiro. Shiro simplesmente chegou, tirou a folha de minha mão e perguntou, inocentemente, se eu não queria brincar com eles. Depois dessa, não tinha nem como recusar, e assim, apesar de nossas personalidades conflitantes, acabamos nos tornando melhores amigos. Naturalmente, havia sempre alguém, geralmente algum professor metido a filósofo, que comentava sobre isso. Algo mais ou menos assim:
"Vocês são como preto e branco, sabia?" diziam.
"Não." eu replicava, calmamente. "Somos como branco e verde¹."
E apesar de brigarmos muito freqüentemente, no final sempre acabávamos rindo da idiotice um do outro, fazendo as pazes num minuto, como quase toda criança de nossa idade. A maioria das nossas brigas valia-se da pouca inteligência dele e de uma velha mania minha de apontar todas as suas gafes sarcasticamente, como quase aconteceu naquele dia.
"Você foi sarcástico de novo, não foi?" disse ele, um pouco emburrado. Eu ri discretamente. Se eu não tivesse o ensinado o significado da palavra sarcasmo, grande parte disso não estaria acontecendo. Lembro-me vagamente do dia. Ele havia dito algo muito idiota, não estou lembrado do que, e eu concordei ironicamente, mas infelizmente um professor estava passando ao nosso lado bem naquela hora, e prontamente me disse que eu não deveria ser sarcástico com meus amigos. Típica lição de moral de professor que não tem mais o que fazer. Infelizmente, um professor havia passado ao nosso lado bem naquela hora, e havia me dito para não ser sarcástico com meus amigos. Típica lição de moral de professor que não tem mais o que fazer. Shiro, então, passou o dia me perguntando o que era sarcasmo, coisa que eu tentei explicar tantas vezes quanto meu cérebro podia agüentar. Em meados da sexcentésima septuagésima quinta vez, ele finalmente entendeu, e em seguida me deu uma pancada na cabeça, fazendo-me constatar que não deveria ter explicado coisa nenhuma. Agora, toda vez que eu dizia algo que soasse um pouco diferente do normal, ele me perguntava se era sarcasmo. Após alguns segundos, eu quase sempre respondia, de maneira ainda mais indiferente, que sim.
Dessa vez, porém, estava decidido a não causar brigas, e mudei de assunto. Foi então que, ao longe, vimos uma garota de cabelos castanhos se aproximar.
Momoko Ueda, quatorze anos.
Momoko era, ainda que não gostasse muito do termo, a babá de Shiro. Eles se conheceram por pura coincidência, em uma festa dada pelos meus pais. Infelizmente, eu estava visitando um parente meu na ocasião, coisa que eu jamais faria se pudesse voltar no tempo, mas a família de Shiro havia sido convidada e ele precisou ir junto por falta de quem cuidar. Acabou ficando sentado em meu quarto, brincando, e foi uma sorte tremenda (de acordo com ele, lógico) uma garota, que na hora procurava o banheiro, ter esbarrado na porta e o visto ali, sozinho. Ela então ofereceu companhia, e os dois acabaram ficando amigos, isso tudo quando nós tínhamos apenas quatro anos de idade, e a garota, oito. E dois anos depois, quando a mãe de Shiro decidiu recomeçar a Faculdade, a tão esperta e dedicada Momoko foi escolhida para cuidar dele, o que acabou reforçando tal amizade. Isso não significa que ela não pudesse ser severa, e toda vez o via, ou melhor, nos via fazendo algo de errado, era prelúdio para um grande sermão, e ocasionalmente dolorosas palmadas, com as quais nossas mães, isso porque ela infelizmente acabou se tornando minha babá também, concordavam completamente. Shiro a achava uma garota muito bonita, opinião que eu não partilho. Tinha cabelos castanhos, não muito longos, e olhos dessa mesma cor.
Ela nunca vestia nada muito chamativo, apenas roupas simples e sem muitos acessórios, embora sempre usasse uma tiara rosa e um lenço amarelo em volta do pescoço, e dizia que havia ganhado ambos de uma pessoa muito especial, não que eu tenha perguntado alguma vez. Em geral, Momoko estava sempre em um irritante bom humor e mesmo que não gostasse de fazê-lo tanto quanto eu, estudava muito.
"Olá, meninos!" disse ela, sorridente.
"Momo!" gritou Shiro, feliz. Como você já deve ter notado, ele adora chamar os outros por apelidos, e inclusive, foi ele que inventou o meu. De qualquer forma, ele a abraçou, o que me fez imaginar que ela iria querer um abraço meu, por isso tratei de parecer estar carregando coisas demais, para disfarçar. Shiro começou a contar a ela como foi seu último dia de aula, exagerando um pouco na parte em que ele heroicamente pulava sobre o bolo para salvar uma outra aluna do perigo, ainda que na verdade ele houvesse apenas tropeçado na perna da cadeira e esbarrado na mesa, fazendo o bolo cair sobre ele, sendo aluna em perigo apenas uma garota que estava perto, que foi ágil o suficiente para dar um pequeno passo para o lado e escapar dos perigosíssimos confetes voadores. Depois de contada toda essa aventura emocionante, resolvi perguntar a ele se ainda pretendia ir comigo jogar o que seria sua primeira partida, durante o resto da tarde.
"Acho que sim!" respondeu, alegremente.
Eu jogava o tão famoso jogo anteriormente mencionado, Bomberman Online, e pretendia levá-lo comigo naquele dia, uma vez que o ano havia terminado e, sendo que agora ele não precisava mais estudar, sua mãe o deixava um pouco mais livre. Ele, porém, parecia ter uma idéia equivocada sobre quem podia ou não jogar, coisa que ficou evidente naquele momento, quando Momoko perguntou se poderia ir conosco.
"O jogo não é pra menina!" disse, quase gritando. Aquilo não parecia coisa do Shiro, mas resolvi não falar nada. Após uma nem tão longa discussão entre eles, Momoko deu um fraco tapa no menino e, muito zangada, foi embora. Eu poderia ter dito algo, já que aquilo não era nem de longe a verdade, especialmente no Japão, onde existiam duas grandes jogadores, uma delas estando no topo do ranking nacional e a outra, que usava o alia de Pretty Bomber, tinha vitórias lendárias sobre jogadores veteranos, há muito sem uma única derrota, sem tomar grandes danos. Ela parecia extremamente habilidosa. Infelizmente para os editores das revistas que tratavam sobre o jogo, a identidade da garota era um mistério, mas sempre se comentava de seus belos olhos azuis e movimentos graciosos.
Mas não disse nada. Não era como se eu quisesse Momoko ao nosso lado no primeiro dia de jogo, nem em qualquer outro. Shiro pediu para que eu me apressasse, pois queria jogar logo e, dando os ombros, concordei. O lugar onde se jogava Bomberman, diferente do que se pode pensar, não era a casa do indivíduo. Em vez disso, era jogado em colossais edifícios da Hudson, e envolviam todo um sistema que eles mesmos haviam criado. Longe de sentar na frente do computador e esperar uma tela de loading. Esses prédios existiam em todo e qualquer lugar onde a Hudson tivesse uma matriz ativa, e jogar era de graça, contanto que, no caso das crianças, estas tivessem o consentimento dos pais. O jogador também teria que assumir total responsabilidade pelos seus atos em jogo, coisa que as mães apreciavam muito, porque ensinava a criança valores morais e outras bobagens que você e eu sabemos que não se aprende em nenhum jogo online. Uma coisa nem tão conhecida é o porquê do jogo ser gratuito. A verdade é que a Hudson faz uso das experiências pelas quais os jogadores passaram, assim desenvolvendo seus sistemas de forma mais precisa. Quando contei isso a Shiro, ele nos comparou a ratinhos de laboratório, o que não estava muito longe da verdade, exceto que nós nos divertíamos muito mais do que os ratinhos. Mas foi uma boa observação da parte da dele, considerando seu alto intelecto. Bom, chegar ao centro de jogo em nossa cidade era muito fácil. Como o prédio ficava em uma avenida muito movimentada, eram raros os ônibus que não passassem por lá. Havia, também, ônibus que iam diretamente para o prédio, visto o enorme número de pessoas que jogava. Pegamos um destes, por recomendação de nossas mães caso não estivéssemos com Momoko, e fomos conversando no caminho. A essa altura Shiro já havia esquecido completamente da briga com a garota, e estava muito excitado, da mesma forma que eu em minha primeira vez.
"Eu mal posso esperar!" disse, quase pulando do assento.
"Vá com calma. Temos muito tempo para jogar e..." fui interrompido por uma gravação que tocava sempre quando o ônibus se aproximava da empresa, assim como quaisquer outros pontos de importância. Ela apontava o lugar, e começava um tedioso resumo histórico sobre o mesmo. Era como ter uma aula chata dentro de um veículo, e quase todos preferiam ignorar isso, e apenas olhar para o lugar, até mesmo eu.
Shiro comentou o quanto o lugar era bonito, e, de fato, era magnífico. Mais de cem andares, e parecia ser feito totalmente de vidro, em todos os lados e, fazendo uso da recente tecnologia gráfica, tinha uma imagem do famoso mascote da empresa, o personagem do jogo que a lançou ao estrelato, que era muito mais simples do que se pode esperar de tal símbolo. A imagem consistia apenas de um capacete branco, com uma quase imperceptível bolinha rosa em seu topo, ligada por um curto cilindro branco. Esse capacete tinha um visor, que por sua vez mostrava ora o nome da empresa, ora os olhos do personagem, tudo isso refletido no vidro para todos que quisessem ver. Ocasionalmente um dirigível passava carregando também a marca da empresa, uma pequena abelha, outra cena muito bonita se você quer saber. Saímos do ônibus, Shiro querendo correr para dentro e começar a jogar o mais rápido possível, e entramos, ao som da irritante mensagem:
"Welcome to Hudson." e até hoje, não entendo por que é em inglês.
O interior do prédio era tão bonito quanto o exterior, com muitas plantas presentes para dar um ar respeitável e um piso feito de um material esverdeado polido de tal maneira que refletia a imagem de quem passava. Era como caminhar sobre um espelho. Podia-se notar, também, que por trás dos vidros existiam paredes concretas, de mármore, algumas com pequenos painéis para controle da imagem que aparecia nos mesmos. Por trás dos balcões havia diversas secretárias que auxiliavam os jogadores, tanto novatos quanto veteranos. Uma dessas nos deu dois cartões de identificação, sem formalidades, já que eu jogava com freqüência e Shiro já havia se registrado anteriormente. Um fato peculiar sobre aquele lugar era que ele não continha escadas, apenas elevadores, isso porque as distâncias que precisavam ser percorridas equivaliam a centenas de quilômetros. É claro, existiam as escadas de emergência, mas elas estavam tão mofadas quanto uma coleção de revistas antigas de moda. Entramos em um dos elevadores, que, com um pequeno tremor, anunciou que estávamos descendo. Shiro me perguntou como ele sabia para que andar estávamos indo, e eu disse que ele respondia aos cartões que havíamos recebido. O elevador continuou descendo, e eu sabia que ainda iríamos levar ao menos dez minutos para chegar ao nosso destino, então Shiro começou a olhar em volta. O interior do elevador era relativamente simples: as paredes eram feitas de aço, tão brilhoso que parecia ter sido lustrado por horas. Tinha também uma planta que eu nem me dei ao trabalho de olhar, em um canto. Não havia, ele notou, nenhum painel onde se mostrava que andar estávamos percorrendo naquele momento. Ele não pareceu interessado no assunto, visto que não me perguntou nada, mas o fato é que o andar onde se sediava os jogos era muito abaixo do prédio, pois para o sistema funcionar sem erros, não poderia haver interferências externas, incluindo sinais de rádio, TV, entre outros. Assim, a maior parte dos andares pelos quais aquele elevador passava eram apenas grossas paredes de chumbo em um subsolo distante. Nunca entendi por que precisava ser tão fundo, até descobrir que o número de sinais enviados e recebidos havia aumentado drasticamente: agora a mente do ser humano recebia o triplo de informações devido às novas tecnologias, era como comparar as pessoas a poderosos satélites portáteis.
Minutos se passaram, e finalmente a porta se abriu.
Parecia um lugar completamente diferente de onde estávamos antes. Em nossa frente, estendiam-se paredes repletas de ladrilhos esverdeados, nelas encostados centenas de armários usados pelos jogadores. Havia também diversas entradas para as duchas, que eram divididas em grandes salas abertas com cerca de quarenta chuveiros cada, obrigando todos a tomarem banho juntos. Nosso armário ainda ficava um pouco longe dali, mais próximo ao lugar onde se jogava. Os armários eram todos de ferro, de uma cor verde opaca, sendo que algumas pessoas o decoravam com alguns enfeites baratos. O meu e de Shiro eram normais, porém. Eu não tinha interesse algum em gastar dinheiro com um armário, e Shiro jogava há muito pouco tempo para sequer se preocupar com coisas como essa.
"Mido, eu sei que você me explicou tudo ontem, mas... Não entendo porque precisamos disso." disse Shiro, enquanto tirava a camiseta do colégio, que algum dia fora branca, mas que naquele momento estava mais pra borrão amarronzado. "Quero dizer, é um jogo! Já não basta ter que tomar banho em casa." continuou, me fazendo rir.
"Antes de fazer a conexão, nossos corpos precisam estar livres de todas as impurezas." expliquei, tirando a bermuda e a colocando no armário. Ele abriu a boca para perguntar alguma coisa, mas resolveu esperar eu terminar de falar. "Se o corpo ainda está sujo, aquele sensor apita." e apontei para um pequeno painel avermelhado na entrada de uma das duchas. "Por isso temos que tomar banho aqui." completei, tirando as meias. Shiro comentou que eu era muito lerdo, visto que ele a essa altura já estava apenas de cueca, e eu ainda guardava calmamente o casaco. Isso porque ele tirava as roupas de modo desajeitado e as jogava em qualquer lugar. Ele já era acostumado com isso, claro. Nas aulas de educação física do colégio, era preciso vestir um uniforme próprio para a atividade, e os alunos teriam que se trocar no colégio. Eu, que nunca me interessei em tais aulas, conseguia permissão para permanecer na sala, estudando. Nas poucas vezes em que participei, por muita insistência por parte dele, o esporte da ocasião era sempre vôlei, tal que não exigia muito do corpo humano. Nunca fui realmente atlético, meus passatempos favoritos quase sempre envolviam livros ou bibliotecas. Talvez fôssemos mesmo como preto e branco, afinal.
Mesmo assim, ele continuava sendo meu melhor amigo.
Não pude deixar de notar, não pela primeira vez, o corpo de Shiro. Talvez porque não tivesse muita experiência com o assunto, pelo menos não além do que eu podia ler em livros de biologia, e ver em mim mesmo, é claro, ou então... bem. Ele tinha um corpo normal, acho eu. Sua pele era clara, com um leve tom amarelado que dificilmente podia ser notado, dado a cor de seus cabelos. Não era tão ossudo quanto eu, na verdade seu corpo era até um tanto atlético, isso porque ele adorava e praticava quase todos os esportes que conhecia, salvo handebol, cujas regras complicadas ele nunca conseguiu aprender. Era engraçado, até. Ele simplesmente não conseguia se lembrar de pular com o pé certo, ou coisas desse tipo. Achava mais fácil ter que chutar uma bola em uma rede, evitando tocá-la com as mãos, do que o esporte que supostamente foi feito para ser um dos mais simples de se jogar. Nem todos achavam isso, eu sendo uma dessas pessoas. Certa vez, depois de fazer um trabalho sobre o assunto para não ficar sem nota em educação física, tentei ensinar as regras para ele. Quando tentei demonstrar na prática, entretanto, não saiu bem com eu esperava, cinco minutos depois eu tendo desistido, irritado. E foi nessa mesma tarde em que eu mencionei um jogo, diferente de tudo que ele já havia visto, e para qual estávamos nos preparando naquele exato momento. Voltando a realidade, fiquei um tempo considerável observando seus movimentos súbitos: pelado ele parecia muito mais energético. Por um momento acho que, por algum motivo, senti meu rosto ruborizar, mas decidi que era por causa da temperatura: estava muito frio ali, e eu ainda não havia terminado de me despir, mesmo com os protestos constantes de Shiro no meu ouvido, que eu desobedecia só para irritá-lo um pouco. Quando finalmente terminei, em seguida guardando todas as minhas roupas cuidadosamente no armário, enquanto as dele estavam todas amarrotadas e enfiadas debaixo de um banquinho próximo, me dirigi aos chuveiros. Na verdade, ao invés de ir por mim mesmo, fui puxado pelo braço e arrastado até lá, ainda que não tenha me importado com isso. As duchas daquele lugar eram muito boas de usar. Com ajuda de alguns painéis presos a parede, podia-se controlar a intensidade e temperatura da água, que saía de algum lugar mais alto do que podíamos alcançar. Assim, o banho ficava exatamente como queríamos. Shiro era elétrico, por isso ao invés de se lavar ele corria de um lado para o outro ligando todas as duchas e pulando nas poças formadas. Naquela hora o lugar era geralmente vazio, assim nos dando uma liberdade que normalmente não era possível. Eu não ligava para nada daquilo, e só queria terminar aquele banho para poder ir jogar. Depois de ligar a última das duchas, ele notou alguma coisa no alto, e permaneceu olhando fixamente para isso nos minutos seguintes, até que eu finalmente resolvi perguntar:
"Qual é o problema?" olhei para ele, calmo.
"Por que tem câmeras aqui?" perguntou, e pude ver seu rosto corar ligeiramente. Pensei em como explicar aquilo a ele, mas nada me ocorreu. Resolvi, então, falar do jeito curto e grosso, um jeito que ele sempre entendia. "Porque muitas crianças jogam, e elas podem, mesmo que por acidente, quebrar algum equipamento, e também servem como uma medida de segurança contra a pedofilia." ele me olhou um pouco assustado, pois achava que aquele vestiário só podia ser usado por crianças. "Não. Essa área tem mais crianças por que é a área que os novatos geralmente usam, mas nada impede alguém mais velho de vir aqui." disse, em seguida completando com "Sobre as câmeras, é melhor você ignorar. Não é como se eles quisessem te ver pelado, sabe." e continuei a lavar o cabelo. Ele pareceu se conformar com a resposta e, muito provavelmente devido ao fato de que câmeras o viam, parou quieto e começou a se lavar. Algum tempo se passou, e nesse intervalo fomos conversando, ele agora bastante concentrado em tentar lavar o cabelo, coisa que, pelo que pude ver, ele fazia muito raramente. Decidi, então, ajudá-lo para que não fôssemos barrados pelo sensor. Dez segundos depois eu já havia desistido de ensinar e lavava o cabelo dele sozinho.
"Fala sério! Não saber fazer isso é demais, Shiro."
"Eu não gosto muito de banhos..." repetiu, pelo que deve ter sido a décima quarta vez. Peguei um dos xampus que a empresa disponibilizava e joguei sobre o cabelo dele, esfregando em seguida. "Feche os olhos." disse, um pouco zangado. Estava esfregando forte de propósito, mas ele não se sentiu compelido a reclamar. Dei um pequeno sermão sobre banhos a ele, e embora raramente fizesse coisas assim, dessa vez não pude me conter. O cabelo dele tinha até chocolate dentro. Quando percebi que quase toda a sujeira tinha saído, peguei a ducha de mão e joguei um pouco de água. Ele se irritou quando eu joguei em seu rosto, por isso pegou uma outra ducha próxima, e acabamos brincando com isso por algum tempo. Notei que risada dele fazia eu me sentir muito bem.
Descontraídos, resolvemos terminar o banho e ir logo jogar.
"Me deixa esfregar suas costas, vai." disse, sabendo que ele acabaria pedindo cedo ou tarde, e continuamos conversando, dessa vez sobre o jogo. Como eu jogava há muito mais tempo do que ele, obviamente sabia muito mais coisas e por isso resolvi repassar algumas informações que poderiam vir a calhar em um futuro bem próximo. Coisas como as melhores maneiras de escapar de uma bomba, e algo sobre analisar de que modo o inimigo ataca, embora nessa última parte ele tivesse dificuldade em entender. "É que se ele atacar demais é mais fácil de achar erros na estratégia dele. Uma bomba bem posicionada é tudo." expliquei. A maioria dos novatos atacava de um jeito afobado e muito previsível, por isso o instrui a não fazê-lo, pois os jogos não eram divididos e veteranos poderiam surgir. E assim passou-se cerca de meia hora. Shiro havia aprendido muito, e estava cheio de vontade de jogar. Nesse meio tempo, nos ajudamos no banho, e estávamos quase terminando quando Shiro se levantou subitamente para dizer alguma coisa, e acabou escorregando. Shiro sempre foi muito atrapalhado, conseguindo se machucar ou se sujar até com as coisas mais inofensivas, e geralmente levava alguém consigo -- e na ocasião, esse alguém fui eu. Em meio a sua queda no chão molhado, ele tentou se segurar em meu braço, ato que nunca iria dar certo, pois eu jamais iria conseguir agüentar seu peso. Assim, caí em cima dele, nossos lábios colados. Naquele momento, senti meu rosto corar imensamente, mesmo não tendo a força de vontade necessária para me afastar. Meus olhos olhavam fundo nos dele, nossos corpos se tocavam, e eu sentia o calor de seu corpo passar para o meu.
Não sei bem explicar o que senti naquele momento, mas posso dizer que foi algo que me fez sentir muito bem. Era bom, estar ali, e eu me sentia... quente. Ficamos algum tempo daquela maneira, até que Shiro começou a rir, se desculpando e se levantando.
"Com essa falta de atenção, algum dia você vai acabar me matando." foi tudo o que eu consegui dizer, tentando ignorar o que havia acontecido e o que para ele provavelmente não havia sido nada. Não se falou mais no assunto. E, assim, molhados e com frio, voltamos aos armários para pegar as toalhas. Percebi que Shiro tirou alguns bonecos da mochila, peças de sua gigantesca coleção, visto que ele era viciado nessas coisas, e colocá-los nos lados vazios do armário, junto das roupas que ele havia acabado de juntar e de uma foto que eu, ele e Momoko havíamos tirado fazia alguns anos, em uma visita ao parque de diversões. Ele ficou um pouco deprimido, arrependido do que disse a ela, mas logo em seguida varreu esse pensamento da cabeça e começou a se secar. Porcamente, diga-se de passagem, pois quando guardou a toalha continuava pingando. Depois, pegou uma pequena bermuda branca de um compartimento no fundo do armário, dobrada dentro de um saco plástico. "E esses aqui? Tudo bem que nossas roupas nem sempre 'tão limpas, mas..." e levantou a bermuda, com o intento de me mostrar.
Tive que concordar. Eram bermudas extremamente curtas, feitas sob medida para cada jogador, e tinham seu nome impresso em uma pequena marca de borracha. Era praticamente o mesmo que uma cueca, só que branca e um pouco mais justa do que o normal e com o tecido muito mais fino. De fato, constrangedor, mas existia um motivo para tal: na realidade virtual, uma mera interferência pode acabar com a mente da pessoa, como já fez com muitos. O sistema do jogo não era muito diferente, mas como imaginei que ele não entenderia as nuances da realidade virtual, apenas disse:
"Você prefere ficar naquele lugar, pelado, pra todo mundo que sair poder ver? E não pode haver muitas camadas pra cobrir a pele, de qualquer forma, então é uma coisa feita para a sua própria segurança."
"Acho que você tem razão..." e vestiu a peça, dando os ombros.
Por mais que as interferências externas fossem perigosas, naquele jogo era muito pior que o corpo do jogador estivesse com alguma camada de sujeira, ou de qualquer outra coisa que não fosse a pele. Imagine jogar futebol vestindo um casaco grosso e preto, e se tem uma ótima comparação. Limpos e vestidos, fomos em direção ao lugar onde se jogava, passando por mais corredores. Shiro soltou uma audível exclamação de surpresa quando chegamos lá. Era uma sala muito escura, com paredes negras, iluminada apenas por algumas poucas luzes negras que pendiam em um teto distante. De todos os cenários do futuro que poderiam ser retratados em um filme de ficção científica, aquele era o que chegava mais perto. Na sala, havia centenas, talvez milhares de pessoas, e todas elas dentro de terminais semelhantes a tubos de ensaio, ainda que muito maiores, com telas para monitoramento de saúde e condições físicas na parte debaixo. Eles eram muito altos, embora nenhum sequer chegasse perto do teto, e cada um emitia um fulgor esverdeado que, ao menos para mim, sempre pareceu muito assustador. Nas paredes, também, havia uma grande janela de vidro, onde era feito o monitoramento do jogo. Esse vidro, é claro, era coberto por uma película, de forma que as pessoas de fora não pudessem ver o que lá acontecia. Era quieto e frio ali, como em um necrotério, e naquela situação, era o que o lugar aparentava ser. Mas eu já estava acostumado, então olhei a expressão confusa de meu amigo e brinquei: "Bem vindo ao futuro... Vamos, o nosso terminal fica bem mais pro fundo." e fui, com ele me seguindo de mais perto do que o normal. Shiro olhava para os lados nervosamente, e acabou por notar que dentro dos terminais havia um estranho líquido, a fonte da luz verde, e por um momento se perguntou como as pessoas conseguiam respirar. Mas elas pareciam saudáveis, ele notou, e maioria trazia um olhar feliz ou competitivo no rosto, embora alguns poucos se parecessem com verdadeiros zumbis. Ele também notou que não havia garotas ali, embora o motivo para isso fosse mais do que óbvio. O que realmente o assustou foram os pequenos plugs ligados ao corpo de um garoto meio gordo pelo qual passamos, e em todas as demais pessoas também. Eram presos ao rosto, nos peitos, nos lados da barriga, nas pernas e nas costas, nos dando a sensação de que estávamos de fato em um laboratório onde pessoas eram cobaias para experiências terríveis. Tudo isso estava deixando Shiro com muito medo. Ele mais uma vez se perguntou como aquilo tudo poderia gerar uma experiência de jogo satisfatória, pergunta essa que eu me apressei em responder, pois considerava o assunto mais do que interessante.
"Por SND², Shiro. Aquele líquido cria um meio onde é possível enviar sinais para as sinapses nervosas do cérebro da pessoa, através dos plugs. Eu não sei bem como funciona, mas sei que os sinais conduzem o que acontece dentro do jogo e suprem todas as necessidades do corpo, tal como alimentação e hidratação." o fiz ficar boquiaberto com a explicação, ainda que soubesse que ele não havia entendido metade dela. Ficamos, então, em silêncio por algum tempo, já que ele provavelmente estava processando toda aquela informação, até que chegamos a uma área com alguns poucos terminais vazios, dois deles com placas de ferro que tinham nossos nomes cravados. Naquele horário, os lugares eram mais cheios, pois a maioria das pessoas já estava online, mesmo motivo pelo qual o vestiário e entrada estavam quase desertos. Isso tinha um lado bom, que era não dar de cara com pessoas chatas ou precisar tomar banho com elas.
"Quer ajuda para entrar no terminal?" ofereci.
"Não... É que eu ainda acho um pouco estranho, só isso."
"Bem, acostume-se. Muita coisa hoje em dia usa SND." e entrei no terminal, que havia se aberto como uma porta de supermercado, revelando um vidro absurdamente grosso, sem dizer mais nada. Segundos depois, o tal líquido verde começou a encher tudo ali, e os plugs saíram do terminal superior, que parecia tampar o tubo, em direção ao meu corpo automaticamente. Era uma sensação incômoda, mas relativamente indolor. Em seguida, adormeci, bem como deveria ser, mas muito preocupado com meu amigo.
"Que droga..." disse Shiro, entrando no seu, ainda que um pouco receoso. O fato é que, no momento em que os plugs tocavam seu corpo, sinais eram enviados para o cérebro, simulando um sono fortíssimo, por isso a pessoa dormia quase que imediatamente, e não havia com o que se preocupar. Shiro ficou muito nervoso quando o líquido começou a encher o tubo, tanto que manteve seus olhos bem abertos e até mesmo tentou se mexer. Mas foi inevitável, logo ele foi ficando cansado, e tudo se tornou uma escuridão completa.
Estava conectado.
Continua...
Nota do Autor: Essa fic não se enquadra no gênero yaoi, embora várias referências sejam feitas. As cenas que ocorrem são absolutamente necessárias para o entendimento geral de meus personagens, embora eu ainda tenha um recado a todos os 'barraqueiros' presentes: se não gostou, rua. Bom, eu me esforcei bastante para escrever esse capítulo e o modifiquei diversas vezes e modéstia a parte é a primeira vez que uma narração em primeira pessoa minha fica boa. O Mido tem um tipo de personalidade cínica e descritiva que combina muito comigo, mas que por esse motivo não é muito romântico. Talvez seja cansativo ler um texto tão grande quanto esse, que tem sete páginas, mas espero sinceramente que, aos que leram, tenha valido a pena. Foi certamente gratificante escrever.
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Reviews e comentários são muito bem-vindos, obrigado.
--Rikku (Tachibana)
¹: Shiro e Midori significam, respectivamente, branco e verde.
²: Synaptic Net Dive, algo que poderia ser traduzido como "mergulho em network sináptica". Minha singela homenagem a um grande jogo de PS2, Dirge of Cerberus.
