Capítulo 1 - Vidas Paralelas
Subúrbio de Londres, junho de 1971.
O incontido burburinho alegre das crianças preenchia todos os espaços existentes naquela vizinhança. Era uma ensolarada tarde de domingo, meados de primavera. Que criança não ficaria feliz em estar em um parque de diversões? Balões, palhaços, todo o algodão-doce que se pode comer... Sem falar nos brinquedos. Carrossel, trem-fantasma, roda-gigante e até mesmo uma empolgante montanha-russa.
Realmente era a realização plena de qualquer garoto de doze anos de idade que se prezasse. Ainda assim, Nicholas Johnson não se sentia nem um pouco feliz. Aliás, felicidade estava longe de qualquer coisa que se insinuasse no coração do garoto naquele momento.
Por que Robbie tinha que ter inventado aquele passeio? Por que o irmão mais velho não o deixava em paz? Tudo o que Nick queria era ficar na penumbra do seu quarto, acompanhado apenas por seus melhores amigos: seus livros e suas revistas em quadrinhos.
Na primeira oportunidade que teve, escapuliu das vistas do irmão. Queria apenas um lugar para se esconder, para ficar quieto. A alegria daquelas pessoas, divertindo-se sem nenhuma preocupação, era quase uma afronta pessoal para o menino. Será que ninguém notava o quanto ele estava sofrendo? O que o mundo tomara dele?
Serpenteando por entre as várias barracas de doces, salgados e brinquedos, Nicholas se afastou do centro da confusão...O silêncio era inalcançável... Mas as risadas começavam a ficar mais baixas e a doer-lhe menos nos ouvidos. Foi quando ele notou, perdida e isolada, uma pequena tenda de lona. Rota e esfarrapada, as estrelas e luas cor de prata pareciam estar descascando e mal se distinguiam do pálido azul celeste do tecido.
O tempo pareceu parar para o menino, e sem nem ao menos perceber, suas magras canelas, perdidas em uma bermuda que parecia ter o dobro do tamanho do dono, guiaram-no para o interior da tenda.
Era bastante escuro. E o cheiro forte e sufocante de incenso fez com que o menino espirrasse algumas vezes. Aos poucos, seus olhos foram se acostumando com as sombras, e as formas indistintas ganharam contorno. Almofadas coloridas, algumas prateleiras com coisas que o garoto só vira antes em contos de fadas (jarros e mais jarros, cujos conteúdos ele tentaria anos depois dizer que eram apenas obra de uma imaginação infantil muito fértil) e no centro de tudo, uma mesa redonda, baixa, com uma bola de cristal pousada sobre ela. Atrás, uma mulher, longos e encaracolados cabelos cor de ébano, parcialmente escondidos no alto da cabeça por um lenço roxo. Seus olhos pareciam ser violeta, mas quando o menino piscava, ganhavam ora um tom azul, ora um tom dourado. Aquilo confundia Nick, mas ao mesmo tempo fascinava. A única certeza que ele tinha, mesmo sem saber o motivo, era que ela era muito mais velha do que aparentava.
-Não fique aí, rapazinho.- ela disse, em uma voz doce como o som de rabecas em noites enluaradas - Venha até mim para eu te ver melhor. Se estais aqui é porque as Fiandeiras guiaram teus pés.
O menino caminhou a passos lentos até a mulher. Quase hipnoticamente sentou-se na almofada que ela lhe indicava.
-Então, rapazinho... - ela continuou - se estais aqui, minha obrigação é ler a tua sorte. Mas antes, as apresentações. Como te chamas?
-Ni-nicholas. - balbuciou o menino
-Bem, Nicholas - continuou a mulher, com sua voz de veludo, puxando um pouco o sotaque - Meu nome é Adelajda.
Ela sorriu amplamente - a alvura de seus dentes só era quebrada por um pequeno rubi vermelho incrustado no canino esquerdo. Delicadamente ela segurou o rosto do menino, fitando seus olhos, os "espelhos da alma". Depois de um tempo de observação, largou o rosto, segurando com firmeza o pulso de Nick.
-Agora que te conheço - disse a mulher - vamos ver o que as linhas de tua mão nos revelam.
O menino nada respondeu. Apenas assentiu, engolindo em seco. A mulher fitou atentamente as linhas que tinha diante de si. Uma sombra furtiva perpassou pelos olhos da cigana. Aquele garotinho conheceria a felicidade que poucos mortais sonhariam alcançar em muitas e muitas vidas, mas o preço de tamanho tesouro era um fardo de igual proporção. Abençoado e maldito por um mesmo motivo.
-Perdestes algo importante faz pouco tempo. - começou ela - e ainda sofres com isso. Mas saibas que tudo ficará bem em breve. Terás diante de ti tempos de luz e de sombras, de dor e de alegria. Contudo, qual destino não é assim? A única coisa que posso aconselhar-te, menino, é que nunca te esqueças que teu destino e tua felicidade repousam em uma fada de olhos esmeralda e cabelos flamejantes. Se a negares, te arrependerás pelo resto de teus dias.
Nicholas piscou algumas vezes, fitando a palma da própria mão. Não conseguia compreender o que Adelajda queria dizer. A mulher captara a expressão de perplexidade do garoto, mas nenhuma explicação que desse seria suficiente para explicar ao menino o que lhe aguardava, as maravilhas com as quais sua vida seria preenchida.
-Um dia tu entenderás tudo o que escutaste hoje - disse ela, soltando a mão de Nick. - Isso é tudo.
-O-obrigado - respondeu o menino, indeciso se estava realmente agradecido - Eu te devo alguma coisa?
A morena meneou a cabeça.
-Hoje não, Nick. Considere isso um presente...Afinal, hoje é seu aniversário, não é?
O menino arregalou os olhos...Se duvidara por algum segundo do que a cigana dissera, naquele momento qualquer suspeita se dissipara completamente.
Meio trôpego, saiu cambaleando da tenda. A luz do sol cegou-lhe os olhos, fazendo com que a paisagem externa se tornasse um enorme borrão branco. Enquanto tentava se ajustar à mudança súbita de luminosidade, começou a andar a esmo pelo parque. Repentinamente chocou-se em alguma coisa macia e bastante familiar. Ergueu o rosto fitando os olhos preocupados de seu irmão mais velho, que o segurava protetoramente pelos ombros.
-Nick, por onde andou? Eu estava preocupado, andei o parque inteiro de procurando!!!! - dizia Robert.
Nicholas apenas balançou a cabeça, não sabia o que dizer ou responder. Tudo o que sentia era uma necessidade enorme de deixar fluir toda a tristeza que crescia dentro de si. Sem ao menos refletir, abraçou o irmão, deixando as lágrimas descerem quentes e reconfortantes pelo rosto. Era a primeira vez que ele chorava nos últimos dois meses, a primeira vez desde que os pais se foram. Adelajda dissera que tudo ficaria bem. Ele precisava acreditar naquilo.
---------------------------------------------
Londres, julho de 1979.
O sol já estava a pino naquela manhã de segunda-feira, e talvez por isso um fervilhar pulsante pudesse ser sentido por todo o bairro. Era verão. As crianças que não estavam correndo pelo meio da rua, jogando bola, riam divertidas, em seus pequenos quintais, subindo em árvores ou brincando de molharem umas às outras com as mangueiras.
Mas nada disso atrapalhava o sono pesado do rapaz. Imerso em meio a um mar de travesseiros e lençóis na semi-escuridão de seu quarto, Nicholas Johnson estava alheio ao pulsar de vida que se desenrolava além de suas paredes. O que era, de certo modo, irônico, afinal, comprara aquela casa com sua parte da herança deixada pelos falecidos pais justamente pelo bairro lembrar a ele a vizinhança de sua infância. Claro que o fato de seu irmão Robert ter resolvido chamar a namorada, Rebecca, para morar no antigo apartamento que dividia com Nick influenciara na decisão do rapaz. Mesmo sabendo que Robbie não se importaria com a presença dele ali, sentia que estava privando o irmão da liberdade que uma relação a dois exigia.
-Levanta, dorminhoco! - foi a primeira coisa que Nick ouviu ao acordar, sentindo o impacto de uma almofada sobre sua cabeça.
O rapaz abriu os olhos, encarando um moreno de olhos azuis e cabelos desgrenhados. Jack Mercury ria, divertido, na porta do aposento. Sem mais opções, Nicholas levantou-se, ainda com os olhos enevoados pelo sono, tentado se espreguiçar.
-Sabe, Jack, eu realmente vou sentir falta desse seu jeito sutil de me acordar.- respondeu Johnson, parcialmente irritado - Você realmente tem vocação para despertador chato. Passei a noite inteira escrevendo, sabia?
Jack Mercury cruzou os braços, ainda sorrindo.
-Que culpa tenho eu se você é um cdf chato mesmo nas férias? Verão foi feito para ser divertido e não para se trabalhar. Além disso, são quase onze horas! Fiz panquecas para o café da manhã. Aproveita que depois desse fim da semana você não vai mais me ter aqui para cozinhar. Só espero que a casa não esteja em chamas quando eu voltar de viagem.
Nicholas coçou a cabeça, bocejando, enquanto pousava os pés descalços no chão reconfortantemente fresco.
-Foi uma única vez, você vai continuar me jogando isso na cara pelo resto da vida?
-Possivelmente - Jack respondeu com um brilho divertido no fundo dos seus olhos bastante azuis.
Os dois rapazes desceram os degraus da escada que levava para o andar térreo da casa, dirigindo-se para a cozinha. Nicholas sentou-se na mesa, servindo-se de uma enorme porção de panquecas que o amigo, com quem dividia a casa, fizera para o desjejum.
-Toma. - disse Jack, colocando do lado de Nick uma enorme jarra cheia de mel - Já que é uma das últimas refeições que eu te preparo, quero que seja do jeito ianque de comer, afinal, vou ter que aprender a preparar uma autêntica refeição americana se quiser me dar bem com as garotas de lá.
Nick sorriu de lado. Uma parte dele certamente invejava a desenvoltura e o senso de aventura do amigo. Conhecera Jack ainda no começo da faculdade. Nicholas optara por estudar Línguas e Literatura, que de certo modo lhe parecera natural, afinal, tanto a mãe quanto o pai eram catedráticos da área. Já Mercury cursava Engenharia, por influência do pai e do irmão mais velho. Os gostos semelhantes em cinema, literatura, e especialmente, histórias em quadrinhos, acabaram aproximando os dois, ou como Mercury costumava dizer: "Um nerd sempre fareja outro nerd aonde quer que vá". Quando saiu da casa do irmão, convidou o amigo para morar com ele e ajudar nas despesas. Agora, Jack simplesmente decidira largar tudo, curso, família, amigos, simplesmente para "conhecer o mundo", começando pela América. Foi para Manchester no fim de semana, onde sua família residia, comunicar ao clã dos Mercury que estava de partida na próxima sexta.
-Tem muito tempo que você chegou? - perguntou Nick.
-Uma hora. Pensei em deitar e descansar da viagem, mas estava elétrico demais para dormir, então decidi preparar o desjejum do meu bom e velho amigo Johnson.
-Foi tão ruim assim? - Nicholas perguntou, sorvendo um grande gole de chá da caneca que acabara de encher.
O outro rapaz sentou-se ao lado do amigo, abaixando a cabeça, segurando-a por entre as mãos.
-O velho Ted e mamãe aceitaram muito melhor do que eu esperava... Mas Dave realmente ficou irado, isso tentando amenizar a reação explosiva do meu irmão.
Nicholas deu um tapa de leve no ombro do amigo.
-Ele vai entender, Jack. Acredite, ele é seu irmão e quer te ver feliz. Um dia ele vai sacar que ser engenheiro só te tornaria uma pessoa amarga e miserável. E que você precisa dessa loucura de viagem para colocar as idéias no lugar.
O moreno de olhos azuis levantou o rosto, mais tranqüilo. O amigo tinha razão. Era só dar tempo ao tempo e as coisas se acertariam entre ele e o irmão mais velho.
-Sabe, Nick, você deveria vir comigo. Ia ser bem divertido. Um tour pela América, depois podíamos esticar o seu passeio e nos divertirmos com algumas señoritas no México...
Nicholas balançou a cabeça. A idéia era tentadora, afinal, ainda tinha um bom par de meses antes de entrar no último semestre da faculdade. Mas, ele sentia no peito uma necessidade quase urgente e certamente irracional de permanecer na Inglaterra naqueles dias, como se sua vida dependesse daquilo.
-Não dá, Jack, tenho compromissos por agora. Esqueceu da tarde de autógrafos do meu primeiro livro no sábado?
-É verdade! Esqueci que dividia a casa com uma celebridade. Nicholas Johnson, famoso escritor e futuro prêmio Nobel de Literatura. Bem, o jeito é subir e começar a arrumar as minhas malas. A vida me espera! - disse o rapaz, levantando-se de um pulo da cadeira.
Nicholas escutou os passos apressados do amigo subindo escada acima, enquanto fitava o interior da caneca de chá. Mas sua mente estava bem longe dali, vagava inadvertidamente para uma tarde de primavera anos atrás, como sempre fazia em momentos como aquele...
---------------------------
A pilha de relatórios avolumava-se ao redor da moça de cabelos carmesim. Não saíra um segundo daquela mesa desde que começara a manhã de trabalho no Departamento de Aurores. Mal fizera um mês que se graduara e já era tratada como uma veterana por seus colegas de trabalho. Isso porque, na prática, não havia mais distinções entre o tempo de serviço dos que estavam ali. No fim das contas, eram apenas sobreviventes em meio ao horror em que o Mundo Bruxo mergulhara.
Desde que começara a trabalhar, pelo menos cinco pessoas, entre as quais algumas relativamente conhecidas, já tinham morrido em serviço durante embates com os Comensais de Voldemort. Era exatamente por isso que, para suprir as perdas cada vez maiores decorrentes da guerra, Rufus Scrimgeour, Chefe Geral do Departamento de Aurores, requisitara, cerca de um ano e meio atrás, a permissão para flexibilizar os critérios de seleção dos candidatos à Academia, e a redução do tempo de treinamento. "Quanto mais gente nas ruas, melhor para a imagem do Ministério e melhor para fazermos frente aos seguidores do Lorde das Trevas", foi um dos argumentos de Scrimgeour na ocasião.
Elizabeth sabia que seu irmão mais velho, Aldebaran, também auror como ela, não concordava com a nova política de recrutamento, assim como Alastor Moody, chefe imediato dos dois na subseção de Infiltrações, Busca e Apreensão do Departamento de Aurores.
Concordar ou não com Scrimgeour não fazia diferença para Betsy no momento. O que lhe importava era que finalmente estava em ação, fazendo alguma coisa efetiva para impedir as chacinas e o terror que deliberadamente se alastrava. Mesmo preencher aquela papelada lhe parecia melhor que não fazer nada, afinal, todos aqueles relatórios eram frutos da exaustiva semana anterior, em que ela e vários outros aurores, incluindo seu primo Kamus Ivory, tinham se dedicado quase obsessivamente a apreensões e batidas. Infelizmente, algumas bastante infrutíferas.
-Senhorita Black-Thorne?
Uma voz baixa e tímida se fez ouvir, chamando a atenção de Elizabeth, que desviou o olhar dos papéis. Seus olhos verdes se encontraram com as orbes ambarinas de uma moça clara e de cabelos castanhos escuros e lisos, na altura dos ombros.
-Já te disse para me chamar de Betsy, Lucy. - a ruiva sorriu, simpática - Senhorita Black-Thorne faz parecer que sou uns 10 anos mais velha que você.
A moça sorriu em retribuição. Lucy Reinfield era secretária-assistente de Rufus Scrimgeour. Começara no emprego há pouco mais de uma semana, recém saída de Hogwarts. Elizabeth lembrava-se muito pouco da moreninha durante a época de escola, só sabia que a menina pertencera à Lufa-lufa e nada mais. Mas o pouco tempo de convivência no Departamento dera à Betsy a certeza de que estava diante de uma pessoa doce e bondosa. Ela realmente gostava de Lucy.
-Tudo bem, Betsy. Vim aqui porque Eileen me pediu para pegar os relatórios que estão assinados e devidamente prontos para serem repassados para seus superiores. - respondeu a moça.
A jovem auror ergueu uma pilha para colocar nos braços da secretária, quando sentiu a varinha vibrar no bolso das vestes. Tinha programado a varinha para lembrá-la do compromisso que tinha. Um equivalente ao despertador dos trouxas, velho truque dos tempos de escola.
-Vou sair para almoçar com uma amiga - disse a ruiva - Quer vir comigo?
Lucy meneou a cabeça, recusando o convite.
-Obrigada, fica para a próxima. Acho melhor resolver o que Eileen me pediu logo de uma vez. Tenho a impressão que ela não gosta de mim, ou talvez só esteja no meu pé porque é a secretária sênior do Senhor Scrimgeour e quer que eu prove ser digna do meu cargo. De todo jeito, prefiro não arriscar.
--------------------------
O Caldeirão Furado era um dos mais antigos e tradicionais estabelecimentos bruxos da capital inglesa - sua fama transcendia as fronteiras da nação britânica. Contudo, nos últimos tempos, dada a conjectura política do mundo bruxo, seus clientes estavam se tornando cada vez mais raros. Exceto por uma ou outra pessoa, dispersamente espalhadas nas mesas locais, o estabelecimento poderia ser facilmente confundido com um castelo mal assombrando, só que sem fantasmas. Duas moças conversavam, em uma mesa escondida nos fundos do bar.
-Elizabeth, se você continuar nesse ritmo vai acabar internada no St. Mungus logo, logo. Você só pensa em trabalho. Não tem nem um mês que você se graduou e age como se tivesse as responsabilidades do chefe dos aurores. Você precisa relaxar. - disse Marion, tomando mais um gole de seu suco de abóbora.
Betsy mantinha-se séria, olhando para a xícara de chá verde que estava à sua frente.
-Mari, eu não posso... Podemos estar aqui sentadas no Caldeirão Furado, aparentemente tomando um drink descontraído. Mas olhe ao seu redor... Dá para ver a expressão de medo no rosto das pessoas, não só das que estão aqui. É assim em qualquer lugar que vamos... Estamos em plena guerra, eu não posso me dar o luxo de baixar a guarda.
-Eu sei, Betsy, eu sei.- respondeu a negra, com uma forte melancolia na voz - Você acha por um acaso que eu não me lembro o tempo todo que estamos no meio de uma crise? Eles estão cada dia mais inclementes e ousados. Tenho medo do que possa acontecer com meus pais... Eles são apenas trouxas... Não quero que paguem caro por eu ser o que sou... E também reconheço o valor de seu trabalho como auror, amiga. Mas acho que ultimamente você está sob muita pressão.
-Você está exagerando, Marion. - a ruiva respondeu, forçando-se a sorrir.
Marion sacudiu a cabeça. Conhecia Elizabeth quase como conhecia a si mesma, e aquele sorriso apaziguador não a enganava.
-Exagerando?- continuou a negra - Além do trabalho de auror, ainda tem toda essa situação com seus pais. Sei que continua na casa deles porque seu pai está muito doente, mas o modo como a Senhora Black-Thorne te trata... Ninguém merece passar por aquilo. Você deveria se mudar para cá definitivamente, poderia ficar comigo ou com o Aldo.
-Você sabe que eu realmente não posso. - respondeu Elizabeth, baixando os olhos - Meu pai precisa de mim.
-Está bem, não vou mais discutir com você sobre isso... Mas um dia de folga não vai fazer mal, vai?
-O que você tem em mente? - perguntou Betsy, dando um sorriso maroto para a amiga.
Marion sorriu em retribuição. Sabia que Elizabeth tinha seus motivos para lançar-lhe aquele olhar malicioso. Aprontara o suficiente nos tempos de escola para merecer aquela indireta.
-Nada selvagem, não se preocupe. Você se lembra daquele livro de contos fantásticos que eu te dei de presente?
-É claro! Você sabe o quanto eu adorei! - respondeu a jovem auror - É de um escritor trouxa, como é mesmo o nome dele? Nicholas Johnson?
-Esse mesmo.- Marion assentiu - É o primeiro trabalho dele a ser publicado e parece que está fazendo um certo sucesso. Vai ter uma feira de livros no próximo fim de semana e ele vai estar lá, dando autógrafos. Pensei em unirmos o útil ao agradável. A gente dá um rolé pela feira, descola umas raridades literárias trouxas bem baratinhas e ainda conhecemos o cara. Que tal?
Elizabeth firmou o rosto em uma das mãos, olhando pensativamente para a amiga. Ela tinha que admitir que Marion estava certa em suas afirmações. Ela realmente precisava de um dia de folga. Que mal aquilo poderia lhe trazer?
-Tudo bem, tudo bem.- respondeu a ruiva por fim - Você me convenceu! Afinal, sabe que sou maluquinha por literatura trouxa. Culpa sua que ficou me emprestando todos aqueles livros durante o tempo de escola.
-Te encontro no sábado, então. - disse Marion se levantando e dando um abraço na amiga em despedida.
------------------------------
O amplo galpão onde era realizada a feira de livros estava repleto de pessoas dos mais diversos tipos: adultos, jovens, velhos, famílias inteiras que aproveitavam a tarde de sábado no evento.
-Olha só para todos aqui. Alegres, calmos, tranqüilos... Felizes! Parece até que é outro mundo. - disse a jovem feiticeira, com os olhos verdes brilhando de admiração.
-Mas, pensando bem, não deixa de ser, Betsy. Aqui é o mundo trouxa, ninguém sabe sobre guerras, Comensais e coisas do gênero. - respondeu Marion - E só por hoje eu quero que você deixe isso de lado também. Agora, vamos correr... A fila para os autógrafos já deve estar imensa.
Em uma pequena tenda branca, Nicholas Johnson encontrava-se sentado, rodeado por seus livros. Caneta a postos. Parecia extasiado com o momento, afinal estava dando os primeiros passos para tornar seu grande sonho realidade.
-Eu não sabia que ele era tão jovem - comentou Marion.
-Nem tão bonito - disse Elizabeth, com um meio sorriso no rosto.
Marion olhou contente para a amiga. Desde o fiasco com Maxwell Sinn, o sonserino que fora noivo da ruiva em Hogwarts, era a primeira vez que Betsy esboçava um interesse, ainda que mínimo, por alguém.
A fila para os autógrafos foi andando lentamente. Quando chegou a vez de Betsy, ela pousou o livro aberto na frente do escritor, inclinando-se de leve em direção a ele.
- Seu nome, por favor? - perguntou Nicholas.
O moreno levantou os olhos, notando que um pingente dourado em forma de fada balançava em seu campo de visão. Seu coração começou a disparar acelerado. Aquilo era uma tolice infantil, não tinha porque ficar tão transtornado por causa de um pingente. Já se enganara várias outras vezes.
-Elizabeth Black-Thorne.- respondeu a moça, sem notar o transtorno do rapaz.
-Desculpe, pode repetir? - disse ele, levantando por completo o rosto, dando de cara com uma linda e sorridente ruiva de olhos verdes. Sentiu-se completamente desnorteado.
-Elizabeth Black-Thorne. - ela repetiu ainda sorrindo.
Nick ficou algum tempo parado apenas fitando a moça. Sua razão dizia que aquilo era apenas coincidência. Era bobagem deixar-se levar pela previsão de uma cigana. Ele era homem feito agora e não deveria agir como um menino de doze anos. Mas, ao mesmo tempo, não conseguia reprimir o sentimento irracional de que talvez a predição estivesse se concretizando.
-Você quer que eu repita novamente? - perguntou ela.
-Desculpe, não precisa. - disse ele, ligeiramente constrangido. Sacudiu a cabeça, tentando afastar aquela loucura de seus pensamentos. Abaixou então o rosto para assinar o exemplar que estava a sua frente.
-Eu adorei seu livro. Especialmente A Marca Rubra. É o meu conto preferido - disse Elizabeth.
-Sério? - perguntou o escritor, espantado. - Eu também acho que seja meu melhor trabalho até agora. Embora os editores não concordem comigo. Ele quase ficou de fora da coletânea.
-Teria sido uma pena... Bem, obrigada pelo autógrafo. - disse Betsy pegando seu exemplar de volta e partindo.
À medida que a moça se afastava, Nicholas não conseguia refrear o sentimento de que estava perdendo alguma coisa muito importante. A voz de Adelajda ecoava em seus ouvidos, repetindo: "teu destino e tua felicidade repousam em uma fada de olhos esmeralda e cabelos flamejantes. Se a negares, te arrependerás pelo resto de teus dias".
As amigas passaram a perambular pelo enorme galpão, apinhado de stands e barracas cheias de livros. Elizabeth estava maravilhada. Desde que passara a conviver com Marion quando entrou para Hogwarts, anos atrás, o mundo trouxa era algo que a atraia e fascinava.
-Betsy, vem aqui! Você vai babar, este stand só tem peças do Shakespeare! - gritou Marion.
Elizabeth acorreu ao local onde a amiga lhe chamara. A jovem bruxa se tornara fã incondicional do bardo inglês desde que lera Sonhos de uma noite de verão.
Vasculhando a pilha de livros para encontrar exemplares das peças que ainda não tinha, Betsy ouviu uma voz masculina a suas costas.
-Também é fã do mestre Will? Parece que temos mais alguma coisa em comum.
A garota virou-se e percebeu que Nicholas Johnson a observava.
-Mas que coincidência, Sr. Johnson.
O rapaz deu um sorriso encantador.
-Pode me chamar de Nick. E não foi por uma acaso que nos encontramos. Eu estive te procurando por toda feira até te encontrar aqui. Na verdade, geralmente, eu não sou tão ousado assim, mas você me impressionou muito e... Bem, posso parecer precipitado, afinal não nos conhecemos direito, mas será que você aceitaria tomar um chá ou um café comigo?
-Eu não sei, eu vim com uma amiga e... - respondeu Betsy enquanto procurava a outra bruxa com os olhos.
Marion, que estava próxima e escutara tudo, fazia frenéticos sinais para motivar Elizabeth a aceitar o convite.
-Sinto muito, eu não queria incomodar.- o escritor parecia desolado.
-Não, espera. - chamou a ruiva, suavemente - Eu acho que um café seria ótimo.
-----------------------
Nicholas e Elizabeth se sentaram em uma mesa próxima da janela em uma aconchegante cafeteria no centro de Londres. O lugar tinha uma decoração retrô, ao estilo dos anos 40, o que tornava seu ambiente ainda mais charmoso.
Betsy tomava um capuccino, enquanto Nick sorvia um simples café preto. O rapaz soltou uma risada curta.
-O que foi? - perguntou a jovem.
-É que você está com um bigodinho de capuccino no rosto.
Elizabeth baixou os olhos, encabulada. Sua tez usualmente alva adquiriu uma tonalidade escarlate.
-Isso sempre acontece. - disse ela, limpando a boca com um guardanapo. - Me desculpe.
-Não tem com que se preocupar. Eu achei bonitinho.
Betsy sorriu.
-Bem, eu estava te perguntando em que você trabalha. - disse o escritor.
A jovem bruxa fitou o rapaz a sua frente. Ele era tão simpático, alegre e atraente... Fazia muito tempo que ela não se sentia assim tão livre, tão confortável com alguém. O mais estranho é que só se conheciam há poucas horas. Ainda assim, não queria mentir para ele, mas também não podia contar a verdade. Dificilmente Nicholas compreenderia seu trabalho como auror. Optou por um meio termo.
-Trabalho em um banco. Na parte de pesquisas, você sabe, coleta e arquivamento de informações financeiras, coisas assim. Mas é meio chato. Vamos falar de coisas mais interessantes... Por exemplo, seu conto, A Marca Rubra, eu realmente amei.
-Você não achou sombrio demais? - perguntou o rapaz - Foram as palavras dos editores quando quase cortaram o conto. Quer dizer, é a história de um ogro que aprisiona uma princesa e devora o coração dela todas as noites, e ainda diz que faz isso por amor...
Elizabeth assentiu. Era verdadeiramente sombria a trama, mas havia um lirismo naquela história que a fascinara enquanto lia, a ponto de arrancar-lhe lágrimas.
-É, mas o coração dela sempre se regenerava. - justificou a moça - E no fim, a princesa consegue recuperar seu coração e fugir, apesar da enorme cicatriz vermelha que permaneceu em seu peito. A questão toda é que, pode me chamar de maluca ou estranha, mas eu me identifiquei muito com a protagonista...
-Por um acaso você tem algum ogro na sua vida? Algum namorado ciumento? - Nicholas perguntou, de brincadeira.
Betsy riu. Nunca tinha pensando naquilo até o momento, mas o escritor estava de certa forma correto em suas conjecturas.
-Agora que você falou... Mais ou menos. Não é um namorado, mas sim uma mãe um pouquinho exigente.
-Desculpe, - Nicholas parecia arrependido do comentário - eu só estava brincando, eu não sabia...
-Tudo bem, não tem porque se desculpar. - disse a bruxa, tentando tranqüilizar o rapaz.
Betsy olhou para fora da cafeteria. As primeiras estrelas começavam a pontuar no céu da capital inglesa. Infelizmente parecia que precisava bancar o papel de Cinderella e sair dali mais cedo do que desejava.
-Olha, eu tenho que ir. - disse ela.
-Quer que eu te leve para casa?- Nicholas perguntou, solícito.
-Não precisa... - ela respondeu, quase em um murmúrio.
Era impossível que ele a levasse para casa, afinal Nicholas não podia aparatar, e dada a distância entre Londres e a Mansão dos Thorne, esse era o melhor meio de locomoção. Olhando para a cara desolada do rapaz, Betsy impulsivamente fez algo que surpreendeu até ela mesma: reclinou-se sobre a mesa e beijou Nick no rosto.
Foi a vez de Nicholas ficar completamente vermelho. O gesto da garota o apanhou de surpresa, e, inesperadamente, fez com que seu coração mais uma vez disparasse.
Tudo o que estava acontecendo ali era uma loucura, uma alegre e doce loucura, era verdade. Ainda se perguntava como criara coragem para convidar uma completa estranha para sair. Não era do feitio dele, usualmente mais cuidadoso com questões do coração. Mas quando viu Elizabeth na frente dele, naquela fila, teve certeza de que ela era a sua fada, como a cigana predissera a ele quando menino. Sabia que era irracional seguir uma fantasia infantil, mas sentia que teria se arrependido se não tivesse se arriscado a dar um passo maior do que estava acostumado.
-Uau.- disse o rapaz, inebriado, passando suavemente a mão no rosto, bem onde a jovem lhe beijara. Sorriu para ela. Elizabeth retribuiu o sorriso.-Você tem mesmo que ir?
-Realmente eu não posso ficar... Já estou um pouco atrasada. Hoje tem um importante jantar lá em casa, com alguns amigos de meus pais. E a minha mãe vai ficar extremamente irritada se eu não chegar logo.
- Bem, se eu não posso te levar em casa, será que posso te telefonar? Se você quiser me ver de novo, é claro.
-Quero sim. Eu não tenho telefone - pegou um guardanapo e anotou alguns números. - mas minha amiga Marion tem. Ela sabe como me achar.
Despediu-se de Nick, com um sorriso. Saindo da cafeteria e procurando um lugar para aparatar de volta para casa sem ser vista por trouxas, Elizabeth não pode deixar de pensar consigo mesma que aquele havia sido um dos melhores dias da sua vida em muito, muito tempo.
-------------------
Nota da Autora
Bem, cá estamos nós... Bem-vindos ao começo da história de Nick e Betsy, além, é claro de Aldebaran, Frida, Ludovic e muitos outros.
Esta história acabou surgindo de uma necessidade minha em escrever o passado dos pais da Meridiana, do Expresso Hogwarts. Sabem quando uma história vem tão forte na sua cabeça que te perturba a ponto de você não sossegar enquanto não a coloca no papel? Pior, enquanto você não repassa para os leitores? Pois meu elenco de personagens começou a me demandar isso, e por isso, estamos aqui.
Esta história é muito importante para mim, por vários motivos. Por ser mais "adulta" que os posts do Expresso, por me exigir um empenho forte na hora de compor as cenas (escrever sobre uma guerra, ainda que de "mentirinha" não é lá muito fácil), e, principalmente por ser a primeira história "solo" que eu escrevi.
Claro que a Lu (Dhara) vai me dar uma mão nas partes que envolvem os Ivory, e a Règis (Raven). E também a Luci (Mina/Silver) muito me deixou feliz aceitando ser minha beta.
È a elas que dedico o primeiro capítulo de Para Sempre na Memória. Obrigada pelo apoio, ajuda e compreensão.
Claro que eu não poderia deixar de agradecer à Deusa, também conhecida como Arlequina e Pequena Ilisionista, pela consultoria sobre bruxos-ciganos.
Obrigada meninas!
E a vocês, espero que tenham se divertindo com o que leram tanto quanto eu me diverti escrevendo. Não deixem de comentar no fim da página
Abraços, Meridiana (Ana)
PS- O próximo capítulo já vai começar na pauleira. Ataque de comensais! Não percam!
Curiosidades: O título da filme foi inspirado pelo filme Para Sempre na Memória, estrelado por Keanu Reeves.
Vidas Paralelas também é o título de uma minissérie escrita por Kurt Busiek que narra a adolescência de Peter Parker (O Homem-Aranha) e sua futura esposa, Mary Jane.(que são um dos meus casais preferidos nos quadrinhos)
A varinha usada como despertador, eu vi pela primeira vez em um post da Sam (Ju) no Expresso Hogwarts, pelo que eu me lembre. Então, os créditos vão para ela.
A Marca Rubra é uma história escrita por mim. Ainda está incompleta. Mas se algum dia eu conseguir terminar de escrever, prometo postar aqui em primeira mão para vocês.
