"I'll love you.
I'll definitely love you"
(Soleil – Gackt)
Andava pausadamente pelo branco corredor, àquela hora quase vazio, com apenas algumas enfermeiras, pacientes e poucos médicos. Estava cansada. Toda semana ela ficava um dia de plantão, e aquele era o seu dia. Não gostava de passar a noite acordada, mas amava o que fazia.
Nunca reclamaria do que fazia, não. Adorava ser médica, adorava a medicina e era aquilo que sempre quisera fazer. E agora, após anos, conseguia exercer a profissão. Pelo menos por isso poderia dizer-se realizada. Quem a havia conhecido antes de ir trabalhar no hospital, notaria que ela não era mais a mesma. Nunca mais fora a mesma depois que terminara o colegial.
Não mais seus olhos brilhavam, não mais o sorriso lhe assaltava os lábios com facilidade. Simplesmente não conseguia voltar a ser o que era. Em parte por culpa dele, mesmo que inconscientemente. E a outra parte era porque fora fraca.
Por que aquilo tinha que ter acontecido justamente com ela? Poderia ter se apaixonado por outra pessoa, mas não. Seu coração havia feito a escolha errada e agora ela sofria as conseqüências de amar sem ser correspondida.
E naquele dia, naquele fatídico dia, ele acabara por enfiar uma adaga em seu coração sem querer, e essa adaga afundara em seu peito. Noite após noite, dia após dia. Sabia que a culpa não era dele o fato de ela ter se apaixonado, sim sabia. Mas acontecera, e nada poderia mudar o fato de que ela havia sofrido e morrido aos poucos, a cada hora que havia passado, a cada dia que havia acabado. Morreu por dentro.
Após tantos anos, ela tentara o esquecer de todas as maneiras, mas não conseguia completamente. A maior parte do tempo ela ocupava a cabeça com outros assuntos, principalmente o trabalho, que não era pouco, mas quando estava sozinha, de noite, deitada em sua cama, simplesmente não conseguia evitar que as lágrimas escorressem de seus olhos. Muitas das vezes ela conseguira se conter, e agora, depois de tanto tempo, sentia que estava ficando frio dentro de si, e que talvez ela tivesse finalmente apagado as brasas daquele amor que havia ido sem, no entanto, encontrar o caminho de volta. Sentia que talvez tivesse esquecido quase tudo, aos poucos. Ele não seria totalmente esquecido, mas ela havia finalmente parado de chorar copiosamente como antes e já quase não pensava nele, que havia se tornado uma lembrança em preto e branco, como uma foto antiga esquecida no fundo de um malão. Como se tudo tivesse sido o sonho de uma noite de inverno.
Tivera outros relacionamentos, mas nunca conseguia mantê-los e sentia que mesmo que tudo aquilo tivesse sido quase completamente esquecido e guardado, não conseguiria tira-lo totalmente de seu coração e entrar em um relacionamento que durasse. Não era justo que a outra pessoa ficasse presa a ela, sem que ela ao menos o amasse.
No fim, era uma covarde que tentara fugir. Fugira de seu passado, mas o sofrimento a acompanhou durante muito tempo. Mesmo que suas lágrimas tivessem secado, a dor em seu peito ainda era recente. O espinho cravado em seu coração já fazia parte de seu ser.
-Boa noite, querida Kagome! – ouviu uma voz dizer docemente.
-Dr. Kouga? Está de plantão hoje também? –perguntou dando um meio sorriso.
Kouga. O conhecera quando começou a trabalhar no hospital. Era um médico muito respeitado, um dos melhores da província, com uns dez anos de idade a mais que ela. Além de ser clínico geral, era neurocirurgião. Ele a ajudara bastante quando começou (pouco mais de dois anos, como residente), e para retribuir, ela sempre tentara ser o mais doce possível. Uma pena que ele tenha confundido gratidão com paixão.
Não que ele fosse má pessoa. E era bonito. Longos cabelos negros e olhos azuis escuro. Após quatro meses no hospital, tivera um caso com ele, mas não durou. Fora apenas mais uma frustrante tentativa de se apaixonar por outro como havia se apaixonado por quem a fez sofrer. Gostava de Kouga, mas não do jeito que ele esperava que ela gostasse. Não conseguira amá-lo completamente. Não conseguira dar-se de corpo e alma, e aquilo não era justo com ele.
-É, me pediram pra ficar hoje! Mas não sei por que, já que o dia está tranqüilo, né?
-Dra. KAGOME! –ouviram uma voz gritando.
-O que foi? –ela perguntou correndo até a enfermeira.
-Houve uma capotagem, a pessoa está viva e precisam de você na sala de cirurgia! –a moça chamada Ayame disse.
-Certo! –voltou-se para Kouga –Dia tranqüilo hoje! –comentou sorrindo antes de sair correndo.
-Boa sorte! –disse se virando e indo na direção oposta.
-Ele está estabilizado? – perguntou assim que abriu as portas do centro cirúrgico.
-Sim, mas perdeu uma boa quantidade de sangue. –respondeu sua assistente Kagura, enquanto olhava os dados em uma prancheta –Ele é forte, os batimentos estão normais.
-Prepare para transfusão –Kagome ordenou terminando de lavar as mãos e colocando as luvas –Em que sala estamos?
-Na sala três. –respondeu Kagura saindo dali para pegar o sangue necessário. Como não sabiam qual era tipo sanguíneo, e não tinham tempo para fazer testes, pediu um litro do sangue tipo O negativo.
Kagome entrou na sala, e ao chegar perto da maca, ficou branca e muito assustada. Seu coração deu um pulo no peito e ficou tão apertado que parecia que ia explodir. Uma sensação que não tinha há muito tempo.
-Dra. Kagome? –chamou Kagura adentrando a sala –Tudo bem? –perguntou ao ver a brancura da jovem mulher.
-Qu...? Está... está tudo bem sim.
-Quer um copo de água?
-Não, não precisa. Já passou. –respondeu sem tirar os olhos do leito.
Não conseguia acreditar no que via. InuYasha estava lá, deitado na maca, olhos fechados e totalmente coberto de sangue.
De repente tudo ficou vívido em sua memória. Várias lembranças vieram à tona em sua cabeça, tomando forma, tomando cor e elas giraram, giraram e pararam na que demorara mais tempo para perder a cor e o sentido. A mais dolorosa, aquela que o tempo não conseguira apagar totalmente e que revivera noite após noite durante os primeiros anos.
Ficou um pouco zonza devido ao turbilhão de sentimentos e lembranças que rodeavam sua cabeça, mas recuperou-se logo. As brasas que ela sentia ter conseguido apagar dentro de si estavam voltando, aos pouquinhos, a pegar fogo. Mesmo sendo estranho, sentia que, em anos, finalmente havia um pouco de vida dentro de si. Enfiou a mão no bolso do avental e pegou uma aspirina para a leve dor de cabeça que começou a sentir. Tomou-a.
Como ele fora parar ali, em um leito de hospital? Porque logo ali? Porque naquele hospital? Mas aquilo não importava naquele momento, pois apesar de tudo ela era médica e estava ali para fazer o seu trabalho.
-Vamos começar, Kagura – disse para a ajudante que ainda a olhava apreensiva.
-Certo!
Não era nada muito grave, na verdade. Muitos cortes, o que justificava a perca de sangue. Alguns pontos, uma transfusão e tudo estaria bem. Havia ainda algumas partes quebradas, como uma perna e uma costela, mas nada que uma imobilização não resolvesse. Torções em algumas articulações, mas isso era o de menos. E ainda havia uma intoxicação por álcool, o que renderia mais algumas horas de sono, agindo junto com o remédio.
-Chame o Jinenji... –disse Kagome ao saírem da sala de cirurgia, tirando as luvas e touca –Peça para ele limpar o InuYasha e levá-lo para algum quarto. –começou a lavar as mãos.
-InuYasha? É esse o nome dele? Como sabe? –perguntou Kagura.
-Digamos que eu o conheci há muito tempo atrás. –respondeu secando as mãos.
-Ok.
Saiu do centro cirúrgico e subiu para o terceiro andar, parando no balcão.
-Sra. Kaede.
-Sim? –respondeu uma sra. ao chamado da jovem doutora.
-Você lembra de me fazer um favor? –pediu com um ar cansado.
-Claro.
-Depois que amanhecer, quando for umas sete e meia da manhã, liga para esse número aqui –ela anotava um número telefônico no papel enquanto falava –E peça para a Sango me encontrar no restaurante de sempre na hora do almoço, por favor –disse entregando-lhe o papel.
Kaede o pegou e leu os números. Abaixo deles havia o nome Sango escrito.
-Pode deixar, eu ligo sim. –disse a sra sorrindo.
-Obrigada. –disse voltando a andar, mas parou e voltou-se para a sra novamente –E peça para levarem um chá em minha sala.
A sra fez que sim e Kagome voltou a andar, agora sem interrupções. Foi para a sua sala, adentrou-a e sentou-se na cadeira. Não acendeu a luz, ficou ali, no escuro, sozinha com seus pensamentos. Mas eram tantos que se sentiu sufocada e com falta de ar daquele lugar fechado.
Saiu de sua sala, queria respirar um pouco de ar puro. Não conseguiria ficar ali. Passou por vários corredores sem notá-los, entrou no elevador e desceu até o térreo finalmente chegando ao jardim do hospital. A brisa gelada bateu em seu rosto, então sentiu recuperar o ar que lhe faltara nos pulmões. Caminhou até um banco que havia embaixo a uma frondosa árvore e se sentou. Tudo começou a passar como um filme em sua cabeça, desde o primeiro dia em que tudo começara.
§ Flashback §
Ouviram o sinal tocar. Era o primeiro dia delas na quinta série. Kagome e Sango se conheciam desde a primeira série, e nunca haviam se desgrudado. Na terceira série conheceram Miroku, que acabou virando amigo das duas, mas ele era mais independente e conversava com todos apesar de passar a maior parte do tempo com elas. Entraram na sala de aula e o professor anunciou a chegada de um novo aluno: InuYasha.
Ele parecia ser bem bravinho, e logo de cara Kagome não havia gostado dele. Mas sua mãe sempre a ensinara que deveria conhecer primeiro as pessoas para depois julgá-las, então, na hora do lanche, ela e Sango foram dar as boas vindas ao novato.
-Seu nome é InuYasha, não é? –começou Sango sorrindo.
-Sim.
-Seja bem-vindo à escola! –disse Kagome sendo gentil.
Mas ele limitou-se a olhá-la com desprezo.
-Feh! Vê se não me enche garota! –respondeu rudemente.
-Seu grosso! Estava tentando ser gentil!
-Pois não seja! –ele rebateu –Não preciso da sua gentileza!
Logo começaram a brigar. Sango resolveu ficar de fora, junto de Miroku que observava atentamente. Aquela fora a primeira briga de muitas.
Os dias depois desse não foram um mar-de-rosas. Os dois brigavam sempre. Apenas na oitava série que a situação amenizou, haviam crescido um pouco mais e não eram duas crianças do primário que ficavam brigando por qualquer coisa. Brigavam, mas os assuntos eram menos banais.
Kagome sempre ficara impressionada em como ele havia mudado. Aquela criança que conhecera havia crescido e ficado muito bonito. Com suas longas medeixas negras, grandes olhos púrpuras e um corpo de dar inveja em qualquer outro menino. Não apenas ele, Miroku e Sango também haviam mudado. E até mesmo ela.
Miroku ficara alto e muito mais safado do sempre fora. Não perdia uma oportunidade para passar a mão nas garotas, principalmente em Sango. Eles brigavam mais, e sua amiga que sempre fora tão calma, havia ficado bem mais brava e independente.
O tempo passou mais, e Kagome sentiu que estava começando a nutrir um sentimento maior do que a pura amizade que sempre sentia pelo amigo.
-Você tem que conversar com ele, Kagome. –dizia Sango, já no segundo colegial.
-Eu sei, mas não tenho coragem.
-Tenho certeza de que ele entenderá. Somos amigos há tanto tempo!
-Eu vou falar com ele, assim que eu reunir coragem! Prometo! –disse vendo a cara que Sango fez de ceticismo.
§§§§§§§§§
Então no terceiro ano aconteceu.
-Hoje teremos uma nova aluna conosco! Seu nome é Kikyou. –disse o professor.
Era uma menina muito bonita, ao ver de Kagome, apesar de ter achado seu olhar frio e intimidador. Só que não havia gostado do jeito que Inuyasha olhava para ela. Viu fascinação e brilho em seus olhos, ao mesmo tempo que suas bochechas pareceram levemente ruborizadas durante alguns segundos.
-Olá, eu sou Kikyou –Kagome ouviu a nova aluna dizer para InuYasha na hora do intervalo.
-Eu sou InuYasha –respondeu.
-Eu sou nova e não conheço a escola... Será que você poderia me mostrar? –ela perguntou –O professor disse que poderia pedir a qualquer colega, então.
-Claro! –ele concordou antes que ela terminasse de explicar.
-Mas havíamos combinado de passar o intervalo juntos! –disse Kagome interferindo. Notou então que a nova aluna a olhou com desprezo.
-Ela é nova, Kagome! Amanhã a gente faz isso! –disse já de pé e andando com Kikyou para a porta.
Mas não o fez. Eram poucas as vezes que passavam o intervalo juntos agora. Ele estava sempre com a Kikyou. Então um dia Kagome decidiu falar o que sentia, decidiu revelar. Não suportava sentir o desprezo inconsciente que ele dava à ela e se houvesse uma chance, apenas uma de que ele também gostasse dela, então deveria tentar. Se não, passaria pra outra. InuYasha não era o único homem do mundo que ela poderia gostar.
Foi procurá-lo no intervalo. E quando o achou, não podia acreditar o que seus olhos viram. InuYasha e Kikyou estavam embaixo de uma árvore no pátio anterior da escola, longe de todos os olhares, inclusive dos professores. Então o rapaz segurou a cabeça da jovem e pousou seus lábios nos dela.
Kagome olhou para baixo e virou a cabeça, antes de sair andando dali. Queria ficar o mais longe possível dele. Mas não derramara uma lágrima, até chegar em casa, quando desabou em sua cama e chorou a tarde inteira. Chorou sozinha, sem demonstrar sua tristeza para ninguém.
Pensou que poderia esquecê-lo fácil ao longo dos meses que foram passando, já que era isso que decidira fazer. Passaria pra outra, InuYasha não gostava dela. Aquela havia sido sua resposta. Mas não conseguia. Dizia para si mesma que não gostava dele, chegou até a pensar que o odiava um dia inteiro, mas isso de nada serviu. Então tomou uma decisão que mudaria sua vida.
-Mãe, quando eu terminar o colegial eu vou fazer faculdade em Nagoya.
-Mas é longe Kagome! –sua mãe protestou.
-Mas eu quero ir embora de Tokyo! Não quero passar o resto da minha vida num templo! E lá tem uma boa faculdade de medicina, que é o que eu quero fazer.
-Você não pode mudar a sua vida por causa de um homem, minha filha! – disse sua mãe, pois sabia que um dos motivos ocultos para essa súbita mudança era InuYasha. Conhecia Kagome.
A garota olhou com raiva para a mãe.
-Eu vou mudar a minha vida para não sofrer! E eu realmente quero ir pra lá. –ela disse encerrando o assunto.
Não sobraram alternativas para sua mãe, apenas aceitar. Talvez fosse melhor mesmo e com isso Kagome poderia crescer e aprender. Não queria brigar com sua filha, e, afinal, ela estava vendo que a filha queria tanto esconder, toda aquela tristeza. E isso a fazia se sentir mal, já que era um assunto em que não poderia ajudar a filha.
§§§§§§§§
-Quando eu achar uma casa, eu ligo te passando o endereço e o telefone. –Kagome disse para sua mãe quando estavam na estação se despedindo –Mas não passe para ninguém, ta? Vou continuar mantendo contato com a Sango, mas só. Não quero levar muita coisa daqui. Vou começar de novo. –disse sorrindo, mesmo que não tivesse tanta certeza de nada no momento.
-Tem certeza de que é isso que quer? –sua mãe perguntou a abraçando.
-Tenho. –respondeu com firmeza, para conforta-la.
E a partir daí sua vida mudara completamente.
§ Fim do flashback §
Suspirou. Aquelas lembranças a deixavam triste. Depois de muito tempo conseguiu superar tudo e deixar para trás sem ficar derrubada do jeito que estava ficando agora. Não era justo, simplesmente não era.
As únicas pessoas com as quais tinha contato ainda eram sua família e Sango. Eram melhores amigas, e isso não iria mudar nunca. Encontravam-se uma vez por mês, e a amiga agora era professora de química na faculdade Toudai. Pelo que sabia da amiga, InuYasha ainda estava com Kikyou.
Tomou uma aspirina ao sentir sua cabeça latejar, e para fazer com que a dor nas costas fosse embora. Esfregou o rosto e respirou fundo.
-O que você tem? –ela olhou para cima e viu Kouga lhe esticando um copo –Chocolate quente! –completou. Sabia que ela não tomava café.
-Obrigada.
-Parece triste, aconteceu algo? –ele perguntou sentando-se ao seu lado no banco.
-Não, tudo bem. Eu só estava me lembrando de coisas ruins. Coisas que eu gostaria de deixar onde estão: no passado. –respondeu fitando o chão.
-Entendo. –o médico resolveu que não deveria perguntar mais nada, para não deixa-la ainda mais triste fazendo-a se lembrar –Já vai amanhecer, vamos comer alguma coisa? –ele perguntou sorrindo e lhe esticando a mão.
Kagome olhou no relógio, e de fato o sol já iria nascer. Eram cinco e meia da manhã.
-Vamos! –disse pegando a mão que ele estendia tão amavelmente.
Levantaram-se e adentraram o hospital novamente.
"Minha alma triste espera a solidão,
Minha alma triste espera a morte,
Nefasta recompensa da ilusão,
De quem ama sem na vida ser amado"
(Almiro Dottori Filho)
