Título: Noites sem fim
Autora: Dana Norram
Beta: Shibbo (thankyou, Oropéia!)
Par/Personagem: Harry/Draco, Ron/Hermione, George Weasley
Classificação: NC-17
Parte: 1 de 3
Resumo: Quando sonhamos, estamos sempre sozinhos. // SLASH // HarryxDraco // EWE
DISCLAIMER: Se Harry Potter fosse meu, o ship Astoria/Ginevra seria canon.
AVISOS: A fic trata de abuso de drogas e tem pseudo-dub-con, além de angst a dar pau. E lógico, é SLASH (homemxhomem). Não gosta, não perca o seu tempo e nem o meu: não leia.
NOTA: Os nomes dos "capítulos" são trechos retirados da música Lover I Don't Have To Love, originalmente composta por Bright Eyes e regravada pela Bettie Serveert (a versão que eu prefiro, aliás). Ah, a fanfic ignora a existência do epílogo.
Noites sem fim
por Dana Norram
Parte I
"Bad actors, with bad habits."
Já passara da fase de achar que era só uma questão de tempo. Que daquela vez daria certo. De que era somente uma necessidade de encontrar a posição certa para conseguir relaxar. Esvaziar a mente e esquecer-se das preocupações que o haviam atormentado ao longo do dia. Ele já sabia que não adiantava mais.
Não naquela noite. E também sabia o que precisava fazer caso quisesse estar razoavelmente decente pela manhã. Sabia, sim, mas ainda assim insistia. 'Só um pouco, só um pouco mais', pensava, seus olhos cerrados e os braços envolvendo o travesseiro como se aquilo pudesse ajudá-lo de alguma forma.
E foi frustrado, irritado e com raiva da própria impotência que ele finalmente chutou os lençóis e se levantou, caminhando descalço pelo quarto até alcançar o banheiro. Tateou às cegas pela parede para encontrar o interruptor junto ao espelho, e o acionou, cobrindo os olhos instintivamente, sentindo a luz amarelada perfurar-lhe pelas frestas entre os dedos.
Abrindo o espelho sobre a pia com as mãos trêmulas, revirou o armarinho de qualquer jeito, derrubando tubos de pasta de dente e sabonetes até encontrar um frasco que segurou com mais força que o necessário, talvez temendo derrubá-lo também, por fim abrindo-o com um estalo da tampa. Sem sequer se preocupar em contar quantas unidades ainda havia ali, ele virou todo o conteúdo do frasco na palma da mão, fitando as pílulas brancas por um segundo apenas, antes de enfiá-las na boca.
O sabor levemente amargo não o incomodou, mas a garganta seca arranhou conforme tentava engolir as pílulas e foi por isso que ele abaixou a cabeça e abriu a torneira, tomando goles da água que saía em jorros fortes e gelados. O sabor metálico sobrepujou o amargor do remédio e ele ajeitou o corpo, enfiando ambas as mãos debaixo da corrente para em seguida molhar o rosto com elas, esticando os dedos para trás da cabeça e umedecendo os cabelos.
O espelho devolveu uma imagem disforme e embaçada quando ele o encarou e, encostando a testa contra a superfície lisa e fria, Harry Potter sorriu de lado, cansado, débil, mas finalmente satisfeito. Satisfeito pela certeza de que conseguiria, agora, finalmente dormir.
—x—
"Cara, você está péssimo."
Harry virou a cabeça, pela primeira vez se dando, de fato, o trabalho de encarar quem ocupara o espaço vazio ao seu lado no sofá, desde o momento em que Hermione saíra junto com Ron para fazer-não-sei-o-que. E foi George Weasley quem encontrou, sustentando o seu olhar com uma expressão que mesclava tranqüilidade e uma quase indiferença. Harry notou que os cabelos ruivos mal escondiam a orelha mutilada. Deu-lhe um sorriso forçado em resposta, concordando com um dar de ombros. George balançou a cabeça, segurando uma risada que saiu com uma fungar frustrado.
"É verdade, homem" comentou. "Digamos que daria até para desenhar o mapa da Grã-Bretanha nessas suas olheiras aí."
Harry estendeu uma das mãos na direção dos olhos, um gesto inconsciente, como aquele que costumava fazer nas antigas e vãs tentativas de esconder sua cicatriz. Não que tivesse perdido o hábito. Desistiu, porém, diante do olhar agora quase compreensivo do outro. Às vezes ele se esquecia de que não era o único a passar noites e noites em claro por coisas que só atacavam à noite. Lembranças. Faces. Coisas impossíveis de ser esquecidas e deixadas de lado...
"É, eu não tenho dormido direito" concordou, tentando parecer indiferente ao assunto e, ao dizer isso, Harry voltou-se para observar o espaço que se estendia à sua frente, fingindo prestar atenção nas mesas decoradas com toalhas coloridas e naqueles que as ocupavam, envoltos em conversas e risadas. Uma grande faixa vermelha, cujos dizeres 'FELIZ ANIVERSÁRIO, TEDDY!' brilhavam em dourado, pendia sobre o espaço repleto de pessoas comendo e bebendo, completamente alheios ao que acontecia em sua mesa.
Harry então sorriu consigo mesmo ao perceber que o aniversariante acabara de mudar as cores dos seus cabelos para amarelo-limão, arrancando risadinhas e vivas de um grupo de crianças que o cercavam, examinando os presentes que ele desembrulhava com ares de curiosidade.
"E cadê o Fred?" perguntou Harry de repente, sentindo falta de um dos garotos no ainda pequeno grupo de crianças, voltando-se para encarar George, que fez uma espécie de careta irritadiça antes de responder.
"Derrubou suco de abóbora no macacão ainda há pouco. Angelina disse que ia dar um jeito nele e sumiu com o garoto lá para dentro." O ruivo soltou um muxoxo. "Não sei para quê. É uma festa de aniversário, oras. Crianças correm, brincam. Se sujam." Havia algo de amargo no tom de voz de George.
Harry concordou com um aceno, ciente de que as outras pessoas tinham problemas bobos e corriqueiros e que o mundo continuava girando mesmo assim. Por um instante, porém, invejou George e suas preocupações tolas. Mas esse sentimento sumiu no instante em que o ruivo voltou a encará-lo com seriedade.
"Não mude de assunto, Harry. Dá para ver que você não está nada bem."
Com um suspirar irritado, Harry estendeu o braço, alcançando sua caneca de cerveja amanteigada.
"Dá, é?" Ele desviou o olhar de George e resmungou pelo canto dos lábios.
"Dá." George respondeu e ficou em silêncio por quase um minuto antes de continuar falando. "Sabe, quase ninguém mais consegue olhar para mim por muito tempo. Todo mundo quer esquecer o que aconteceu e, bem, ninguém gosta de ficar me encarando mais. No começo isso me irritava pra cacete. Me deixava puto... mas, a coisa é que eu acabei aprendendo a tirar vantagem disso, entende? Já que gostam de fingir que não estou por perto, eu posso prestar atenção em todos eles, porque sei que ninguém vai perceber mesmo. E lhe digo uma coisa, companheiro: eu andei prestando atenção em algumas pessoas."
Harry tomou outro gole de sua caneca, tentando, mas não conseguindo, olhar nos olhos de George. Ele não se dera conta de que evitava fitá-lo até o ruivo dizer-lhe em voz alta.
"No pequeno Ron, ali, por exemplo" disse George sem se abalar pela reação de Harry, indicando o irmão, afastado apenas alguns metros, ao lado de Hermione, que mantinha uma animada conversava com Fleur. "Ele anda preocupado."
"Lógico que está" tornou Harry, segurando a vontade de rodar os olhos. "Hermione está de dois meses. Ela só conseguiu segurar mais ou menos por esse tempo da última vez. Ele tem medo de que aconteça de novo, oras. É normal." Harry suspirou, acrescentado um 'mas vai dar tudo certo' em voz baixa.
"É?" Perguntou George, sinceramente curioso. "Como você sabe?"
"Sei lá" admitiu Harry, sincero também. "Eu espero que dê."
George ignorou o comentário, parecendo mais interessado em continuar com sua linha de raciocínio. "Não, não é só isso. Ele também está preocupado com outras coisas. Com o que tem ouvido no trabalho, por exemplo. De vez em quando ele aparece lá na loja, sabe, para me dar uma mão e a gente conversa. Um pouco. Ron está preocupado com Hermione, sim, porque pediu que ela tirasse licença e agora ela fica o dia inteiro em casa sozinha e ele quer fazer companhia para ela, mas não pode porque também está preocupadocom você."
Harry uniu as sobrancelhas, erguendo o rosto para George, ainda que evitasse encará-lo diretamente. "Ron não tem por que estar preocupado comigo" disse descrente, antes de pensar um pouco e emendar. "Ele nem me falou nada."
"Ele é seu melhor amigo" George suspirou. "Acredite, ele sabe que tem algo errado, mas, diferente de mim, ele não sabe o que porque não observa. Ele só sente. Hermione provavelmente sabe, mas deve achar que está pensando demais porque está ociosa e porque está grávida e grávidas ficam com humores malucos ou algo assim. Mas eu lhe digo, Harry, os dois estão preocupados. E eu falaria com eles se fosse você. Sabe, antes que eles acabem chegando à conclusão errada sozinhos."
"Falar com eles?" Perguntou Harry, o cenho franzido. "Não há nada para dizer a eles. Nem eles tem com que se preocupar, George."
"Você não consegue dormir, Harry. Acha mesmo que isso é nada?"
"Bem," tornou Harry, tentando não soar irritado, mas sem fazer um grande esforço para isso. "Não é algo que eles possam resolver. E eu sei que uma hora vai passar."
"É? Vai? Há quanto tempo você está tomando, hm? Dois? Três meses? Eu diria três, mas posso estar enganado."
Harry arregalou os olhos por trás dos óculos redondos. Viu George abrir um torto sorriso de cumplicidade.
"Como...?"
"Eu já lhe disse" respondeu o ruivo, um ar levemente maroto em sua face. Harry quase conseguia ver a sombra de Fred ali, escondida. "Eu sei. Eu observo. Veja, quando Angelina e Fleur estavam comentando sobre se era normal ter insônia durante a gravidez num almoço desses, você ficou por perto, prestando atenção quando elas falavam sobre se tomar remédios trouxas poderia fazer mal. E eu vi que você sumiu por algumas horas e que, quando voltou, ficava com uma das mãos no bolso do casaco o tempo todo. Notei também que você parecia ter dormido melhor no dia seguinte, quando apareceu com Ron na loja, depois do expediente. E eu também percebi que o efeito já não é mais o mesmo, certo? Você deve ter dobrado a dose e, mesmo assim, não está mais adiantando." George se calou por alguns segundos antes de acrescentar. "Deve ser horrível."
Harry soltou um suspiro, derrotado. "Você nem tem idéia."
"Até que tenho, sabe? Mais do que você imagina" disse George, puxando a varinha para levitar duas novas canecas de cerveja para eles. "Começou logo depois que o Fred nasceu, entende. Ele acordava chorando. Sempre. Angelina tem um sono muito pesado, então era eu quem acabava indo ver como ele estava. Depois ele já nem precisava me acordar, eu abria os olhos antes, como se soubesse que ele ia chorar e logo já estava do lado do berço. Mesmo quando o choro parou, eu ainda acordava sozinho e não conseguia mais dormir."
Harry encarou George sem saber o que dizer.
"Tentei pílulas no começo" o ruivo continuou, agora como se tivesse falando consigo mesmo. "Uma das meninas da loja tem receita, ela tem uma filhinha e também ficava sem dormir, às vezes. Eu passei a tomar todas as noites, mas o efeito começou a passar também, com o tempo. Dobrei, tripliquei a dose, mas não adiantava mais, sabe? Parece que remédios trouxas não têm o mesmo efeito na gente."
Harry balançou a cabeça, concordando e querendo que ele falasse mais. Que chegasse ao ponto. "E como você não tem nenhuma olheira e, imagino, não é chegado em feitiços de beleza, suponho que você está me contando tudo isso porque encontrou uma solução."
George sorriu de lado. "Nunca pensou em tomar poções para dormir?"
Harry fez que sim com a cabeça. "Mas isso não é o tipo de coisa que se encontra em qualquer lugar. Aurores só conseguem com licença de um medibruxo e não é como se eu precisasse de mais gente de olho em mim lá no trabalho. E, bem, digamos que eu nunca fui o melhor aluno do Snape."
"Nem eu" disse George com uma piscadela e um sorriso enviesado. "Mas, felizmente, algumas pessoas sabem e não estão nem aí para quem vai tomá-las. Desde que sejam bem pagas para isso."
"Você? Comprando poções ilegais?" Harry soltou uma risada baixa. "Ha, por que será que isso não me surpreende?"
George não se preocupou em parecer ofendido. Simplesmente abaixou o corpo, aproximando-se e falando baixo e rápido.
"O ponto, Harry, é que se você precisar, é só dizer. Eu não quis no começo porque achei que era uma questão de tempo até tudo passar, mas depois do terceiro mês nessa brincadeira, eu quase derrubei o Fred quando ele estava no meu colo, porque cochilei no meio da tarde, assim, do nada. Acredite em mim. Há coisas que valem o risco. Depois o corpo volta a se acostumar, toma ritmo de novo e você pode diminuir as doses. Hoje eu tomo uma, duas vezes por mês, no máximo." O ruivo lhe deu um sorriso franco desta vez. "Você não precisa ficar sofrendo a toa. Estou lhe dizendo isso porque sei como é horrível ter sono... e não conseguir dormir."
—x—
Quisera Harry que os motivos de sua falta de sono fossem um filho recém-nascido com fome e carente de atenção.
Ele e Ginny tinham rompido um ano antes, quando a relação entre os dois se tornara insustentável diante de suas personalidades, gênios e perspectivas. Harry, ainda vítima dos fantasmas da Guerra, uma sensação diariamente alimentada graças ao seu trabalho como auror, não conseguia parar de se sentir mal por Ginny, lhe dizendo o tempo todo o quanto a sua profissão era perigosa e sobre como não achava certo ela correr riscos, quaisquer fossem, para ficar com ele. Ginny eventualmente perdeu a paciência e respondeu, irritada, que já fora deixada de lado tempo demais e que entendia quando era dispensada pela segunda vez.
Harry acovardou-se, pois a queria por perto, sim, mas sentia-se egoísta e não conseguia ficar quieto e simplesmente aceitar. Sabendo que ela podia estar viajando pelo mundo com o time. Sabendo que ela ainda tinha uma vida inteira pela frente, cheia de oportunidades e expectativas, enquanto ele ainda tinha tantas contas a acertar com o passado. Ginny não percebeu que ele só queria o seu bem e que ela fosse feliz, de algum jeito e, no fim, ela já não o queria mais. Desistira dele como antes. Harry sentiu o golpe como uma maldição premeditada, mas entendeu e aceitou e, com o tempo também, deixou para lá. Para esquecer, jogou-se de cabeça no trabalho. Horas e horas sem pensar em outra coisa, sem se dedicar a outra coisa. Foi promovido em tempo recorde e, ao invés de se acomodar, trabalhou dobrado. Meses depois, subira de cargo novamente.
Foi quando começaram as matérias no Profeta Diário. Ser o Salvador do Mundo Bruxo nunca fez com que ele fosse poupado de críticas e Harry estava acostumado a elas, mas ficou realmente puto quando leu que sua última promoção fora apenas porque ele era o famoso Harry Potter. Harry quis pegar o autor do artigo pelo pescoço e lhe ensinar umas boas verdades — Ron chegou inclusive a apoiá-lo, embora Hermione tenha sido contra, sugerindo apenas processar o jornal — mas ele acabou preferindo usar aquele tempo que perderia em inquéritos e justificativas para trabalhar mais, desvendar mais casos. Mostrar serviço. Mostrar que o resto do mundo estava errado sobre ele. Que era mais do que um nome e uma cicatriz e um pouco de sorte.
Tomou para si todas as horas extras que podia. Só ia para casa quando não havia absolutamente mais nada a ser feito. Dormia no quartel dos Aurores três, quatro, cinco vezes por semana, embora o termo correto fosse 'passar a noite' — uma vez que ele dificilmente pregava os olhos, se ocupando em estudar o último caso que estivessem investigando. Ele analisava provas, cenários e situações quando não havia nenhuma ação a ser feita. Mas quase sempre havia e era lá que ele mostrava seus reais talentos. Prendeu um grande número de simpatizantes de Voldemort. Enjaulou outro tanto de bruxos criminosos e malfeitores. Acabou promovido novamente.
Mas as críticas não cessaram.
"Ignore-os, Potter" dissera-lhe um sisudo Kingsley Shacklebolt, ex-auror e atual Ministro da Magia. "Todos nós sabemos o quanto você vale e o que faz. Essa gente não poupa ninguém." E como que para ilustrar suas palavras o Ministro estendeu um jornal sobre sua escrivaninha, mostrando uma caricatura que estampava a primeira página de um jornal subversivo. Nela, o próprio Shacklebolt aparecia vestido de imperador romano e jogava inúmeros aurores sem rosto aos leões, poupando apenas um deles —que usava óculos e tinha uma cicatriz em formato de raio na testa.
A manchete falava sobre um caso recente que culminara na trágica morte de dois aurores, após uma frustrada operação contra uma facção criminosa. Harry sequer participara do caso (estava caçando um assassino de trouxas em Bristol), mas algumas pessoas pareciam achar que ele deveria ter salvado o mundo daquela vez também, de alguma forma.
E ele tentou, realmente tentou ignorar e voltou ao trabalho. Mudou do chá para o café para poder agüentar mais e mais noites acordado. Espreitando. Investigando. Caçando. Convenceu Ron a pedir uma semana de folga quando Hermione ficou grávida pela segunda vez, dizendo que supriria a ausência do amigo. Não faltou nenhum único dia. Fez suas horas e mais as horas de Ron e, mesmo quando voltava para casa, ficava elétrico, dormindo menos de três horas e voltando para o Quartel no primeiro horário.
Seus colegas não pareciam estranhar seu comportamento, mas lhe pediram para 'maneirar' quando ele enfiou um murro num repórter que conseguiu burlar a barricada feita ao redor da cena de um crime e lhe perguntou de que adiantava usar um expelliarmus contra gente daquele nível. Hermione mordeu o lábio inferior quando ele e Ron lhe explicaram o que aconteceu, mas depois de trocar um olhar rápido com o esposo, ela apenas balançou a cabeça para Harry, suspirando. Nem ela, nem Ron, nem ninguém culpou Harry pela atitude, mas tampouco acharam que ela deveria se repetir.
Harry foi, então, convencido pelos amigos a tirar dois dias de folga. Aquela foi a primeira noite em que ele sentiu que algo estava realmente errado. Seu corpo inteiro doía, clamando por descanso, cada músculo e osso fatigado ao extremo. Mas, quando Harry finalmente conseguiu parar e deitar, o sono simplesmente não veio.
O que se seguiu foram horas que pareciam não ter fim. Horas em que ele ficou revendo a cena do crime do dia anterior, se perguntando o que, afinal, ele poderia ter feito para evitá-la. Poderia ter impedido? Poderia ter feito algo para evitar que alguém que ele sequer conhecia morresse daquele jeito? Como descobrir o responsável? Havia algo que podia ser feito? Havia o que...
E Harry se levantou várias vezes naquela noite. Caminhou primeiro até cozinha para beber um copo d'água. Depois até o banheiro para lavar o rosto. Em seguida apelou para um banho morno. E um copo de leite quente. E de volta a cama. Os lençóis ficaram rapidamente amarrotados de tanto que ele se mexia, procurando por uma posição que lhe devolvesse o sono. Harry precisava dele. Precisava daquelas horas de abençoada inconsciência.
Se ele pudesse dormir, talvez ele conseguisse acordar renovado e pensar direito e pensando ele poderia achar uma solução para o que acontecera. Para o caso. Para salvar o mundo todo.
Mas o que Harry fez foi varar a madrugada, sem conseguir parar de pensar que ele lutara para salvar um mundo que, pelo visto, não queria ser salvo. Cinco anos depois de Voldemort e lá estavam novos grupos e seitas surgindo todos os dias, com seus ideais tortos e suas marcas. Carregando estandartes e bandeiras. Julgando-se melhores do que os outros e no pleno direito de matar.
E todos achavam que Harry Potter deveria fazer algo a respeito. Ninguém parecia entender que ele estava fazendo tudo o que podia.
As noites de insônia se tornaram uma constante. Harry cortou suas horas extras, pensando que tudo que precisava era diminuir o ritmo. Voltar à velha rotina. Que não ajudaria ninguém do que jeito que as coisas estavam.
Enganou-se. Simplesmente não conseguia mais voltar para casa e desligar-se do mundo. Mesmo quando não estava pensando em nada, Harry custava a dormir. Eram horas e horas virando de um lado para o outro. Repetindo o percurso do quarto ao banheiro, do banheiro para o quarto, do quarto para a sala (onde ele ligava a televisão comprada num arroubo de curiosidade até perceber que não sabia o que fazer com ela), depois para a cozinha, onde abria os armários um a um, anotando mentalmente que precisava comprar mais biscoitos de chocolate com nozes porque Teddy gostava deles, mas logo em seguida ele se lembrava de que não via Teddy direito há semanas por causa do excesso de trabalho.
Harry invariavelmente voltava para a cama, arrastando os pés no piso gelado, fazendo planos de passar na casa de Andromeda Tonks para pegar o afilhado e levá-lo para dar um passeio na primeira oportunidade que surgisse.
E as horas seguintes eram gastas pensando onde Teddy gostaria de ir e se chamariam Ron e Hermione para acompanhá-los, quando então se lembrava que Hermione estava evitando passeios por causa da gravidez e assim todos acabariam em casa, jogando alguma coisa ou conversando sobre o bebê que estava por vir. E isso tudo fazia com que Harry se lembrasse de um caso recente onde um grupo de bruxos rebeldes matara uma família de trouxas na calada da noite, sem poupar nem mesmo as duas crianças pequenas. Tudo fazia com que Harry se lembrasse do quanto ele se sentiu mal ao voltar do trabalho naquela noite junto com Ron e encontrar Hermione na sala da casa deles, tricotando um casaquinho, parecendo indiferente a tudo de ruim que acontecia no mundo lá fora.
Daí, quando amanhecia, depois de pensar e repensar casos e cochilar um pouco, Harry sempre acordava ciente de que tinha acabado de fechar os olhos, seu corpo aquecido e querendo ficar ali, na sua cama, as pontas de seus dedos formigando, os olhos cheios de areia. E ele sentia sono. Tanto sono...
Mas tudo não passava de um incômodo que seria resolvido mais cedo ou mais tarde. Era o que Harry achava. De verdade. Até o dia em que quase foi atingido por uma maldição imperdoável durante uma troca de feitiços com um grupo de criminosos que tentaram assaltar uma loja do Beco Diagonal. Harry voltou para casa àquela noite com a certeza de que precisava dar um jeito naquilo, mas, novamente, falhou ao tentar dormir.
E foi apenas no dia seguinte, durante um almoço na Toca, que surgiu a idéia de tomar pílulas trouxas. Ele imaginou que não seria mesmo muito complicado confundir um farmacêutico trouxa e conseguir algumas.
E aquela foi a primeira noite em semanas que ele dormiu mais do que seis horas direto. Acordou como se fosse uma nova pessoa, achando que encontrara a solução de todos os problemas do mundo. Passou na casa de Andromeda antes de ir para o Ministério e perguntou a Teddy o que ele queria ganhar de aniversário. O menino de quase cinco anos olhou sério para o padrinho, mas acabou rindo, lhe puxando pelo braço para que Harry tomasse cereal e suco com ele e a avó. Ron e ele foram beber no Caldeirão Furado depois do expediente, e ele percebeu o amigo hesitante, como se quisesse lhe dizer algo, mas então se convencendo de que não precisava mais.
E tudo correu bem. Por uma semana inteira.
Foi quando começaram os pesadelos.
Primeiro eram imagens anônimas. Rostos sem faces pedindo por ajuda. Vozes que ele ouvira em dias anteriores, no trabalho, na rua. Vozes que clamavam pela filha, tão pequena e tão doce, morta, perguntando sobre o marido que saíra para trabalhar e nunca mais voltara.
Logo, porém, Harry passou a reconhecer os rostos. E as vozes.
Ele viu a face pálida de Cedric, o corpo caído num cemitério e acordou gritando diante do balançar do véu negro, a derradeira risada de seu padrinho ecoando em seus ouvidos. Viu uma caverna, um lago e o conjunto de faces mortas tentando puxá-lo para o fundo de suas águas turvas. E cada face era um rosto conhecido. Dumbledore, Sirius, Lupin, Colin Creevy, Dobby, Tonks, Fred--
O remédio passou a durar menos e ele decidiu que precisava parar de tomá-lo para que seu corpo voltasse a ser afetado como era antes. Para que ele pudesse conseguir voltar a dormir, sem que seus sonhos o puxassem de volta para a realidade. Mas sempre era frustrado pelo cansaço que se tornava maior do que o medo de encontrar os pesadelos e ele acabava dobrando a dose, experimentando a sensação de perder os sentidos. Apreciando-a e desejando-a cada vez mais. Perdendo-se nela.
Mas agora aquilo ia acabar. Tudo voltaria a ser como antes. Ele podia voltar a apreciar o seu trabalho. Sair com Ron após o expediente e ajudar ele e Hermione e comprarem as coisas para o bebê que, desta vez, ele tinha certeza que vingaria. Voltar a levar Teddy para passear. Ajudá-lo a montar o trenzinho com trinta e seis vagões que lhe dera de aniversário.
Ele pensou muito antes de aceitar a oferta de George, mas depois de outra noite em claro, e de ter passado o dia inteiro no trabalho como se não tivesse real consciência do que acontecia ao seu redor, Harry desistiu de tentar achar de que o tempo daria um jeito nas coisas. Apareceu na loja quando Angelina ajudava o esposo a fechar as portas, o pequeno Fred rindo e correndo de um lado para o outro.
George não lhe fez perguntas, nem o olhou como se dissesse 'eu disse'. Apenas fez sinal para que Harry o seguisse até os fundos da loja, onde lhe entregou uma pequena caixa, dizendo que aquilo seria o suficiente para aquela primeira semana e que, quando precisasse de mais, bastava lhe mandar uma coruja.
E agora Harry fitava o pequeno frasco repleto de líquido perolado, que soltava uma fumaça rala, como a de gelo seco em contato com o ar. Era levemente morno ao toque e ele hesitou alguns instantes antes de virar seu conteúdo, sentindo a abençoada sensação de inconsciência desvanecer seus sentidos, um a um.
—x—
Harry dormiu um sono sem sonhos por dias seguidos, sempre acordando com a sensação de que tivera a melhor noite de sua vida. E foram semanas assim, até a sensação começar a mudar e ele, mesmo depois de dormir por uma noite toda, passar a acordar com calafrios, ansioso pela hora em que o sol se pusesse outra vez. Quando poderia tomar mais da poção e dormir e dormir.
Ele não percebeu exatamente quando começou a ansiar mais pela noite do que pelo dia, mas quando a noite finalmente caía, Harry não se preocupava nem em esperar a hora certa para tomar a poção, ingerindo-a tão logo chegava em casa. E ele se trancava no quarto, experimentando seus sentidos abandonarem-no como se ele fosse uma folha de papel caída sobre a água, se desfazendo aos poucos. Era uma sensação quase de desespero, aquela, mas Harry sabia que tudo ficaria bem quando estivesse envolto pela escuridão, adormecido em seus braços mornos.
Ele descobriu que se tomasse mais do que uma dose conseguia dormir por mais tempo e assim Harry o fez. Deitando quando o sol se punha, acordando quando o mesmo já estava alto. E ele dormia sem sonhar. Lamentava agora cada minuto acordado, seu corpo num estado febril, de uma quase euforia e irritação permanente.
Parecia que tudo que Harry queria era que as noites chegassem cada vez mais cedo.
E que elas durassem para sempre.
—x—
"Outra dose? Tem certeza?"
Cada centímetro do corpo de Harry tremia. Ele mandara uma coruja para George naquele fim de tarde, pedindo uma nova dose, mas o ruivo simplesmente não lhe respondera. Era por isso que ele resolvera bater na porta da loja depois que eles já tinham fechado e ficara realmente irritado ao saber que George não tinha nada em estoque para lhe arranjar.
"Harry, já faz algum tempo." George coçou a cabeça. "Você deveria ter diminuído as doses a esse ponto, não aumentado. Quem me fornece não tem um estoque tão grande assim. Precisa ser avisado com antecedência, uma poção dessas leva dias para ficar pronta."
Harry sentiu vontade de virar o conteúdo do bule de chá que a Hannah Abbout lhes servira, assim que chegaram ao Caldeirão Furado, em cima de George. Quem era ele para lhe dizer o que ele devia ou não devia fazer? Ele quem estava tomando a droga da poção! Ele quem sabia se precisava ou não dela e Harry rilhou os dentes, para se controlar, quando respondeu, sua voz vacilando.
"Sim, eu tenho certeza."
"Bem." George franziu o cenho. "Você não acha que seria uma boa conversar com a Hermione? Sei que ela não tem passado muito bem, mas ela pode ter alguma idéia. Não é normal a poção não ter surtido efeito a esse prazo. Tem algo errado."
"Não quero Hermione metida nisso." Harry foi categórico. "Ela tem outras coisas para se preocupar."
"Mas, Harry-"
Harry ergueu uma das mãos e George se calou diante do gesto.
"Olha, eu estou muito grato que você tenha me ajudado, George, sério mesmo, mas não posso ficar sem a poção agora. Ron está surtado por causa da última recaída de Hermione e tirou outra semana de folga e estamos com falta de pessoal. Não posso me dar ao luxo de cochilar no meio de uma missão. Eu preciso dormir."
George suspirou e olhou para os lados, parecendo não saber para onde correr.
"Vão fazer dois meses, Harry. A esse ponto você já deveria-"
Harry deu um soco na mesa, virando o conteúdo de sua xícara de chá. Alguns clientes lhe lançaram olhares de esguelha, mas recuaram diante da carranca de Harry. George o encarava como se nunca o tivesse visto antes.
"Mas-eu-preciso" disse entredentes. "Não sou igual a você e preciso da droga da poção agora!"
George mordeu o lábio inferior antes de responder, num tom de voz que parecia querer soar mais calmo do que realmente se sentia.
"Okay, cara, eu entendo. Mas eu não tenho nada comigo agora. Posso encomendar, mas vai levar uns dias e-"
"Onde?" Harry interrompeu, impaciente.
"Eu... como?"
"Onde você consegue? Com quem? Me dê o nome, o lugar, deixa que eu vou atrás sozinho."
George piscou, desconcertado e Harry se debruçou sobre a mesa, as mãos se segurando a borda de madeira, o rosto quente e vermelho enquanto ele tentava se controlar para não voar no pescoço do outro. Ergueu a cabeça e encarou o ruivo, seus olhos verdes brilhando.
"Vamos, George, não é tão difícil. Eu sei que devo estar lhe causando problemas. Angelina sempre me olha torto quando apareço por lá para pegar a poção, então, vamos tirar isso das suas costas, que tal? Não quero que você se dê mal por minha causa. Me fale com quem você consegue que eu mesmo vou lá e lido com o assunto. Vai ser bem mais fácil assim, não concorda?"
Harry não pôde se dizer surpreso quando leu o endereço no pedaço de pergaminho que George lhe estendeu por cima da mesa, rabiscado às pressas. Na verdade, sabia que deveria ter imaginado antes.
'Onde mais, em Londres, se encontraria esse tipo de lugar?', ele pensou consigo enquanto puxava o capuz de suas vestes para cobrir a cabeça e a passos rápidos atravessas as ruelas escuras da Travessa do Tranco.
(TBC)
NdA: A fic é dividida em três partes, todas com mais ou menos o mesmo tamanho (de 10 a 11 páginas). Devo postar a segunda parte domingo que vem, quem sabe antes. Sejam pessoas legais e me digam o que acharam. :)
