Disclaimer: Os personagens não me pertencem.

Alerta: Conteúdo para maiores de 18 anos no terceiro capítulo.

Capítulos: 1 de 4

Algo que me ocorreu enquanto eu estava lendo O Capital.


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- A Musa -

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Eu sabia que isso aconteceria. Tinha feito de tudo para evitar, programado o dia com cuidado para me deixar exausta antes de deitar. Mas coisas importantes para mim me causavam insônia e essa era a vida.

Tinha tentado me convencer na semana anterior que essa prova não era importante. Cheguei a pensar que havia conseguido.

Obviamente, eu estava errada.

Folheei o último livro do Jaime Osorio tentando me deixar sonolenta. Uma olhada para o celular na mesinha de cabeceira me disse que eram onze e meia. Onze e trinta e dois, na verdade, mas eu estava tentando fingir que não estava contanto minutos. Se eu pegasse no sono nesse exato instante, eu dormiria seis horas.

Menos tarde do que eu havia imaginado. Decidi terminar o capítulo antes de apagar a luz e tentar alguma técnica respiratória.

Eu não podia estragar essa prova.

Como a maior parte das pessoas que precisavam trabalhar para sobreviver, eu tinha um trabalho que eu odiava: era parte do RH de uma mega loja de produtos de encanamento.

Na prática, isso significa ficar acobertando as diversas formas como os donos (que tinham a bunda cheia de dinheiro) exploravam pobres trabalhadores que não tinham exatamente muita opção de emprego.

Meu amigo de infância insistia que eu não podia me manter assim. Que eu não tinha sobrevivido a uma graduação de quatro anos enquanto trabalhava como caixa de supermercado para terminar em algo tão desumano como isso.

Se me perguntassem como eu havia parado nesse emprego, eu não saberia responder.

Mentira, eu saberia.

Depois de me graduar havia precisado urgentemente de um emprego. Os anos me sustentando como caixa haviam me feito acumular algumas dívidas que precisavam ser pagas. Nem todos tinham a sorte de contar com o apoio financeiro dos pais depois dos 18 anos. Por mais que a minha mãe tentasse, os nossos recursos eram limitados demais para ela conseguir me sustentar vivendo na capital. Enfim, pensar nas coisas que a vida havia me forçado a fazer não me levaria a lugar nenhum.

A prova era a primeira etapa de um concurso para o Ministério do Trabalho e Emprego. Um cargo de baixo escalão, mas algo que poderia me ajudar a mudar a vida de outras pessoas e sobreviver ao mesmo tempo. Ao invés de ajudar gente com grana a explorar os outros, eu estaria tentando proteger o trabalhador.

Voltei para o meu livro e tentei ler um parágrafo antes de perceber que não havia absorvido nada. Apaguei a luz e me joguei nas técnicas respiratórias de indução de sono.

O alarme me acordou às seis horas. A última vez que eu tinha dado uma olhada no celular os números marcavam duas e quarenta a seis.

Eu me sentia péssima. Eu provavelmente aparentava estar péssima.

Me arrastei para o banheiro e me ceguei com a luz recém acessa. Conseguia enxergar uma garota zumbi no espelho entre as minhas longas piscadas cheias de ramela.

Yup, olheiras, olhos vermelhos, pele manchada. O bom é que tudo isso era um reflexo de como o meu cérebro se sentia - caótico.

Pensei em tirar um cochilo depois do banho. Eu tinha me programado para chegar à rodoviária (a prova seria na cidade vizinha e eu já havia comprado a passagem de ida) quarenta e cinco minutos antes.

Eu podia usar uma meia hora a mais de sono, não?

Não, eu não podia. Não me permitiria perder essa prova por algum atraso. A viagem consistia em um ônibus de meia hora até a rodoviária, uma viagem de pouco mais de 3h até a cidade, outro ônibus de mais outra meia hora até o colégio estadual onde aconteceria a prova. Os portões seriam fechado às 13h30 e eu planejava estar lá às 13h.

Eu pretendia não perder nenhum dos ônibus.

Uma sacola com comidas e um sanduíche para ser meu almoço me esperavam na geladeira. Uma roupa confortável estava separada na cadeira do quarto.

Uma bola de nervosismo se acomodou na minha garganta.

Tinha o pressentimento de que tudo daria errado.

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A camiseta que eu havia escolhido para a viagem estava apertada, a calça de moleton parecia escorregar pelos meus quadris e minha jaqueta simplesmente não me deixava na temperatura certa. Tudo no meu corpo parecia errado.

O objetivo desse dia não era estar bonita ou apresentável, era atingir o máximo de conforto possível para fazer a minha prova com calma. E eu não estava confortável.

Amarrei o cabelo em um rabo-de-cavalo alto e senti o couro cabeludo repuxar. Soltei o cabelo e deixei o elástico no punho.

A mochila, que continha todas as minhas refeições e a água necessária para o dia, além dos documentos para a viagem e para a prova, parecia pesada e machucava a minha clavícula.

Argh.

Nem uma maldita coisa podia dar certo hoje?

Eu estava exalando desconforto e qualquer um podia sentir isso a distância. Até Edward Cullen.

Edward era um desses caras meio estranhos, que variava entre simpatia e descaso sem um padrão muito claro. Ele parecia ter dificuldade em manter contato visual por muito tempo e ficava te encarando quando não estavas olhando para ele. Nas primeiras vezes, foi estranho (para não dizer assustador). Eu só fui entender o que estava acontecendo quando Angela, a vizinha de baixo, havia me explicado que ele tinha algum tipo de estresse pós-traumático (algo a ver o pai dele e tortura durante a ditadura militar). Eu fui instantaneamente de ter medo dele para ter pena. Meu pai havia sido um dos "desaparecidos" pela ditadura, minha mãe uma das torturadas. Eu sabia o que ele estava sentindo.

Eu não quero falar sobre isso.

O que importa é que hoje nós coincidimos saindo dos nossos apartamentos. Na verdade, eu saindo e ele entrando. Ele olhou de relance para mim antes de olhar uma segunda vez e fixar os olhos. Ele olhou uma terceira e quarta vez. A essa altura, eu já estava a um metro dele, indo em direção às escadas.

- Vai dar tudo certo, Bella - murmurou, antes de se enfiar dentro do apartamento.

Sim, até o vizinho com estresse pós-traumático sentiu o meu nervosismo à distância.

Irritada comigo mesma e querendo liberar um pouco de endorfinas, corri até o ponto. As endorfinas não ajudaram e agora eu estava 20 minutos adiantada para o ônibus.

Argh.

A movimentação de pessoas na livraria em frente ao ponto me chamou a atenção. Usualmente, era um lugar calmo em que eu gostava de tomar chocolate quente enquanto folheava livros. Hoje, ela era um formigueiro.

Ow.

Oooow, chocolate quente.

Isso era algo que liberaria todas as endorfinas do meu corpo.

Corri para a livraria para confirmar se a fila para para o café que ficava dentro deles. Nop, era, aparentemente, um autor famoso assinando livros. Ótimo.

Eu desviei das pessoas e fui direto para a minha droga de preferência. Era uma daquelas máquinas que preparavam tudo e, imediatamente, me arrependi por não ter feito isso em casa. A bebida estava quente e transbordante e eu segurei com a ponta dos dedos sentindo desde já o meu corpo ficar melado por dentro pelo açúcar excessivo.

Bebi o suficiente para sobreviver à multidão. A quantidade de pessoas havia aumentado e eu precisaria passar bem pelo meio delas para sair.

Argh.

"Aquela ali ó", "Nossa, é verdade!", "Será?", "Pode ser".

- Com licença? - pedi para uma dupla por entre a qual eu não conseguiria passar de outra forma.

O homem me olhou com um sorriso confuso. A mulher sorriu inicialmente e depois alargou os olhos como se estivesse me indicando. Eu ouvi ela murmurando um "né" depois que eu saí.

Eu disse que estava irritada? Tomei um longo gole com esperanças de me acalmar. Logo eu estaria sozinha com o meu chocolate no ponto de oni-.

Eu senti o calor descer pela minha garganta e esquentar a minha barriga.

Mas pelo lado errado. Pelo maldito lado errado! Eu afastei o copo do corpo e olhei para a pessoa que havia acabado de esbarrar em mim. Edward Cullen me olhava com aquelas coisas enormes que ele chamava de olhos maiores que o normal. As mãos dele estavam na minha direção, como se ele não soubesse o que fazer com elas.

Eu olhei para baixo, por onde o chocolate havia entrado pela minha gola e corrido até a borda das minhas calças. Eu queria chorar. O que eu fazia? Eu corria para casa, tomava banho, trocava de roupa e torcia para chegar em tempo? Eu desistia de tudo e fazia a prova melada?

Mas eu não lido bem com choro ou desespero. Então eu fiz o que eu faço melhor.

- Que bosta! Isso foi de propósito? Aquela frase de hoje de manhã foi uma piada?! Qual o teu problema?!

Eu sentia pelo canto dos meus olhos as cabeças virando. Eu não havia falando alto, mas eu havia falado com raiva. Edward estava com o queixo rígido me olhando, mais uma vez, fixamente. Ele ficou completamente vermelho (provavelmente tão irritado quando eu) e começou a olhar para os lados, como se o assunto entre nós tivesse acabado. Eu não havia esperado compaixão ou ajuda dele, mas isso não estava na minha lista de possíveis reações.

Eu precisava sair dali e resolver a minha vida. Ele havia dado um passo na minha direção eu dei um para trás. Lancei meu melhor olhar de "vai à merda" e me enfiei no banheiro. Valia mais a pena fazer a prova melada do que correr do risco de não fazê-la. Tirei a blusa e baixei as calças, pouco me importando com os olhares horrorizados. Me lavei com sabonete, água e papel toalha tentando me convencer a não pensar "não pode ficar pior" com o medo de que, se eu pensasse isso, ficaria.

Quando eu saí, Edward estava ainda olhando para a porta do banheiro, uma moça castanha de cabelos curtos parecia tentar acalmá-lo enquanto ele olhava de mim para ela. Ele passava as mãos constantemente pelo rosto e pelo cabelo, como se quisesse puxá-lo.

Fingi que não vi, já me sentido culpada por ter estourado em cima dele.

Na semana seguinte, quando eu estivesse melhor, eu bateria na casa dele e pediria desculpas. A última coisa que eu precisava agora era perder tempo e adicionar um pedido de desculpa à minha mente já caótica.

Eu estava me sentindo tão culpada que prestei pouca atenção na prova.

No ônibus de volta, eu já estava decidida a bater no apartamento dele e pedir desculpas. Ele não estava em casa. O que é bom, porque eu não tinha programado o que dizer anda. Antes de dormir, eu revi a cena do chocolate na minha cabeça e calculei que ninguém devia andar tomando um copo de chocolate quente e obstruindo a própria visão. Em alguns minutos, eu tinha certeza de que 80% da culpa do incidente era minha.

Saí um pouco mais cedo com a intenção de bater na porta dele. De novo sem resposta. Agora eu estava me sentindo mal. Ele nunca havia feito nada intencionalmente mal. Eu conseguia até sentir o quanto ele se esforçava para interagir e ser aberto e disponível.

Era possível que ele estivesse me evitando? Não respondendo a porta imaginando que sou eu?

Eu passei o dia enfurnada no trabalho. Fazendo o que eu mais odiava na vida, me convencendo de que o resultado da prova sairia em 15 dias e de que Edward não estava me ignorando.

Depois do terceiro dia sem resposta às minha batidas, eu tive certeza de que eu não era bem-vinda. Angela tinha me contado que o pai de Edward era um alto-escalão do exército e que havia decidido lutar pelo comunismo em meio à ditadura. A mãe de Edward havia descoberto e delatado o próprio marido. Edward era uma criança na época, mas filhos de comunistas precisavam ser "investigados" também.

Eu sabia como era. Eu só não havia sido "investigada" porque minha mãe havia me mandado para viver com a minha avó, no Uruguai, antes de ela e meu pai entrarem na clandestinidade.

Eu algum ponto, eu comecei a imaginar os tipos de torturas que eles faziam com crianças. Minha mãe nunca havia falado a respeito dos tempos em que ela ficou na prisão, mas eu sabia pelos outros relatos que praticamente todas as mulheres eram estupradas e que havia pequenos instrumentos de tortura "para crianças" com os quais eles ameaçavam as mães e as grávidas. Isso tudo foi material o suficiente para a minha imaginação.

Uma semana depois do incidente, eu recebi um pacote. O endereço de retorno era a mesma livraria onde tudo tinha acontecido. Na verdade, era um sala comercial que ficava no mesmo prédio.

O pacote era de uma loja no centro da cidade, um nome em uma língua estrangeira e que eu nem vou tentar pronunciar. Obviamente fora da minha escala de compras. Dentro havia um conjunto de roupas e uma carta no topo. Era de Edward.

Cara Senhorita Swan,

Por favor, aceite o meu pedido de desculpas pelo meu péssimo comportamento na semana passada. O meu erro e a minha falta de ação após o fato são indesculpáveis.

Eu tentei substituir as roupas que eu arruinei, em um tentativa de reduzir os dados que lhe causei.

Sinceramente,

Edward Cullen.

Eu li a nota algumas vezes. Em cinco anos havia sido muito difícil conseguir mais de cinco palavras em seguida de Edward. Essa carta tinha palavras com várias sílabas, agrupadas em sentenças coerentes.

A raiva subiu de novo. Eu pretendia me desculpar primeiro e agora ele havia estragado todo o processo. Eu respirei algumas vezes. A última coisa que eu havia falado para ele era "qual o teu problema?". Eu odiava quando as pessoas me perguntavam isso. Como se eu fosse culpada por não agir exatamente dentro do padrão de comportamento dos outros.

Eu era tão introvertida que eu não conseguia nem ser sociável com outros introvertidos.

Para terminar de me afundar, eu fui olhar o presente que eu teria que devolver. O conjunto era exatamente o que eu estava usando no dia. Uma jaqueta de couro, uma camiseta, uma calça de moleton e tênis. A única diferença é que eles eram a coisa mais confortável que poderia ter acontecido na minha vida. Tão macio que fazia o ar ficar preso na minha garganta. Apesar do óbvio grau de conforto, a roupa parecia muito mais conjuntada do que a que eu havia usado. Ou seja, isso era caro. Peguei o nome da marca na etiqueta e dei uma pesquisada.

Yup. Era caro.

E eu não podia aceitar.

E eu precisava embalar com cuidado e colocar em um canto remoto do apartamento para não estragar e devolvê-lo em paz.

Bati mais uma vez na porta dele, concluindo que ele estava fingindo que não estava em casa. Assim, falei sozinha no corredor, explicando que eu não estava brava, que eu só queria conversar e me desculpar.

Nada ainda. Fiz a mesma coisa na manhã seguinte.

Isso estava começando a sair do controle.

Faltavam 3 dias para o resultado do concurso. Decidi focar nisso. Depois eu pensava essa história com o Edward.

Mas… eu só precisava devolver essas roupas. E era melhor eu distrair a minha cabeça com outras coisas além do resultado do concurso. Olhei o endereço de retorno, descobri o telefone correspondente e liguei.

Editora À Esquerda, Lisa falando, como eu posso te ajudar? - respondeu uma voz simpática.

Eu gostaria de falar com Edward Cullen, por favor - tentei combinar com o tom simpático.

Eu sinto muito, ele não está disponível. Gostaria de deixar uma mensagem? - Lisa nem hesitou e eu senti que Edward nunca estava disponível para telefonemas. Fazia sentido, já que ele não era muito de conversar.

Eu tenho um pacote que eu preciso devolver para o Edward, será que posso deixar aí no escritório de vocês? - eu disse, na intenção de me livrar do estresse que era ter essa roupa dentro de casa.

O senhor Cullen está fora da cidade no momento. Eu não tenho certeza de quando ele volta - Lisa disse em uma clara tentativa de evitar o pacote.

Se eu levasse o pacote aí, vocês poderiam deixar no escritório dele ou algo assim? Eu realmente gostaria de devolver e não consigo achá-lo.

Houve um pequeno atraso antes de Lisa responder. Como se ela não soubesse o que dizer. Eu ouvi um falso começo antes de ela responder.

Sim, nós podemos segurar o pacote para o senhor Cullen. Só não sabemos quando ele o pegará.

Era bom o suficiente para mim. Eu só precisaria escrever uma nota explicando e toda essa história estaria terminada.


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Críticas construtivas são apreciadas.

Até!

Tia Nozes.