Nota: Só tive esta ideia depois de ler a página de La Casa de Papel no tvtropes, porque antes nem tinha pesado sobre este assunto lol.
Este fic também tem versão inglesa.
Disclaimer: Don't own anything related to La Casa de Papel.
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O dia já começou como começou, e o grupo de pirralhos parecia continuar a achar que estava de férias da escola. Berlim nunca trabalhara com um grupo tão numeroso, mas sinceramente, nunca esperara que pudesse ser assim tão mau.
Rio devia ter apanhado a sua primeira grande bebedeira, provavelmente umas duas ou três cervejas e já deveria ter caído para o lado. Hoje, a ressaca descomunal tinha-lhe enterrado a cabeça sobre a carteira, incapaz de abrir os olhos com medo que o movimento lhe fosse estoirar o crânio, tal e qual os adolescentes na escola. O Professor tinha desistido de tentar que ele prestasse atenção e vira-se forçado a abordar outro tema na aula que não fosse essencial que o miúdo ouvisse.
Nairobi e Tóquio estavam particularmente alegres; a elas a ressaca não parecia estar a sortir efeito. O mais provável era terem-na afogado de manhã com as garrafas que escondiam nos quartos.
Helsínquia e Oslo pareciam estar bastantes divertidos com a situação. Do pouco que conseguiu ouvir e apanhar dos seus comentários, achavam que Rio era um bebé. Nisso tinham razão. Moscovo não estava tão divertido, a expressão carregada de apreensão e desilusão.
E depois havia Denver.
Idiota.
Já depois da aula e do almoço, Berlim continuava irritado. Ou antes, a irritação ia piorando por cada hora que passava em vez de mitigar. Virou o casaco três ou quatro vezes, resmungando mais de cada vez que o fazia. Apetecia-lhe não voltar a usar o raio do casaco, mas tinha demasiado amor ao dinheiro e aos seus ricos diamantes que lhe tinham valido o tecido maravilhoso e costurado à medida que lhe assentava na perfeição, e lhe ficava uma perfeição. Denver não era para sequer respirar perto daquele casaco, quanto mais vesti-lo. Idiota.
- Ainda me hás-de explicar o porquê de certas pessoas cá estarem - reclamou audivelmente, chamando a atenção do Professor antes de ele sair do hall para o jardim.
O Professor ajeitou os óculos no cimo do nariz e suspirou.
- Tendo em conta que não houve danos de maior, acho que teremos de aceitar esta atitude por uma vez e deixar bastante claro que...
- Aceitar uma merda. O Denver roubou-me o casaco. Estamos em alguma comunidade? Algum retiro espiritual de partilha de bens?
- Achas que vais apanhar algum vírus, é? - escarneceu Tóquio, passando para ir buscar o seu copo à mesa e atirando um resfolegar irónico a Berlim.
- A estupidez pega-se, sabes? Uma rapariga tão interessante como tu devia ter cuidado antes que te tornes numa idiota chapada.
Tóquio esticou-lhe o dedo do meio e depois levou-o aos lábios, atirando-lhe um beijo antes de lhe voltar as costas com o cabelo a dar uma chicotada no ar. Berlim revirou os olhos sem paciência. Pelo caminho, apanhou o Professor a puxar os óculos para o topo do nariz de novo e a preparar-se para usar o momento para se esgueirar.
- Onde vais? Fiz-te uma pergunta.
- Hm?
- Que raio de circo é que montaste aqui? Andaste a procurar nos perfis da net até encontrares os piores?
- Todos foram escolhidos com um motivo muito válido. São todos essenciais para que o plano resulte, e nenhuma peça pode faltar ou acabaremos sem nada.
Que mesquinhez.
- O Helsínquia e o Oslo eu percebo. A outra miúda, a Nairobi, também percebo, é boa nas falsificações, e por muito que não seja certa da cabeça, e vê-se que é inteligente. O Rio é um putozeco ingénuo mas percebe de computadores. O Moscovo é essencial para a fuga. O idiota do Denver...
- Berlim...
- Roubou-me o casaco para ir passear para o festival. Não me venhas com merdas. Somos todos miúdos, por acaso? Estamos de férias? - O Professor suspirou e Berlim retomou a sua dissertação: - Ele não tem qualquer utilidade para isto, não vamos assaltar uma bomba de gasolina.
- O Denver...
- Eu sei. Ele eu até percebo. É inútil, mas o Moscovo não entraria sem ele. É um mal necessário. Agora, ela?
Como se o tivesse ouvido ou pressentido, Tóquio soltou uma gargalhada ressonante lá fora enquanto Nairobi explicava entusiasmada alguma coisa a Helsínquia, a sua voz esganiçando-se como de costume. O Professor seguiu o olhar de Berlim e voltou-se para terminar de arrumar os seus papéis. Berlim inclinou a cabeça para trás, sentindo a fraca tentativa de evasão da pergunta.
- E então, que justificação me dás?
- Como assim, justificação?
- Sergio... - O Professor disparou de imediato um olhar muito sério de aviso na sua direcção, que Berlim retribuiu com um sorriso provocador. Era bom recordar-lhe que não ia sair dali sem ter o que queria. - Responde-me.
- Já te dei a minha resposta. Todos temos um papel para cumprir. Basta uma peça falhar, e o plano desmorona-se.
- Não temos um único assassino aqui. - O Professor estacou. Berlim largou o casaco e pegou no seu copo, caminhando à volta da mesa. - Em que parte do teu plano idealista sem mortes é que se encaixa uma mulher que matou um polícia?
- Ela é profissional. Emotiva e impulsiva, sim... - Ainda antes do Professor acrescentar os adjectivos, já Berlim estava a resfolegar para o copo. Profissional, aquela bedelha? Pior, não era bedelha nenhuma e parecia não ter ultrapassado a puberdade. E o "profissionalismo" começava logo na forma como ela respeitara uma das regras que o Professor tão ingenuamente achara que todos iriam cumprir. Era difícil não ouvir a cabeça bonita de Tóquio a bater contra a parede a maioria das noites, e Rio também não primava pela discrição. Mas Rio, pelo menos, não enganava ninguém com o seu conhecimento informático e inexperiência em tudo o resto; o que não justificava, mas pelo menos previa um comportamento daqueles. Tóquio já era outra coisa.
- Como é que "emotiva" e "impulsiva" significam que é profissional?
O Professor fez aquela expressão que reservava para os comentários depreciativos "infundados" que Berlim tecia dos outros.
- A sério, não estou a brincar. Qual é a justificação que dás para a presença dela no grupo? Qual é a especialidade dela? Assaltos falhados?
- Iniciativa - respondeu o Professor. Berlim arqueou as sobrancelhas.
- Inicia-
- Como disse, é profissional, e o seu empenho vai manter os outros motivados.
- Tens a certeza que não é só para me provocar?
- O mundo não gira à tua volta, Berlim.
- Pois bem, se queres alguém que lidere, que tenha iniciativa e motive o grupo, tens-me a mim.
- Tenho ambos. Vocês equilibram-se.
- Ah, então tenho razão - disse Berlim a sorrir. - A função dela é irritar-me.
O Professor respirou fundo, procurando as palavras certas para aplacar e terminar a conversa sem dar o braço a torcer e dar razão a Berlim. Puxou os óculos para o cimo do nariz.
- Se acontecer alguma situação limite, quando o stress e a tensão ser acumularem ao longo dos dias, sei que os vossos temperamentos vão colmatar-se.
A gargalhada de Berlim ressoou baixa e vibrante, fazendo o peito estremecer enquanto ele abanava cabeça.
- As situações limites vão ser causadas por ela.
- Os vossos temperamentos são colmatar-se - repetiu o Professor, erguendo o dedo para enfatizar a mensagem. - Tu controlarás a situação emotiva com o teu estoicismo...
- ...e ela vai apontar-me uma arma à cabeça se as minhas decisões não lhe agradarem. Estou a ver, estou a ver. Tens uma boa forma de pensar. Ela faz de teu cãozinho para me manteres controlado caso me estique muito. Afinal, ela é uma assassina, e eu... - O Professor fez aquela expressão de novo. Berlim levou a mão ao peito, solene, mas a sua expressão continuou o mesmo escarninho de antes. - Acho que fazes muito bem, a sério. Já que não entendes que a diferença entre ser eu a quebrar regras ou serem os outros é muito grande, então percebo que queiras um contraponto para mim e o tenhas encontrado na Tóquio.
- Ninguém vai quebrar regras. - Mais uma declaração idealista e ingénua.
- A diferença é que eu quebrar regras significa que te enalteço como líder. Ela só o fará por infantilidade e impaciência.
- Não sejas cínico. Se quebrares regras será porque és teimoso e...
Berlim acenou com o dedo indicador enquanto dava estalidos com a língua. - Se virem que reages a mim, sabem que serás implacável com eles.
- Isto não é uma ditadura.
- Não é uma democracia. Não vais ter muito sucesso de outra forma, e sabe-lo. Por isso é que estou eu a cargo do assalto. - Deu outro estalido com a língua. - Tanto que lês, e ainda acreditas na utopia da democracia e da salvação dos condenados. Além de montares um circo, também tens uma vertente filantrópica. Reúnes os moribundos e os fatalistas para uma última tentativa de redenção. Ou antes, para fazer história.
Não o tinha dito com a intenção de o magoar - talvez para o provocar. Mas viu como o olhar dele se alterou e ele o afastou. Sabia que Sergio não gostava de ser relembrado do pouco tempo que Andrés ainda tinha. Por muito que se tornasse cada vez mais inevitável, ele continuava a não o aceitar.
Sergio respirou fundo. A postura do corpo endireitou-se quando ele se voltou para Andrés.
- É precisamente por essa atitude fatalista que é necessária a presença de alguém como a Tóquio. Conheço-te demasiado bem. A personalidade dela é oposta à tua. Ambos vão colmatar-se, e assim vão ambos impedir, juntos, que o outro dê cabo do plano.
Andrés assentiu e terminou a bebida.
- Veremos.
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fim
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Obrigada por lerem.
