Presente de Amigo Secreto do Grupo Palaestra, 2013, para Isabel Catanio/ RavenclawWitch.
.
Prólogo
.
Lednik Derevnya, Yakutia, Sibéria Oriental, 1982
Lednik Derevnya, ou « aldeia glaciar », devia a sua fama ao ser o local habitado mais frio do mundo. Os seus habitantes orgulhosos gabavam-se de se tornarem os sobreviventes a temperaturas de -40°C em Invernos rigorosos, e nutriam um sentimento de vaidade ao manterem esse estatuto. A landa transmitida entre gerações datava a origem da aldeia aos temos primórdios da criação; contando a história de Deus que, ao distribuir as riquezas pelo mundo que acabara de criar, tinha-se visto com as mãos entorpecidas pelo frio ao chegar a Lednink, deixando assim cair todas as riquezas naquela zona.
A noite tinha-se abatido cedo naquele ano, o manto da escuridão cobria a zona durante dias a fio. O Inverno estava à porta e as árvores cobertas de neve preparavam-se para enfrentar os rigores do vendo gelado que, quando soprava, fazia tudo desaparecer. Àquele continuum escuro e gelado já velhos e novos se tinham habituado, adaptando as rotinas do dia-a-dia às novas condições atmosféricas. Não se via ninguém na rua.
Em meio à desolação branca, um homem vestido com trapos de pano fino corria aos tropeções, lançando olhares furtivos para o caminho que percorrera, como se tentasse descortinar se alguém o seguira. Os pés desnudos enterravam-se na neve gelada queimando a pele, não conseguia mais controlar os tremores que lhe percorriam o corpo e o frio que lhe insensibilizava as pernas.
Crack
A bala sibilou-lhe perto do ouvido, enterrando-se na neve uns metros mais à frente.
Tinham começado a abrir fogo. O homem percebeu com pânico e horror que os brutamontes lhe davam caça, e que a captura tinha-se tornado num abate.
Continuou a correr como podia, tentando alcançar o adro da aldeia que parecia desabitada. Graças à audição de tísico que lhe facultava a sua condição, conseguiu distinguir um ruido de pessoas distante.
Crack Crack Crack
Com o coração a rufar-lhe no peito, olhou em volta e esforçou-se para tentar definir de onde vinha o alarido. Sabia que não havia seguranças momentâneas, mas que precisava pedir ajuda e que dispunha de apenas alguns segundos para alcança-la.
O que fazer?
Foi quando sentia que alguém se aproximava que viu a luz intensa que emanava de uma janela. Uma placa de madeira com alguns caracteres cirílicos balançava ao sabor das rajadas de vento.
Crack
Tinha sido atingido!
A adrenalina sobrepondo-se à dor que sentia na perna, levantou-se num impulso e moveu-se o mais depressa possível, tentando fundir-se com o ar.
À medida que se aproximava da casa, conseguiu perceber a quantidade de gente que estava reunida no interior. A taberna animava-se com uns ruidosos clientes que bebiam por entre entusiasmadas canções soviéticas, a cerveja jorrando com profusão pelos copos e as gargalhadas.
Era bom… o barulho dos foliões parecia-lhe exactamente o que precisava.
Crack CrackCrack
Quando atingiu a porta de madeira, projectou-se contra ela como um nadador que se atira para a piscina, fazendo-a abrir-se com um estrondo.
Sentiu-se desfalecer com a força do embate e caiu no chão, jorrando sangue pelas costas. As balas tinham chegado antes do som da detonação das kalashnikov.
Tinha sido atingido mais do que uma vez.
Com os olhos embaçados ainda conseguiu distinguir o choque estampado nos rostos das pessoas e alguns gritos no meio da multidão que agora se acumulava a um canto.
Foi então que a dor desferida pelos projécteis se tornou demasiado dolorosa.
Começou a perder a noção de espaço e tempo; a realidade tornou-se difusa e o mundo começou a rodopiar à sua volta. Deixou de ouvir os gritos animalescos em seu redor e os golpes desferidos pelas patrulhas que o tinham atingido. Como se a própria dor o tivesse anestesiado e a sua alma se tivesse desvaído para outra dimensão. Sentiu-se deslizar para a escuridão, embalado pelo torpor da morte.
