Frequentemente, quando se está tendo dias rotineiros, você espera que qualquer mudança venha como uma bola quebrando o vidro, espalhando tudo por onde passa e dando um novo ar aos acontecimentos da semana. E naquela manhã como qualquer outra, quando foi acordado por um golpe forte em suas costas e berros frenéticos, Mu pensou que essa fosse a bola na janela de sua vida, mas ele estava enganado.

— Acooooorda, pai! — dizia a voz energética do filho, que agora lhe atirava travesseiros.

— Uh... o extintor de incêndio está na parede do corredor... — respondeu Mu, se jogando novamente pra debaixo do edredom. Logo em seguida, porém, levantou. — Kiki! Feliz aniversário!

— Hoje não é meu aniversário, pai — respondeu o menino, coçando a cabeça.

— É mesmo, ainda estamos em Março... mas então por que me acordou com um chute nas costas, menino?

Agora totalmente acordado, Mu olhou para o filho com um olhar reprovador.

— Porque já são dez horas, e você disse que queria sair mais cedo pra entregar um modelo praquela perua de cabelo tingido. Não é minha culpa você ter voltado tarde do bar!

Mu se lembrou imediatamente, e tratou de se levantar, colocando o filho nas costas e indo em direção ao banheiro, apesar dos protestos do garoto. Pelo visto aquele dia seria igual aos outros. Depois de vencer a guerra santa para apenas arrancar-lhe suas roupas, empurrou o filho para debaixo do chuveiro, suspirando ao imaginar se outros pais também passavam por aquilo. Ele próprio quando tinha quatro anos não precisava ser arrastado para a banheira!

— Como você pode odiar tanto tomar banho? – perguntou, esfregando os cabelos cor de fogo do menino, que começou a rir.

— Eu só não gosto de tomar banho quando eu não tô tomando banho, mas quando eu tô, eu adoro tomar banho — foi sua resposta. Mu riu de leve, e depois de se lavar saiu do banheiro, deixando Kiki brincando com alguns bonecos. Precisava preparar o café da manhã logo, ou iria se atrasar. Ultimamente tudo estava sendo assim: correria, correria, correria. Ao passar pelas grandes janelas da sala, não pôde deixar de notar, com uma pitada de inveja, as pessoas que andavam calmas pela rua. Mas não estava infeliz nem nada, só um pouco cansado, e com isso já estava se acostumando.

Estava preparando duas panquecas tranqüilamente quando notou o filho saindo do banho, todo molhado e nu, em direção à cozinha.

— Kiki, quantas vezes já falei pra você me chamar? Assim você molha a casa inteira!

— Ah, pai, é só secar, que neurarespondeu, voltando para o banheiro seguido pelo pai.

— E você lá sabe o que significa neura? Tem só quatro anos!

— Eu já sou grande! — bradou, estufando o peito.

— Se já é grande, trate de aprender a se secar sozinho — bufou em resposta.

— Eu sei me secar sozinho, mas pra que eu ia fazer isso se eu tenho o pai?

Mu tentou não rir.

— Tá bom, Kiki, vá se vestir então. Preciso levá-lo para a escola mais cedo hoje.

— Já vou, já vou... — e foi, enrolado na toalha.

Minutos depois, alimentados e de banho tomado, Mu e Kiki desceram para o térreo, indo para o ponto tomar um ônibus. Antes, o pequeno ia para a escola de topic, mas como Mu andava demasiado ocupado pelas manhãs, precisava levar o filho mais cedo. Por sorte, um grande amigo seu era professor na mesma escola em que Kiki estudava, e se prestava a cuidar dele até a hora do almoço.

— Lembra de tudo que eu falei, não é, Kiki? — perguntou Mu, já no ônibus.

— Sim, pai, você deve ter repetido, tipo, um trilhão de vezes!

— Então repita tudo, palavra por palavra.

— Palavra por palavra é muito difícil, você sempre usa essas palavras grandes.

Pensou nisso por um momento. Realmente, por recomendação desse mesmo amigo professor, Mu sempre usava seu vocabulário comum com o filho. E vendo que o mesmo falava tudo de maneira correta e não costumava trocar letras, estava tendo o efeito desejado.

— Tá, com as suas palavras então — cedeu.

— Eu tenho que sempre obedecer o tio, eu não posso fazer bagunça no colégio, eu não posso atrapalhar as aulas nem os outros alunos... e o que mais mesmo?

— E você não pode jogar um balde d'água na cabeça do professor Hades.

— Aquilo foi só pra ver se o cabelo dele apagava que nem no filme!

— Muito engraçadinho, você. Por sorte ele não te deu umas palmadas.

— Hah, se ele tentasse era só gritar por socorro! — por um momento os dois ficaram sérios, mas então caíram na gargalhada, atraindo olhares de censura no ônibus. Pouco depois chegaram ao seu ponto, que ficava bem em frente à escola. Esta, por sua vez, mais parecia um sítio, com muitas árvores e salas de aula que ficavam em pequenas casas decoradas. Mu logo viu seu amigo, que os esperava em frente aos portões enquanto conversava com alguns garotos de dez ou onze anos, muito provavelmente alunos dele.

— Ei, 'fêssor, hoje de tarde 'cê dá aula de religião pra nós? — perguntou um menino de cabelos castanho-escuros, enorme sorriso no rosto e camiseta em um vermelho berrante.

— ...você assistiu à aula da sétima série, Seiya? — indagou o professor.

— Aham! Foi muito massa, e aquele troço com um monte de bolinhas style também!

— Rosário — clarificou. — E que bom que você gostou. Alguém mais assistiu?

— Eu — respondeu outro dos alunos, um rapaz sério, de cabelos escuros, que até agora estava encostado ao portão sem demonstrar interesse pela conversa. — Foi muito interessante, professor.

— Então mais tarde farei essa aula no lugar de história — disse, e então sorriu para o garoto mais sério. — É excelente que você tenha vindo, Ikki.

Ikki desviou o olhar, mas murmurou algo sobre como viria mais vezes. Kiki anunciou sua presença em seguida:

TIO!berrou, puxando Mu pelo braço enquanto atravessavam a rua.

— Kiki! — gritava Mu, alarmado. — Era pra olhar pros dois lados antes de atravessar!

Kiki ignorou os comentários do pai e continuou correndo, para então se jogar no colo do professor, que o girou no ar. Depois de ter certeza que ele estava tonto, colocou o menino no chão, arrumou os óculos e os longos cabelos, e tornou a olhar para Mu.

— Bom dia, meu caro — disse, cordialmente, mas com franqueza nas palavras.

— Bom dia! — Mu sorriu. — Está tendo uma boa aula hoje?

— Sim. Dois dos meus alunos da tarde vieram fazer trabalho no colégio — apontou para os dois garotos — e acabaram ficando para assistir.

Seiya deu um passo à frente.

— Ei, menino! — disse, colocando as mãos atrás da cabeça e sorrindo para Kiki. — Quer brincar de pega-pega?

— Quero! — respondeu Kiki, feliz por ter algo para fazer. Olhou rapidamente para o pai, que parecia um tanto apreensivo, algo que o professor foi rápido em notar.

— Não se preocupe, Mu. Ele é um bom garoto.

— Está certo, então, mas não faça muita bagunça, ok?

— Tá bom! — Imediatamente saiu correndo. — Tá com você!

— Ei, volta aqui!

E assim, os dois foram. Mu olhou para o filho por alguns segundos e suspirou, o cansaço agora mais evidente.

— Muito obrigado por fazer esse favor para mim, Shaka.

— Não é problema algum, e você sabe disso — os dois trocaram olhares e se despediram.

Mu voltou ao ponto de ônibus, pensando na manhã normal que tivera até agora, e esperando que ela fosse diferente das outras das últimas semanas – pois, apesar do que havia dito ao filho, não estava saindo todas as manhãs para entregar modelos ou voltando tarde de bares, e sim procurando emprego.

Era um problema que se tornava cada vez maior. Mu era um estilista freelancer, e até tinha algum renome pela cidade. Antes, sempre conseguia se sustentar sozinho com seus trabalhos; então veio o filho, e com ele as contas cresceram. No primeiro ano não foi difícil, mas a cada aniversário do menino as páginas do livro caixa ficavam mais cheias. Mu também não podia aumentar o preço de seus serviços – bem que tentou, certa vez, mas uma cliente em especial não ficou nada satisfeita. Estava desesperadamente procurando um emprego estável para que não tivesse problemas para sustentar o filho e não dependesse de coisas como caprichos de algumas esnobes sem-noção.

E assim, Mu começou a busca daquele dia, mesmo que soubesse que iria voltar sem resultados...

...mas ele estava enganado.


Notas do Autor: Então, essa idéia para uma fic AU (minha primeira sozinho, inclusive) surgiu literalmente do nada durante uma conversa sobre as interpretações errôneas de alguns personagens da série, como um plot bunny aleatório. Acabou que eu realmente gostei da idéia e, empolgado, comecei a escrever, e cá estamos! Muito obrigado à Mesarthim, por ter betado e me dado muitas sugestões ótimas, além de apoiado o projeto, e à Haine, na qual me inspirei pra escrever as interações do Mu e do Kiki. Reviews são muito bem vindos!

-Rikku (Tachibana)