Capítulo 1 – Sekai W Gakuen[1] – Elisa Thompson
Se eu já achava que meu primeiro dia no Ensino Médio ia ser completamente diferente de tudo o que eu já havia vivido, agora eu tinha certeza.
Tudo começou naquele domingo de abril, quando eu e outras centenas de alunos fomos barrados nos portões de nossa futura escola, a World Academy[2]. A World Academy foi construída em uma ilha meio "terra de ninguém", e abriga alunos do mundo inteiro, no estilo internato. Ou melhor, abrigava. Porque os portões foram as únicas coisas que sobraram após o incêndio que devastou toda e qualquer construção para além dele.
Assim, como nós não podíamos ser simplesmente mandados de volta para casa sem mais nem menos, nosso diretor conseguiu que fossemos todos transferidos para a maior rival de nossa ex-futura escola: a Sekai W Gakuen, uma escola excêntrica nos mesmos moldes da World. Digo excêntrica porque, bem, quem constrói uma escola enorme para apenas 194 alunos?
Nós não entendíamos o porquê do restrito número de alunos, nem por que eles se inicialmente se recusaram a nos aceitar, até que tudo nos fosse esclarecido na cerimônia de abertura. Os 194 alunos eram, na verdade, a personificação dos 194 países do mundo – por mais estranho que isso possa soar. Por que eles precisariam ir para uma escola, eu não faço a menor ideia.
A escola inteira tem um funcionamento meio esquisito, para ser sincera. As classes eram separadas por continente, mais ou menos como a divisão das salas por médias nos colégios normais. Se bem que deve ter aumentado o número de turmas agora... Além disso, cada aluno teria possibilidade de adequar sua grade com matérias condizentes com seus gostos, ou de seus países, incluindo aulas de sua língua nativa. Todas as aulas são ministradas em inglês, para a minha grande sorte como britânica, mas há uma atmosfera um tanto quanto japonesa dentro dessa escola...
Estava encarando a placa recém-colocada na porta para a qual me mandaram, no segundo andar do dormitório feminino. Ela indicava o nome das três pessoas que dividiriam os quartos. Normalmente, as meninas não dividiriam quartos, visto que não tinham tantas garotas assim, mas agora a coisa mudou de figura.
"Elisa Thompson" era o primeiro nome. Essa seria eu. 15 anos, nascida em Londres, Inglaterra. Cabelos castanhos escuros e longos, olhos verdes, nada que valha a pena descrever na minha fisionomia. Uma típica dama londrina. Minhas notas altas me jogaram na classe Ásia 1. Estereótipo ou não, as classes dos asiáticos seriam o equivalente às classes dos gênios.
O segundo nome na lista era "Sachiko Kurogawa". Não fazia ideia de quem ela era, mas eu podia ao menos suspeitar que fosse japonesa. O terceiro nome... Liechtenstein. Um país. Eu ainda não acredito nisso.
- Er... Com licença... Esse quarto é meu e eu, bem... Tudo bem se eu entrar?
A dona da voz era uma menina delicada, com cabelos loiros e muito curtos, um pouco baixinha, por sinal, com olhos verdes. Enfeitando seu cabelo, havia uma fita azul formando um laço. Ela usava o mesmo uniforme que eu: uma blusa branca escondida por um colete branco e um blazer azul escuro, uma saia xadrez carmesim (que, para meu eterno desgosto, ia até quase as costelas e possuía dois suspensórios com o mesmo padrão de tecido, mas que graças a deus era coberto pelo suéter), meias longas azuis, um sapato marrom e uma gravata verde. Pode parecer uma combinação de cores estranha, mas até que ficou visualmente bonito.
- Acontece que esse quarto também é meu – eu disse, sorrindo. Apontei para a placa. – Qual delas é você?
- Meu nome é Liechtenstein, muito prazer em conhecê-la. – Bastante formal, essa Liechtenstein...
- Eu sou Elisa, muito prazer.
Liechtenstein olhou para a placa antes de continuar a conversa.
- Thompson-san[3], seja bem-vinda a Sekai W Gakuen – ela se curvou em uma breve reverência enquanto falava.
- Você pode me chamar de Elisa, eu não me importo.
Acho que eu não deveria ter dito isso. Liechtenstein ficou vermelha e começou a gaguejar.
- M-mas...! Nós acabamos de nos conhecer, eu não...! Das ist peinlich[4]...
Para evitar mais constrangimento, eu abri a porta de nosso dormitório e fiz com que ela entrasse também. O quarto era lindo: três camas com três criados-mudos, três cômodas, cada um dos conjuntos encostado em um canto diferente. No centro, três poltronas refinadas com uma mesa de centro, sobre um tapete felpudo. No canto em que não havia cama, havia uma porta que deve levar a um banheiro particular. O quarto inteiro era enfeitado com lindas obras de arte e bibelôs e uma janela com vista para o jardim de entrada do dormitório. Até pensei em deixar Liechtenstein escolher a cama primeiro, mas depois da confusão na entrada eu simplesmente me joguei em uma delas. Minha cama seria a do lado direito da porta, enquanto Liechtenstein ficou com a cama à esquerda da janela. Parece que a cama no lado direito da janela vai ficar para a Sachiko.
- Konbanwa[5], companheiras de quarto!
A garota que obviamente era Sachiko estava parada na porta. Tinha cabelos bastante longos, de um preto incrivelmente escuro. Seus olhos eram castanho escuro, e tinha seios tão grandes que deixaram as não avantajadas Elisa e Liechtenstein se sentindo péssimas. Assim como nós, ela usava o uniforme completo. Apresentamo-nos brevemente e fomos dormir, ansiosas pelo dia seguinte, o primeiro dia de aula oficial.
O café da manhã foi simplesmente incrível. Saber que eu poderia escolher um prato da culinária de qualquer país do mundo – não importava o quê, eles prometiam fazer na hora! – era muito mais do que eu poderia imaginar para essa escola. Meu primeiro horário na classe Ásia 1 era matemática, juntamente com Sachiko. Sachiko era, como diriam em sua terra, uma genki girl[6]. Sempre agitada, eu nem seria capaz de garantir que ela fizesse parte dos gênios.
Na nossa mesa, além de nós duas e Liechtenstein, estavam mais duas amigas desta: Seychelles e Hungria. Seychelles tinha os cabelos castanhos presos por dois laços vermelhos, um de cada lado. Seus olhos eram castanhos, como seu cabelo, e sua pele era meio morena. Já Hungria tinha cabelos ondulados e compridos, de cor castanho claro. Seus olhos eram verdes, combinando com a presilha laranja que prendia sua franja. Seychelles usava o uniforme completo, mas Hungria não usava o blazer. Não consegui identificar muito bem suas personalidades, mas creio que logo as conhecerei melhor. Como Liechtenstein e Hungria eram da classe Europa 2, e Seychelles da África 1, nós nos despedimos na mesa do café.
- Sachiko, se importa de ir na frente? Eu vou me servir de uma xícara de chá antes de ir.
- Ii wa yo[7], tudo bem, Elisa-chan[8]! – Diferente de Liechtenstein, ela não via problema algum em me chamar pelo primeiro nome. – Não vá se atrasar, ne[9]!
Assenti com a cabeça e fui em direção à mesa onde estava o chá. Fiquei encantada com a xícara de porcelana com flores rosas pintadas, e devo ter perdido o foco encarando-a, porque quando me dei conta tinha alguém atrás de mim.
- Se não vai se servir, sai daí.
O rapaz que falara era loiro, com olhos verdes e sobrancelhas tão grandes que me deram medo. Ele usava o uniforme masculino, que era mais ou menos igual ao feminino, apenas trocando a saia por uma calça xadrez azul. O colete dele era azul, mais escuro que o blazer. Para ser sincera, essa escola tinha uma gama de opções de uniforme bastante grande. Podíamos optar por coletes azuis ou brancos (para as meninas), ou então beges (para os meninos). Além disso, havia suéteres das mesmas cores. Segundo Seychelles, até o ano passado, a classe África usava um uniforme cáqui com gravata ou lenço vermelho, mas ele foi abolido por gerar preconceito com os africanos. Quem diria, até aqui...
- Que jeito mais rude de falar com uma dama – retruquei.
- Dama? Quer dizer uma lady[10], ou uma senhora velha e acabada?
- Quem usa dama com esse sentido? Só se for alguém como você – eu disse, enquanto me servia de chá preto.
- Um cavalheiro como eu não fala esse tipo de coisa.
- Cavalheiro? Onde? Porque, até onde eu sei, foi justamente você quem disse isso.
- Ora! Idiota! É por essas e outras que não deveriam ter deixado vocês virem pra nossa escola!
- Cavalheirismo zero... – Tomei um gole do meu chá. – Espere um pouco, você disse nossa escola? Que país sem cultura é você?
- Tsc! – ele grunhiu. – Sem cultura é o país de onde você veio, que não consegue nem ao menos reconhecer um autêntico cavalheiro. Eu só vou dizer uma vez, então trate de lembrar. Meu nome é Inglaterra, mas, para você, é Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte.
Eu não sabia se eu chorava pelo fato de meu país natal ser um grosso com taturanas no rosto, ou se eu ria pelo fato de que ele havia acabado de chamar a si mesmo de sem cultura.
- Você devia pensar antes de sair acusando o país dos outros. Afinal, meu país é você. Ou melhor, a Inglaterra. Mas a Inglaterra é você. Ah, sei lá.
- V-você? – ele entrou em estado de choque. – Não, eu me recuso a acreditar que você é britânica!
- Hello[11], Inglaterra! Fazendo amigos novos?
Um outro rapaz apareceu de repente e colocou um braço nos ombros de Inglaterra. Ele tinha cabelos loiros, olhos azuis e se parecia bastante com o Inglaterra, tirando as sobrancelhas ridículas, e de óculos. Ao invés do blazer azul, usava um casaco marrom, seu blazer era meio acinzentado e sua gravata, cinza azulada. Qual o problema dele com o uniforme?
- Não enche, América! Nem em um milhão de anos essa aí vai ser minha amiga!
América? Tipo, Estados Unidos da América? Ah, isso explica a semelhança entre eles.
- Então, quem ela é?
- Alguém que não me deixa tomar chá.
- Meu nome é Elisa Thompson. – Olhei fixamente para o América, evitando qualquer contato com o Inglaterra. – Muito prazer.
- O prazer é meu, Elisa! Sou América, o herói dessa escola, não, desse mundo!
- Divirtam-se os dois idiotas. Eu vou para minha sala. – Ele ia dar meia-volta, mas parou de repente e virou-se novamente. – Não me diga que você vai estar na mesma classe que eu?
- Mas é claro que não. – Sorri e me empertiguei. – Estou na classe Ásia 1. É uma das classes dos gênios, não é?
Inglaterra conteve seu acesso de raiva e saiu pisando duro.
- As classes Ásia podem ser as dos gênios, mas só a classe América 3 tem um herói, and that's me[12]! Viu, até o meu nome combina com o nome da classe, porque, é claro, eu sou o leader[13]!
Deixei o América se vangloriando sozinho e me dirigi à minha primeira aula.
[1] Sekai W Gakuen (世界W学園): "Academia W Mundo", em japonês. Escola criada pelo saudosíssimo Hidekazu Himaruya para Hetalia. O W, provavelmente, significa "World" ("mundo", em inglês).
[2] World Academy: "Academia Mundial", em inglês. O nome foi escolhido como jogo de palavras com o nome da escola acima.
[3] -san (さん): honorífico japonês que indica certo respeito ou, ao menos, falta de intimidade.
[4] Das ist peinlich: "isso é embaraçoso", em alemão.
[5] Konbanwa (こんばんわ): "boa noite", em japonês.
[6] Genki girl (元気ガール): termo japonês que indica uma garota sempre animada, com energia de sobra e faltando um pouco de bom senso, às vezes.
[7] Ii wa yo (いいわよ): "tudo bem", em japonês, com certa ênfase de que tudo está realmente bem.
[8] -chan (ちゃん): honorífico japonês que indica muita intimidade. Usado geralmente para mulheres ou crianças, não importando o gênero.
[9] Ne (ね): Típica partícula de ênfase japonesa. Dizem que, quando os portugueses foram ao Japão, a única coisa que estes entendiam da conversa era o ocasional "né", que veio a fixar-se na língua japonesa.
[10] Lady: "dama", em inglês. Lady, na verdade, pode tanto indicar a contraparte feminina do cavalheiro (e por consequência, do sir) quanto à do lorde. Além disso, antigamente, podia ser usado como substituto para senhorita ou senhora.
[11] Hello: "olá", em inglês. Também pode significar alô, tanto ao telefone quanto cumprimento.
[12] And that's me: "e esse sou eu", em inglês.
[13] Leader: "líder", em inglês.
