A chuva fina chicoteava as paredes com uma dureza exemplar. O concreto estralava, gemia, chorava como uma criança que acaba de ter seus sonhos esmagados por um homem muito, muito mau. O chão desalmado da McKinley sentia a dor da chuva que brincava por suas fendas, dedilhando suas memórias. Sam Evans estava deitado no concreto, a alma saindo pela boca, os olhos fechados com a dor, o pulmão queimando pelo arrependimento. A chuva atingia-o como flechas pontiagudas que lhe furavam cada centímetro de pele. Eu mereço. A dor era forte demais para suportar. Não sinto meus braços. Arfava enquanto tentava respirar, enquanto tentava lutar pela vida que não podia perder. Eu preciso de ajuda. Queria gritar, queria urrar, suplicar, implorar por ajuda. Deus, o que eu fiz? Por que estás me castigando dessa forma? Ele queria que Deus pudesse ouvir através da cortina de nuvens espessas. Deus não irá ouvir as minhas preces. Ninguém irá. Eu vou morrer e não haverá ninguém para segurar a minha mão.

Um relâmpago. O céu se iluminou por alguns tênues instantes. Como foi que tudo foi sair tão errado? Como foi que eu pude me permitir cometer tantos erros? Sam Evans sentia-se como um réu culpado esperando a sentença divina. Eu vou morrer. Sentia a chuva fria percorrer seu corpo com uma travessura devassa, como se quisesse atiçar seu instinto de sobrevivência antes de roubá-lo de vez daquele mundo. Seu estômago doía conforme ele lutava para respirar. Tentou levar uma de suas mãos à barriga para sentir o abismo que se abrira por lá. Não conseguia. A dor era mais forte do que tudo. A dor estava com ele naquele momento, a dor era ele naquele momento. Ninguém mais estava com ele. Mentira. Rory estava ali. Em sua mente. Em seu coração. Em cada dolorido e amaldiçoado pedaço ínfimo do seu ser imperfeito, ele estava ali. E por mais piegas que pudesse parecer, Sam sabia que a única razão pela qual vivera aqueles dezoito anos era para chegar àquele momento. Eu fiz o que eu devia ter feito, mas Deus não fez a parte dele.

Outro relâmpago. Lágrimas pelo seu rosto. Não que fizesse diferença, uma vez que estas dançavam e piedosamente se juntavam ás gotas de chuva. Sentia a dor pulsante rasgar a sua barriga como uma faca longa e agoniante. Com um esforço sobre-humano, Sam Evans pôde ver seu sangue tingir as poças da água e escorrer pelas escadarias longas por onde já andara tantas e tantas vezes antes. Eu estou indo embora. Em amplos aspectos, ele sabia. Sentia o gosto da dor na sua boca. Queria vomitá-lo. Eu só queria poder morrer mais rápido. Dói quando você sabe que vai morrer e simplesmente não consegue. Pensou nas imagens que insistiam em assombrar suas memórias mais recentes. Valeu a pena. E valeria por toda a eternidade. Porque assim seria. Sentia o ar queimar os seus pulmões mais algumas vezes.

- Sam! – Uma voz chamou. Estrondosa, retumbante. Como um relâmpago. Não. Sam não queria isso, não pretendia isso. Não devia ser assim. Não, Deus, por favor, isso não. – Sam! – A voz chamava. Podia ouvi-la repetidas vezes ritmada com o barulho das poças d'água sendo estouradas por passos abafados. Não, por favor. Mas ele sabia que era verdade, estava acontecendo. Não. – Sam... Ah não, Deus, Sam!

Rory Flanagan caiu de joelhos ao seu lado, os jeans pretos sujos de terra. Sam fechou os olhos por alguns segundos fatais. Não posso fazer isso. Não posso. Sentiu que duas mãos tépidas tateavam pelo seu peito, seus braços, sua barriga...

- Oh não, oh não... Deus não, não! Sam...! – Frases rápidas, bêbadas, perdidas, num inglês que, se não fossem as circunstâncias, seria quase cômico. Sam sentia que duas mãos agora se embebiam do seu sangue encarnado e quente, servindo-se dele como cuidadosos anjos caídos. Não era pra ser assim. Havia dor naquela voz forte, havia sofrimento, angústia. Sam sentia que ficava cada vez mais difícil de respirar. Eu não tinha esse direito, eu não podia... Fazê-lo sofrer assim. Mãos tépidas subindo seu corpo. Seu rosto.

- Sam... Sam! Fale comigo, pelo amor de Deus, Sam... Sam! – Desespero uivava pelo som da chuva. Eu não posso fazer isso. Sam Evans abriu os olhos e sentiu como se seu peito congelasse. Azul. Azul gelado, temeroso, profundo, oceânico. Azul. Sentiu-se afogar naqueles olhos doloridos, nos olhos de quem já chorou demais e cansou de deixar rolarem as lágrimas. Eu não tinha esse direito. Rory estava chorando. Oh não, eu não queria... Eu não podia... Eu não tinha esse direito. – Ah não... Sam... – A voz do outro estava chorosa, dolorida, suplicante. – O que eles fizeram com você... Não, você não...

Sam queria falar. Queria sussurrar no ouvido do outro que tudo ficaria bem. Que as coisas iam se resolver. Calma, Rors. Tudo vai dar certo. Você vai ver. Mas ele sabia que não. Sabia que era impossível. Mas, de alguma forma, a mera presença do irlandês ali com ele fazia-o sentir-se vivo, esperançoso, vivo. Eu não tenho o direito de fazer ele sofrer. Eu preciso fazê-lo sorrir. Fechou os olhos mais uma vez, pesarosamente, dolorosamente. Sentiu um reboliço sobre o seu peito.

- Por favor... Eu... E-eu... – A voz do Rory atropelada as palavras brutalmente, afobadamente. Se acalme, por favor, por favor... – E-eu... P-pre-preciso... Ah meu Deus, Sam, Sam! Eu preciso de uma ambulância, pelo amor de Deus! Para a William Mc-McKinley! Rápido, pelo amor de Deus. – Sam ouvia que alguém falava algo para Rory pelo telefone, alguma coisa que ele não podia entender. Rory, se acalma, por favor. – Agora, por favor, por favor. Eu pre-pre-preciso. Ah não Sam!. É o meu... O meu... – Hesitação. Dor. – O meu namorado. Ele... SAM!

Não ouviu mais nada. Desligou-se parcialmente daquele mundo insano. Ainda podia sentir as mãos trêmulas de Rory sacudindo-o, agitando-o, agarrando, implorando que ele voltasse. Não, Rors, não dessa vez. Eu não posso suportar te ver chorar. A dor no seu estômago era brutal, chamava-o para a realidade, mas ele não queria ir. Eu não posso. Não tenho esse direito. Não sabia dizer se Rory fora capaz de terminar a ligação, de chamar uma ambulância. Como se fosse fazer alguma diferença. Ele não queria que as coisas tivessem assumido aquela forma. Rory não devia estar ali, não devia estar sofrendo tanto, não devia ajoelhar-se ao seu lado e esperar que ele morresse. Eu não posso suportar isso. Por alguns breves e áureos momentos, Sam voltou há alguns dias antes, quando os dias ainda eram ensolarados e ainda havia esperanças no mundo. Suas memórias chegavam a um dia específico, um momento específico. Em sua mente, sorriu. Rory estava tão bonito naquele dia. Usava uma camisa verde – verde, é claro, sempre! A cor da esperança, da primavera, da Irlanda, do Rory, deles – de manga longa, mas que, naquele momento, estavam recolhidas, deixando os antebraços do garoto à mostra. Ah essas mangas... Sam não gostava de admitir, mas adorava a forma como Rory dobrava as mangas até os cotovelos. Deixou que sua mente voltasse a pintar o momento. Ele usava ainda seu fiel jeans preto – por um momento Sam lembrou-se que era esse mesmo o que Rory estava usando naquele momento, em algum lugar lá no mundo real. O cabelo estava rebelde, como sempre, empinado, dando-lhe um ar engraçado. Sam adorava passar os dedos por aquele cabelo. Era engraçado. Rory sempre detestara, é claro, uma vez que, segundo ele, levam horas para deixar ele assim. Divertia-se com a forma como o irlandês o repreendia toda vez que ele passava a mão pelos seus cabelos. Depois os dois riam. Eu não tinha o direito de fazê-lo chorar.

Estavam andando despreocupadamente por um pequeno parque que ficava ali mesmo, em Lima. O sol punha-se dourado no horizonte, projetando sombras assombrosamente apropriadas sobre as coisas. Fazia uma semana. Tudo ia bem, tudo estava perfeito, tudo ia dar certo. Os dois conversavam, falavam sobre qualquer coisa, sobre Mercedes, Sugar... Sobre coisas que não significavam mais absolutamente nada. Estavam tão felizes – especialmente Rory – naquele dia. O sorriso que iluminava a face do irlandês era tentador demais, era sedutor demais, era... Era a cura para todos os problemas que Sam Evans já tivera na vida. Aconteceu. Ninguém planejou. Um beijo. Um só. Mas que mudou tudo. O toque dos lábios, a troca de carinho, aquilo... Aquilo foi tudo, foi o significado de uma longa vida de espera. E não foi estranho. Foi natural. Rors é o certo, sempre foi. Não sei como não vi isso antes... Passaram o fim daquela tarde e o resto da noite deleitando-se um nos braços do outro, aproveitando o tempo perdido, o tempo que ainda iam perder... Eu só queria ter podido viver isso na frente de todos. Não podiam. Quantos iam se ferir se aquilo viesse à tona? E quanto iriam sofrer se alguém resolvesse ir contra o que sentiam um pelo outro? A dor na barriga de Sam chamou-o, clamou por ele, suplicou que voltasse. É isso que acontece quando você se deixa guiar pelo coração. Não me arrependo.

Sam abriu os olhos. Sua visão estava embaçada demais para compreender qualquer coisa, qualquer movimento. Só tinha ciência de que Rory estava deitado sobre o seu peito, cobrindo-o com o próprio corpo da gélida e fina chuva que insistia em massacrar aquele pobre ferido.

- Eu não vou te deixar aqui Sam... Sam, por favor... Eles vão chegar, tudo vai dar certo, tá bom? Só agüenta mais um pouco, por favor... Sam... Por nós. – Cada palavra do irlandês era como um novo tiro disparado contra seu abdome. Rors, cale a boca, por favor, cale a boca! Sam Evans não tinha o direito de fazê-lo chorar. Nunca tivera. Ah por que as coisas tiveram que sair tão erradas? Sentiu que as mãos de Rory agarram desesperadamente os seus ombros, como se quisessem impedir que ele fosse embora. Rory, não... Não fica assim... Ele queria dizer pra ele que tudo ia dar certo. Mas não vai.

- Sam, seja forte, por favor... Ah Sam por que você tinha de fazer isso? Ah não... Sam... Sammy, por quê?

Por você. Sam queria poder dizer, queria poder sussurrar isso ao pé do ouvido do outro. Tudo que eu faço eu faço por você, Rors. Sam sempre soube que acabaria assim. Do momento em que encontrou Rick "The Stick" Nelson em diante ele sabia que era assim que ia terminar. Seria ele ou Rory. Não, não posso permitir que ele faça algo com o Rors. Não com o meu Rors. E ele fizera sua escolha. Era a única forma de rearranjar tudo, Rors. Eu queria que você entendesse... O tempo corria pesarosamente. A ambulância não vai chegar. Ele sentiu as lágrimas do amado – e sabia que eram lágrimas, e não a chuva – escorrerem pelo seu peito. Ardiam como brasa. Eu não tinha esse direito. Eu não tinha o direito de te fazer chorar. A mente de Sam girou e explodiu em dor conforme ele lembrava de cada momento, cada ínfimo segundo que passara ao lado de Rory na última semana. A única, em toda a minha vida, que valeu a pena. Ele sentiu seu peito arder. Não posso ir embora e deixar ele sofrendo assim. Por que, afinal, Sam Evans não tinha esse direito.

Antes que se desse conta, sua mão estava sobre a cabeça do irlandês, afagando seus cabelos rebeldes como ele tanto detestava. Rory parou de chorar e ergueu os olhos para encontrar os de Sam. Faíscas. Sam sorri. Agora ele tinha forças, ele tinha esperanças. Não posso partir.

- Sammy... Ah Sam... – Rory resmunga, chorando de novo, fungando, desabando sobre o outro, deixando que este brinque com o seu cabelo. – Eu te amo Sam, pra sempre... Ah não...

You left me hanging from a thread
We once swung from together

Sam não tinha forças pra cantar, mas, se tivesse, sabia que essa era a canção que devia entoar. Deixou sua mão deslizar pela nuca do outro, se deleitar com cada centímetro de pele nua que ali havia. Em seu rosto, um sorriso, um sorriso genuíno, verdadeiro. Rory está aqui. Comigo. Estamos juntos. Ignorou a chuva ardente, o sangue que escorregava pelas suas vísceras, a dor que pulverizava os seus ossos. Ele movia ingenuamente os lábios conforme a canção – ou melhor, uma lufada de ar sem sentido algum – saía do seu peito. Fechou mais uma vez os olhos com um súbito, inexplicável medo de encontrar os olhos elétricos de Rory Flanagan.

I lick my wounds but I can't
Never see them getting better

O frio injetava um pavor fantasmagórico pelas veias de Sam. Por que isso, Deus? Por que fazê-lo chorar? Por que fazê-lo sofrer? Ele não merece isso, ele nunca mereceu isso... Ele devia estar sorrindo, Deus, rindo. Eu não tinha o direito de fazê-lo sofrer. Eu entendo por que o Senhor está me castigando assim.

Something's gotta change
Things cannot stay the same

Deixou que sua mão caísse de lado, tombando em uma generosa poça d'água. Suspirou pesarosamente, sentindo Rory erguer a cabeça para fitá-lo melhor. Num último impulso, num último resquício de força, Sam, com a outra mão, buscou uma das de Rory. Enlaçou-a carinhosamente, sentindo o calor do corpo do outro – que insistia em desafiar a chuva – inundar cada célula do seu ser. Sorriu mais. Abriu os olhos para se deixar fitar Rory Flanagan. É uma pena que esteja chorando, querido. Eu queria tanto te ver sorrir... Os olhos dele estavam vermelhos de tantas lágrimas derramadas. Opacos, doloridos. Seu olhar era o mais doloroso possível de se imaginar. Ah Rory, eu não tinha esse direito.

- Eu te amo. – Sussurrou com o máximo de força que pôde. Para sua surpresa, percebeu que as palavras saíram normais, fortes, intensas. Ninguém poderia abafá-las. O outro sorriu, brevemente, só com o canto da boca, por um mísero segundo. Mas foi um sorriso. Estava lá. Ele viu. Sam sentiu-se queimar. Ele sorriu pra mim.

I'm sorry, I did not mean
To hurt my little boy

Você me trouxe tantas memórias boas, e a única coisa que eu fui capaz de te dar em retribuição foi todo esse sofrimento. Me perdoa, Rors. Por favor. Me perdoa. A chuva foi ficando mais branda. A dor foi sumindo. Rory passava as mãos pelo cabelo louro do outro, distraidamente. Não chorava mais. Não sorria mais. Só... Esperava.

It's beyond me, I cannot carry
The weight of a heavy world

So goodnight, goodnight, goodnight, goodnight
Goodnight, goodnight, goodnight, goodnight
Goodnight, hope that things work out all right,

Sam sentiu cada músculo do seu braço explodir enquanto ele erguia-o para tocar o rosto cálido do irlandês. Ele precisava fazê-lo, precisava tocá-lo uma última vez. A ambulância não vai chegar. Rory fechou os olhos, deixou-se levar pelo toque, deixou-se viajar, flutuar... Ah Rors, droga, como que as coisas vão ser depois? Como eu vou ficar sem você? Sentiu as lágrimas voltarem com mais força do que nunca, com mais intensidade do que nunca. O sangue banhava sua camisa como nunca. Sua vida escapava por seus dedos como um carretel de linha. Ah Rory.

So much to love
So much to learn
But I won't be there to teach you, oh
I know I can be closed
But I try my best to reach you

Rory deixou-se deitar mais uma vez sobre o corpo de Sam, entregando-se àquele último momento. Sam enlaçou seus braços com dificuldade em torno do outro enquanto sentia seu corpo gelar cada vez mais. A eternidade chegou e passou enquanto os dois ficaram ali, abraçados, sob os últimos resquícios de chuva. Eu vou embora. Era inevitável. Era o grande plano de Deus. Eu queria que você entendesse Rory... Quem está sendo punido sou eu. Por você. Você está salvo. Você vai conseguir. Havia tanto para se dizer, tanto para se fazer, tanto para se consertar. E num último impulso, numa última súmula de força, Sam Evans permitiu que suas cordas vocais cansadas cantassem uma última melodia:

I'm so sorry, I did not mean
To hurt my little boy
It's beyond me, I cannot carry
The weight of a heavy world

Rory abriu os olhos.

- Sam… Sam, não. Sam. Sammy, o que você está dizendo? - Desespero. Mãos tépidas a sacudi-lo. Os olhos de Sam se fecham uma última vez, e a última imagem que captam é o olhar desesperado de Rory Flanagan. Eu não tinha esse direito.

- So goodnight, goodnight…

- Sam, não… Deus isso não! SAM! - Engasgo. Dor.

- ...Goodnight, goodnight…

- Sam Evans chega, pare com isso, não, não, não, NÃO! CALE ESSA BOCA! – Rory agarrou-o com mais força, com mais vigor, com mais desespero.

- ...Goodnight, goodnight, goodnight, goodnight…

- Eu estou aqui Sam, eu não vou embora daqui, eu não vou te deixar... Não me deixa, não Sam, não isso, NÃO!

- ...Goodnight, goodnight, goodnight, goodnight, goodnight… - Havia tanto a ser dito. Tanto a ser feito. Quisera ter a força que você tem Rors. Quisera ser tão valente quanto você é. Sam pousou gentilmente sua mão no ombro do único ser que ele amou na vida.

- …Hope… That things …W-work out all… Right…

- Sam… Sammy… - Rory Flanagan abriu os olhos. Sam Evans não estava mais cantando. Não estava mais sangrando. Não estava mais sofrendo. Não estava mais ali. Nunca mais. Sam não está mais aqui.

Relâmpago. A chuva volta a cair.