Ela se virou, segura de si, para encarar os amigos. Sorriu aquele seu sorriso estreito de canto da boca, satisfeita e orgulhosa de si mesma: havia acabado de abrir caminho por uma grande muralha que os permitiria entrar nos domínios da Nação do Fogo. Parecia que havia uma barreira outra que não a muralha separando as terras de seu país de origem e do seu país inimigo. Lá dentro, tudo era sombrio, enquanto do lado de fora a luz iluminava as passagens perigosas. Conforme a vista se espichava pela enorme passagem à sua frente, as coisas iam perdendo a cor, o brilho, até que ela não pudesse distingüir coquinhos na escuridão. Só havia um modo de investigar lá dentro: entrando em território inimigo.

O Avatar e seus companheiros da Tribo da Água esperavam atrás dela: eles estavam com medo de entrar, e iriam esperar por ela, para ver se era realmente seguro. Ela não via a escuridão, somente sentia os contornos dos objetos pelo caminho. Portanto não estava assustada, muito pelo contrário, teria arrastado o Avatar para dentro se ele se demorasse mais um pouco. Ele já sabia dobrar a terra, não precisava mais dela, mas ela continuava com eles, uma vez que tinha fugido de casa. Nada disso significava que eles a quisessem no grupo.

Conforme foram avançando, foram notando que as ruas estavam desertas. Os garotos da Tribo da Água foram notando, porque o Avatar e Toph não estavam prestando muita atenção. Logo estavam em uma emboscada, quando dez dobradores de fogo atacaram-nos ao mesmo tempo. Seus rostos estavam encobertos pelas sombras e logo pela fumaça, mas eles tomavam posições ameaçadoras, errando por pouco as quatro crianças, que se esquivavam rapidamente. O Avatar avistou uma fenda em uma pedra perto de onde estavam e eles correram para dentro dela, até Toph mudar de idéia e resolver voltar e lutar. Ela nunca poderia fugir. Era Toph Bei Fong.

Não podia demonstrar aos tão recentes amigos que temia os dragões que se estendiam à sua frente, cuspindo fogo pelas ventas em sua direção. Isso para ela significaria fraqueza. Então correu, e dobrou, torceu a terra ao seu redor de maneiras que ninguém poderia ter imaginado. Então veio. Mole, sufocante, quente, frio, líquido tão denso que ela poderia pisar nele, seu corpo todo tremeu quando foi pega de surpresa por um jato que não vinha de lugar algum, mas era o único que a atingia, em cheio.

As três crianças se assustaram e se encolheram, temendo por si próprias e por mais ninguém, quando viram a recém-conhecida colega de aventura cair no chão. De repente ela não era tão poderosa, era uma simples criança, derrotada pela Nação do Fogo, que se pudesse escolher de novo correria para os braços da mãe, e nunca mais dobraria a terra. Viveria feliz, em um palácio onde estava segura, onde não lhe faltava nada, onde era amada e protegida do mundo.

Mas ela havia abraçado o mundo, a aventura, o Avatar e a dobra de terra, e agora era tarde, não havia volta, tinha ido para sempre. Tremeu, frio, quente, caiu e chorou um berro silencioso, apertando contra o rosto o que quer que tivesse em suas mãos. Sua sensibilidade e consciência voltaram, e Madame Bei Fong acordou suada em sua cama, respirando pesadamente. Mas respirava, a sufocação havia passado. Chorou de verdade, meras lágrimas finas dignas de uma bela mulher de alta classe em Gaoling.

Por que ele tinha tirado a sua filha de sua casa? Por que ela teimava em desafiar-lhe, demonstrando sempre sua habilidade, sua coragem, mesmo que isso a pusesse em perigo? Imaginou a filha naquele momento. Tomara que estivesse bem. Talvez aquela garota estivesse cuidando bem dela. Talvez... Não. Balançou levemente a cabeça, fitando o teto lindamente decorado de seu quarto, esperando que esses pensamentos a deixassem em paz. Sua filha estava bem, sabia se virar sozinha. Não precisava mais de sua mão carinhosa a guiando por todos os lados. Não por todos os lados, se ela parasse bem para pensar, mas mesmo assim. Quantos lados uma pequena garota cega de doze anos seria capaz de explorar, de compreender, quantos lados ela queria ver? Mais do que sua mão poderia lhe mostrar, em Gaoling. Mais do ela queria lhe mostrar ali. Talvez muito mais do que houvesse ali para se ver, compreender ou admirar. Talvez fosse por isso que ela a tinha abandonado. Por que ela a estava prendendo, ao invés de guiá-la, porque ela não precisava mais dela, pensou rapidamente, enquanto mais uma lágrima furtiva lhe escapava dos olhos. Ela não era mais essencial à sua pequena jóia. Ela caminhava com seus próprios pés, agora. Mas ela só tinha doze anos! Como poderia? Como pudera? Talvez não pudesse, e fosse trazida sã e salva de volta para casa. Admitia que desejava que a filha não obtivesse sucesso e voltasse arrependida para a mãe, talvez no dia seguinte. Ou talvez no outro, depois desse. Talvez demorasse algum tempo. Talvez ela nunca voltasse...

Não se conteve. Chorou com uma criança, seus modos de rainha caídos no chão, revelando-a perante ninguém, a primeira vez em algum tempo. Naquele momento, Poppy Bei Fong sabia que Toph era muito mais adulta que seus pais. Até demais. E assim o resto da noite foi embalado pelo seus soluços preocupados, até que o sol raiasse e a encontrasse adormecida novamente, perdida em sonhos menos aterradores, e tivesse medo de trazê-la de volta à sua agonia de mãe de guerreira.

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Debaixo de um outro telhado, algumas noites depois, ocorria o consolo oposto. Havia a tristeza porque não podia-se fazer nada, mas havia a felicidade porque estavam juntas. Than entrou no quarto, e encontrou sua mulher ninando um bebê, que chorava.

"Não é tão simples, não é? Parece que ela percebe o que está acontecendo."

Ying se virou, o rosto cansado, também.

"Se Ba-Sing-Sae não é mais segura, nenhum lugar no mundo é."

Than fitou o chão.

"Eles voltaram. Hoje, há poucas horas, vieram até aqui, para terem certeza de que não estamos planejando uma revolta. Também parecem acreditar que estão no direito de coletar os impostos do Reino da Terra. Só que os dobraram." olhou para sua filha "Ela está com algum problema?"

"Não. Não está com fome, com frio, está trocada. Acho, eu acho que ela está com medo."

Ele passou a mão pela cabecinha frágil da menina.

"Ela é um garotinha muito esperta, não é?"

"É, sim. Eu não sei o que fazer, para ela parar de chorar."

"Ela é muito pequena para isso tudo. Deve estar muito assustada."

Ela olhou pela janela, involuntariamente.

"Dizem que o Avatar morreu."

"São somente boatos."

"Mas parecia verdade."

Than lembrou-se do garoto. Otimista, inspirava paz. A esperança do mundo. Olhou para a filha. Sua esperança. Ele não podia ter morrido. Isso significaria que não havia mais chance alguma.

"Querido, por favor, não vamos mais deixar com que ela veja os guardas, quando eles vierem. É muito, para ela."

"Sim."

Ele se virou, e tocou o singelo bercinho que eles haviam comprado, não havia muito tempo, em uma era que parecia anos distante daquele dia, antes da Nação do Fogo vencer a guerra. Desenhos de flores tinham sido gravados e depois pintados à mão na madeira, com um pouco de habilidade. Dentro, um lençol verde-claro, leitoso, descansava, em cima de um travesseiro, arrumando o leito da pequena. Poderiam ter sido felizes, ali. Depois de toda uma jornada com sua irmã, que agora morava com eles, tinham finalmente conseguido chegar a Ba-Sing-Sae, e conseguiram uma casa modesta no Anel Inferior. Sua filha ainda não sabia falar. Ele não sabia como seria a infância dela, e também tinha medo ele mesmo. Nunca tivera tanto medo, quando passou um braço por cima dos ombros da esposa, confortando-a.

"O que mais me preocupa é a possibilidade de eles verem ela, não o contrário."

Ying apertou o abraço, sem querer, em sua filha. A menina percebeu, e se virou, o rostinho escondido nas roupas da mãe. Sentia, com o narizinho inexperiente, um perfume de mamãe, que a acalmava.

"Than, o que nós vamos fazer? Não podemos fugir a pé, não com a nossa filha ainda tão jovem."

"Eu não sei, querida. Eu não sei. Nós podemos trazer o berço dela para o nosso quarto, esta noite."

A mãe sentou-se no banco com as almofadas. Seu marido sentou-se ao seu lado.

"Nós temos que fazer alguma coisa."

"Nós vamos descobrir algo."

"Talvez. Onde está a sua irmã?"

"Já se retirou ao seu quarto. Está um tanto tarde, não? Você deveria descansar. Você me parece um tanto cansada."

"Não consegui dormir, noite passada."

"Então vá dormir, Ying. Eu cuido de nossa filha."

Ying hesitou. A menina ainda chorava, mais calma, agora. Parecia que ela mesma também estava com sono.

"Eu já vou. Than?"

"Sim?"

"Me, me prometa uma coisa?"

"Qual coisa?"

"Nós vamos ficar bem. Eu, você, a sua irmã, a nossa filha… Diga-me que vamos todos ficar bem. Por favor. Para que possa me retirar e tentar dormir."

O teto era simples, de madeira, escuro, um pouco sujo. Uma vela quase extinta se derretia em um suporte, alto, de madeira… Tinha que dizer algo reconfortante, para acalmar a mulher que amava, para que ela pudesse descansar, e ele se pusesse a tentar acalmar a criança que amava. Mas não podia.

"Eu sinto muito. Eu não posso prometer algo assim. Eu não sei. Eu não sei o que vai acontecer, não tenho certeza de nada, não sei se vamos ficar bem. Mas eu desejo. Muito. Que fiquemos bem."

Ele encobriu a mão esquerda dela com a sua direita. Os olhos dela deslizaram de sua mão ao seu rosto, e seus olhos lacrimejaram. Ele quase sorria. Tentava.

"Eu sei. Eu sei. Só queria que você dissesse que sabia que ia dar certo, no final. Era o que a minha mãe sempre me dizia."

"E você se sentia melhor?"

Ying fez que sim.

"Sempre."

"Então passe adiante."

Agora ela quase sorria, também. Passou a mão direita suavemente pela orelha de sua filha, ajeitando seu cabelinho escuro.

"Vai ficar tudo bem, Esperança."

E, ao dizer isso, ela sentia que era verdade. Repetiu mentalmente. "Vai ficar tudo bem". Sabiam que iam sair todos dali, com vida, e remontariam então sua família, em uma vida nova, em um futuro indeterminado.Than passou novamente o braço por detrás da esposa, a envolvendo em um abraço protetor. Ela estava errada. Havia um outro lugar seguro, depois de Ba-Sing-Sae, e este eram os braços de Than. Ali, naquele momento, sentia uma segurança que não sentira desde que chegara em Ba-Sing-Sae.

Sorriu, enfim, e voltou-se para sua filha. O casal observou ao mesmo tempo, quando Esperança parou de chorar, piscou os olhinhos verdes na direção de ambos, como lhes dizendo boa-noite, e sorriu. Então, bocejou, mexeu um pouquinho a boca, e adormeceu.

Ying e Than se entreolharam.

"Eu tenho certeza, sim." sussurrou ela para o marido "De uma coisa: nós vamos permanecer juntos. Estamos juntos aqui, e não importa o que aconteça, vamos" ela parou. Pensou, a dúvida a desestabilizando por um momento "e se nós não conseguirmos?"

Ele deu um beijo de leve no rosto dela.

"Nós vamos tentar. Talvez não consigamos, mas vamos tentar. Isso eu prometo."

Ela também o abraçava. Esperança dormia, e o detalhe que ninguém percebia era que, embora ela estivesse com medo, a Esperança vivia. E continuaria assim por muito mais tempo.

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Medo e esperança não são só opostos, mas ainda assim andam lado a lado. O medo faz a esperança necessária, e a esperança torna o medo menos doloroso. Porque o medo é um alerta, o medo várias vezes é uma conseqüência do amor. O medo alerta que estamos vivos. A esperança alerta que o medo não é invencível. Porque a esperança, que surge dos lugares mais inusitados, também é uma conseqüência do amor. Assim feitos irmãos, eles brigam em uma eterna competição, sobre quem domina o coração humano, especialmente, o de um pai e de uma mãe.

Porque não há luz sem sombra, os filhos dos cidadãos do Reino da Terra torciam o universo de seus pais, e conforme a luta da esperança e do medo ia vendo seu desfecho em cada uma das casas mergulhadas no desfecho da guerra externa, o mundo ia sendo salvo.