Capítulo 1
Eram mais de duas horas da manhã de uma madrugada fria do início de outubro, e ele estava sentado numa das poltronas mais próximas da lareira, lutando contra o tédio e comendo sapos de chocolate, seu doce preferido. Olhava os cartões dos Bruxos e Bruxas Famosos, sem muito interesse, e jogava no fogo os repetidos, que eram a grande maioria.
Não sabia o que o mantinha acordado. Talvez fosse o frio, ou talvez o simples fato de não estar mais habituado a dormir cedo. Tinha passado várias noites dos anos anteriores sem dormir, por todos os motivos imagináveis. Agora, estava em seu primeiro ano de NIEMs e, já nas primeiras aulas, notou que, se não estudasse muito mais do que o que estava acostumado, teria grandes chances de ser reprovado no penúltimo ano de escola. Mas não estudava naquela noite. Apenas estava acordado. Esperando, mesmo sem saber o que - ou por que - esperava.
A porta que ligava o Salão Comunal da Grifinória ao restante do Castelo foi aberta, trazendo para dentro uma lufada de ar gelado. Ninguém pareceu entrar, mas, ainda assim, ele sorriu, recuperando sua típica animação. Sabia perfeitamente bem quem era.
- Isso são horas de chegar, Moony? - perguntou, com seu melhor ar de imitação de monitor-chefe, quando Remus se materializou na sala, parecendo cansado mas, ainda assim, bastante feliz.
O Lupin jogou a capa prateada que tinha nas mãos sobre uma poltrona e se sentou diante do amigo, ajeitando o suéter preto de gola rulê que vestia. Sorria, e Sirius sabia que a causa desse sorriso era a garota que Remus havia deixado diante da Sala Comunal da Lufa-lufa poucos minutos atrás. Uma sensação estranha dominou o Black quando ele se lembrou disso. Remus com uma garota não era a idéia preferida dele.
- Foi uma noite longa - suspirou, em tom de desculpa, e arrumou os cabelos castanho-claros e desgrenhados usando como espelho o imenso globo de vidro que ficava sobre o console. Quase parecia vaidoso.
Sirius se lembrou de seu ano anterior. Tinha sido praticamente assim: noites passadas em claro com as mais diversas garotas e dias passados contando aos amigos como as noites tinham sido. Era assim que os Marotos eram, e ele não era exceção.
- Imagino. Por que você voltou? Eu teria ficado até amanhã.
- Por isso que você é o Sirius e eu sou o Remus - sorriu e pegou um sapo de chocolate da pilha ao lado do Black. Arrancou a cabeça do sapo com uma dentada. - E é por isso que eu corro menos risco que você - bocejou, levantando da poltrona e pegando a Capa de Invisiblidade. - Vou dormir, Padfoot. Estou exausto. Conto os detalhes amanhã - terminou de comer o doce. Já no meio das escadas, voltou-se para o amigo e perguntou: - Você não vem?
- Ainda não - respondeu, sorrindo. - Daqui a pouco.
- Eu não vou mais inventar desculpas para seus atrasos. Não sei mais o que dizer aos professores.
- Eu sei disso, Moony - seu sorriso desapareceu diante da perspectiva de acordar cedo no dia seguinte. Odiava estudar. Odiava muito. - Boa noite.
Remus sabia que essa era a versão de Sirius para "não me enche o saco". Aproveitou a deixa para desaparecer nas escadas.
Sirius terminou de comer a pilha de sapos de chocolate, contemplando o fogo, que lutava para não se extinguir. Pela primeira vez em muito tempo, ele queria ficar sozinho para pensar.
No ano anterior, tivera uma fase mulherenga, durante a qual fizera coisas das quais, sem a menor dúvida, se arrependera profundamente depois. Mas, no fim das contas, descobriu que nenhuma daquelas mulheres podia lhe dar o que ele queria. Talvez porque nem ele soubesse o que estava procurando. Ou talvez porque o que ele desejava não viria de nenhuma delas.
Quando as férias de verão chegaram, ele não voltou para a Mansão Black, o que lhe pareceu quase uma libertação: não estava apenas deixando a casa de seus pais. Estava deixando Bellatrix para trás. E, com ela, ficavam também as pressões. Especialmente aquela que se referia a ser homem.
Ele não demorou muito para entender por que ver sua prima deitada nua em sua cama, em vez de excitá-lo, o irritava. Não era Bellatrix quem ele queria. Nem ela nem nenhuma outra daquelas que costumavam se oferecer para ele.
Havia passado o verão inteiro esperando o recomeço das aulas, sem querer explicar para si mesmo o porquê de toda essa ansiedade. Mas, durante aquelas breves seis semanas de aula, ele foi obrigado a aceitar o fato de que o que procurava era algo bem menos desejável do que deveria ser. Ele procurava exatamente o que lhe era proibido.
Levantou da poltrona e se dirigiu às escadas. A lua estava em seu quarto crescente. Em menos de sete dias, chegaria à cheia, a semana que Sirius vinha esperando havia quase um mês.
Subiu para o dormitório. As cortinas em volta das camas de seus amigos estavam fechadas, exceto a de Remus, que, a julgar pelo fato de a porta do banheiro estar fechada, provavelmente estava tomando um banho para depois ir dormir. Tirou a roupa, vestiu o pijama e deitou para dormir. "Menos um dia", pensou, quando o outro voltou ao quarto. Sua espera havia terminado algum tempo antes. E ele finalmente poderia adormecer.
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Acordou no dia seguinte, atrasado como sempre. Para sua frustração, só James estava no quarto, tentando dar o nó na gravata. Sirius sempre achou impossível que, seis anos depois, o outro ainda não conseguisse fazer algo tão simples.
Trancou-se no banheiro para se vestir. Pelo forte cheiro de perfume, Remus havia acabado de sair dali. Se tivesse acordado cinco minutos mais cedo...
Olhou-se no espelho. Seus olhos tinham profundas olheiras e ele realmente queria ter tempo de tomar um banho. Precisava aprender a dormir antes das três da manhã.
Voltou para o quarto, onde James colocava os sapatos. Sentou na cama, rindo, e pegou a própria gravata sobre a mesa de cabeceira. Deu um nó nela rapidamente, sob o olhar de "você realmente não podia ser mais convencido" que o Potter lhe lançou.
- Vou descer, Padfoot. A aula começa em 20 minutos, viu?
- Eu sei disso, Prongs. Não precisa me lembrar - resmungou, ajoelhando-se ao pé da cama para procurar os sapatos.
Sirius os calçou, pegou a mochila e desceu. Tinha que fazer dar tempo de chegar para o café antes de Remus ir para a sala. Estava realmente interessado em saber os detalhes da noite anterior.
Quando sentou para comer, os outros três Marotos eram os únicos sextanistas sentados à mesa da Grifinória. James e Peter, como sempre, comiam, enquanto Remus lia mais um de seus livros trouxas. "Além do bem e do mal", de Nietzsche, tinha sido a escolha do dia.
- Bom dia! - cumprimentou-os, sorrindo. Sirius não conhecia mau-humor matinal.
Pegou um pedaço de torta de morango, pensando que Remus devia ter ficado bem feliz com isso. O Lupin era simplesmente apaixonado por morangos.
Devorou a torta em instantes. Estava morrendo de fome, mas não tinha tempo. Passaria na cozinha durante o tempo livre da segunda aula.
Remus fechou o livro bruscamente, ao mesmo tempo que Sirius largou os talheres sobre o prato vazio. Os outros dois ainda comiam.
- Vou para a sala - Lupin avisou, levantando. - Guardo lugar pra vocês. Vem comigo, Padfoot?
Sirius pulou da cadeira no mesmo instante. Não perdia os preciosos segundos que tinha para passar sozinho com o outro.
Subiram para a sala de Transfiguração. Com sorte, daria tempo para chegarem antes de começar a aula.
- Como foi ontem, Moony?
- Fantástico.
Ele se pôs a contar, em detalhes, o que havia acontecido entre ele e a lufa-lufa. Sirius parecia ligeiramente desapontado por saber que a noite do amigo tinha sido comparável às suas melhores. No fundo, queria que tivesse sido uma noite péssima e que Remus desistisse das mulheres como ele próprio estava a um passo de fazer. Queria que o amigo descobrisse o seu segredo.
Os outros dois Marotos se sentaram nas duas mesas que eles tinham guardado.
- Contando de novo essa história, Moony? - James perguntou, zombeteiro. - Que tal escrever e colocar no quadro de avisos da escola?
- Ela me mataria, Prongs - Remus murmurou, parecendo mesmo temer a reação da garota.
- Aposto que não - Peter interveio. - Se a noite foi tudo isso, ela não te mataria.
James bagunçou os cabelos e, apoiando os pés na cadeira da frente, escorregou um pouco no próprio assento. Afrouxou o nó da gravata e vasculhou a sala, atrás da sua adorada ruiva. Como era de costume, passaria a aula olhando-a fixamente.
Todas as aulas de Transfiguração eram assim: James ficava vidrado em Lily Evans, Peter dormia do começo ao fim da aula, Remus prestava atenção para depois explicar aos amigos e Sirius desenhava nos pergaminhos onde deveria copiar a matéria. Com seus longos cinco anos de prática, ele estava começando a se tornar um exímio desenhista.
Naquela aula, por exemplo, ele estava muito ocupado desenhando dois filhotes de cachorro (mais especificamente, dois Huskys Siberianos) brigando por uma almofada. Depois de dar todos os retoques possíveis e imagináveis à imagem, a analisou. Ainda tinha a sensação de que faltava algo.
Passou um bom tempo pensando, até entender que o que faltava naquela imagem era o fundo. Desenhou uma janela quebrada, uma parede descascada, o chão de madeira velha e destruída pelas unhas dos filhotes. Por fim, o toque final: num perfeito círculo, desenhou a lua.
Assim que terminou, cutucou o ombro de Remus, seu principal crítico, esperando uma aprovação. Ou, talvez, algum comentário meio incomodado sobre a lua cheia, como era comum acontecer quando ela estava presente em algum desenho.
- Ficou bonito - comentou, com um amplo sorriso iluminando seu rosto. Meio embaraçado, Sirius deu graças a Deus por não corar.
- Quer ele pra você? - olhou o amigo no fundo de seus olhos castanhos, esperando que ele não recusasse a oferta. Seria ainda mais embaraçoso pendurar aquele desenho sobre a sua cama, junto com todos os outros, sabendo que a pessoa para quem ele o havia desenhado o rejeitara.
- Achei que você não desse seus desenhos para ninguém.
- Pode ficar com esse - Sirius empurrou o pergaminho para a mesa do amigo, a insistência se tornando quase incômoda para o outro.
- Tem certeza?
- Tenho. Esse ficou legal - sorriu.
Remus agradeceu, guardou o desenho num livro e voltou a prestar atenção na aula. Sirius ficou observando o amigo durante algum tempo, prestando atenção àqueles traços perfeitos e desenháveis. Iria retratá-lo um dia. Mas, antes, precisava arrumar coragem...
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Os últimos dias antes da lua cheia trouxeram um Lupin cansado, irritadiço e pálido, como em todos os meses. Sirius foi o primeiro a notar essa mudança, quando percebeu, nos olhos do amigo, olheiras tão profundas quanto as suas próprias.
Desse momento em diante, foram necessários apenas dois ou três dias para Remus não subir para a Torre da Grifinória depois da última aula. Os outros três não se preocuparam. Era o normal naquelas "malditas" noites. Sabiam que só tinham que esperar o anoitecer para ir fazer companhia ao amigo.
Sirius sabia que era preferível estar sob forma humana para demonstrar ao amigo o que sentia, mas não ligava. O que importava era estar lá, cuidar dele, fazê-lo entender que não estava sozinho, especialmente naqueles momentos. O resto era resto.
Era comum, em todos os dias de todos os meses, que só eles dois ainda estivessem no quarto quando a lua desaparecia no horizonte. O Black, com seus hábitos noturnos, era o único capaz de ficar acordado com ele a noite inteira e ainda estar bem no dia seguinte. Aquela primeira noite de lua cheia de outubro de 1976 não foi nada diferente.
Remus voltou lentamente à forma humana, enquanto Sirius apenas o olhava, sentado no chão.
- Tudo bem, Padfoot - o Lupin sussurrou, sentando-se numa cadeira. - Acabou por hoje.
Sirius retornou à sua aparência normal e se aproximou do amigo. Remus estava com os olhos fechados, respirando pelos lábios entreabertos. Era uma imagem quase tentadora. Uma tortura, ele poderia se atrever a dizer, considerando-se sua necessidade de tocá-lo e, principalmente, o fato de não poder satisfazer esse desejo.
"Você é muito mimado, Sirius Black", Bellatrix lhe dissera certa vez, depois de ele, após muita insistência da parte dela, ter-lhe dado o que ela queria. Naquele momento, ele entendeu que ela estava certa: o simples fato de não poder fazer o que queria chegava a irritá-lo como poucas coisas no mundo.
- Tudo bem mesmo, Moony?
Remus abriu os olhos, notando a preocupação na voz do amigo. Os olhos cinza do Black tinham um brilho estranho, que deixava o outro quase preocupado.
- Tudo certo, Padfoot - respondeu, ainda baixo demais para o outro acreditar. - Pode dormir tranqüilo, se quiser.
- Você não vai dormir?
- Não. Vou comer alguma coisa e ir fazer a lição de casa na biblioteca. Não vou ter tempo durante a semana.
- Eu vou com você, então. Não estou com sono.
Os dois deixaram, juntos, a casa. Ainda estava escuro, apesar de o sol estar nascendo. Remus andou calmamente até a borda da floresta proibida e se sentou na raiz de uma das árvores, com Sirius a seu lado, para ver a aurora. Nunca tinham feito isso. O comum era deitarem no chão de madeira velha e destruída pelas unhas deles, longe um do outro, e dormirem até meio-dia. A lição de casa sempre pôde esperar.
Mas Remus sabia que havia algo errado. Sabia que Sirius iria com ele para o castelo. Sabia que poderia descobrir o que havia acontecido com seu amigo se aproveitasse o momento certo. E sabia, sobretudo, que aquele só podia ser o momento certo.
- Eu nunca vou poder fazer isso com uma garota - Lupin não sabia bem por que dizia isso, mas era uma verdade: nunca se sentiria confortável para ver a noite virar dia com nenhuma outra pessoa no mundo. Seu segredo era grande demais para ele conseguir ignorá-lo.
- Claro que vai! Um dia, você vai arrumar uma garota pra quem você possa contar sobre seu probleminha peludo.
- Que tipo de garota entenderia isso? - ele parecia quase frustrado com aquilo, o que irritou um pouco o Black. Remus tinha essa péssima mania de pôr o fato de ser lobisomem como um obstáculo intransponível em sua vida. Parecia que ele adorava fazer dramas um tanto exagerados, e esse era, de longe, seu assunto preferido.
- Nós entendemos, não foi? - argumentou. - Nós dividimos o quarto com você. Poderíamos ter feito um escândalo por isso. Mas não. Nós entendemos e decidimos virar animagos pra te ajudar. Por que uma garota não entenderia?
Remus olhou para o chão, parecendo entretido com uma formiga que escalava uma folha seca. Sirius tinha dito uma coisa certa. Muito certa.
E, por alguma razão, ele sabia que apenas o Black era capaz de ir tão direto ao ponto assim. Porque só o Black o entendia daquela forma tão completa.
- E, além do mais, o dia nasce mesmo quando não tem lua - completou, como se fosse o maior e mais perfeito argumento. Sorriram. Sirius contemplou-o demoradamente, sentindo-se ainda mais tentado a tocá-lo do que quando estavam naquele quarto da Casa dos Gritos.
- Eu sei disso.
- E sabe também que comigo você poderia ver o sol nascer no fim de todas as suas noites. Mesmo as de lua cheia.
Remus encarou o outro, sem saber ao certo se queria se afastar ou se aproximar um pouco mais. Tinha medo do que aquelas palavras significavam e do que elas o faziam sentir.
Sirius, por sua vez, sabia que aquele era o momento perfeito. Tinha poucas chances de ficar sozinho com ele, e aquela situação era ainda mais rara. Mas isso não quer dizer que ele tinha coragem de fazer o que queria.
Os olhos estavam presos um ao outro, deixando transparecer uma insegurança que se mesclava a algo que eles desconheciam quase completamente.
O Black se lembrou da primeira vez que beijou uma garota, aos 11 anos. As sensações eram exatamente as mesmas: ansiedade, nervosismo, medo de fazer algo errado. Porque aquilo, até certo ponto, era errado. Mas ele queria tanto, e essa vontade parecia tanto ser correspondida, que ele imaginou que o errado era os outros julgarem que aquilo não era certo. O mundo não era mesmo justo.
A surpresa de Remus quando finalmente foi beijado só pode ser comparada à de Sirius, quando o outro permitiu que o beijo se aprofundasse, entreabrindo os lábios.
Um turbilhão de pensamentos assolou a mente do Black: aquilo era diferente, estranho, errado. Mas era bom. Remus tinha um beijo bem menos delicado do que o de todas as garotas que ele conhecia e, naquele momento, ele entendeu que era aquilo que ele queria.
Recuperando a razão, o Lupin de afastou, fazendo o amigo fitá-lo, com certa reprovação nos olhos. Ele sentia que seu coração iria sair por sua boca. Fazia tempo que não se sentia assim depois de um mero beijo. E, a julgar pelo que ele via no fundo daquelas íris prateadas, era exatamente essa a sensação que Sirius tinha.
- Não podemos fazer isso, Padfoot - sussurrou, incerto. Não sabia se queria que parassem naquele momento. Mas sabia que deviam parar. - Não aqui. Você sabe que não podemos.
- Nós sempre fomos adultos o suficiente para saber o que é certo e jovens o bastante para não darmos a mínima - Sirius respondeu, rispidamente. - Por que seria diferente dessa vez?
- Porque dessa vez não é uma questão de certo e errado. É uma questão de respeitar os outros alunos. E me respeitar. Porque eu não me sinto nada confortável com essa coisa de beijar outro cara no meio do jardim - disse essa última sentença tão baixo que o outro quase teve que ler seus lábios para entender. Por sorte, ainda estavam próximos o bastante para Sirius ouvir.
- Porque é outro cara ou porque é no meio do jardim?
Remus mordeu o lábio inferior, pensativo. Sirius e suas perguntas perigosas... Empurrando seu queixo para cima, o Black o fez fitá-lo novamente.
- Se fosse qualquer outro cara... - ele principiou, pesando com muito cuidado as palavras. - Seria porque é um cara - suspirou. Dizendo baixo, prosseguiu: - Mas agora é porque estamos no meio do jardim. Num lugar onde todo mundo pode nos ver.
Sirius sorriu, antes de beijar novamente o outro, dessa vez com um pouco mais de intensidade. Saber que Remus não o reprovava era um grande conforto para ele.
- O seu problema, Moony, é que você racionaliza demais.
Remus não conteve um sorriso maroto. Levantou do chão e estendeu a mão para ajudar Sirius. Se dirigiram ao castelo com passos largos, determinados, de quem sabia ter a vida a seus pés. E, pensando bem, eles ainda tinham.
- Os outros dois iam pirar se descobrissem - o Black comentou, quando eles finalmente chegaram à porta.
- É por isso que nós não vamos contar - Remus respondeu, tirando a varinha do bolso e, com um gesto floreado, destrancando a porta.
Entraram no castelo em silêncio e subiram para a Torre da Grifinória, conferindo, no Mapa do Maroto, se o caminho que tomavam era seguro ou não. É claro que Remus podia estar fora da cama, porque aquela semana era especial, mas Sirius não tinha autorização para estar com o amigo, e os dois temiam ser pegos.
Disseram a senha à Mulher Gorda e entraram na Sala Comunal, que estava completamente deserta e se iluminava aos poucos, com a luz do sol. Subiram a escada que os levava ao dormitório.
- Vou tomar um banho, Padfoot. Nos vemos no Salão Principal?
Sirius assentiu, incapaz de decidir se deveria ou não perguntar se aquilo tinha sido um convite. Era estranho isso, porque ele nunca hesitou em se oferecer para ir junto. Tinha recuperado a vergonha agora?
Viu Remus pegar algumas peças de roupa no armário e sair do quarto. Sabendo que não teria nada para fazer durante aquele tempo, decidiu imitar o amigo. Abriu o guarda-roupas e, com muito cuidado, escolheu as roupas que usaria naquele dia: uma calça jeans um pouco velha e larga demais, que faria sua mãe ter um ataque, e uma camiseta verde-escura, que era, sim, um dos últimos resquícios do "Slytherin Pride" de seus queridos pais, mas que, ainda assim, o deixava bem bonito. E era essa a razão para ela continuar em seu armário.
Se dirigiu ao banheiro do quarto. Trancou a porta e se contemplou no espelho sobre a pia. Seus olhos cinza tinham um brilho que os deixava quase prateados, e seus lábios tinham um sorriso um pouco maior do que o normal. Finalmente conseguiu o que mais quis durante aqueles dois meses, um beijo que tinha sido mais do que muitas mulheres. Inesquecível, para dizer o mínimo.
Despiu-se e entrou embaixo do chuveiro. Deixou a água quente cair sobre si, bagunçando seus cabelos, massageando seus ombros, escorrendo por seu corpo.
Quantas vezes tinha entrado naquele banheiro de manhã cedo, depois de passar a noite com alguma garota? Várias, durante o ano anterior quase inteiro. Sempre sentira uma espécie de arrependimento que o consumia por dentro, enquanto a água quente o ajudava a esquecer.
Daquela vez, porém, sentia-se, no mínimo, satisfeito consigo mesmo. Não porque havia quebrado mais uma regra. Era porque, finalmente, conseguiu superar seu próprio medo de fazer algo errado.
Não tinha sido um erro. A forma como Remus reagira deixou muito claro que tinha sido um acerto. Talvez, o primeiro grande acerto de toda a sua vida.
Agora, sabia muito bem como o Lupin se sentira quando os outros três aceitaram o fato de ele ser um lobisomem, sem questionar, sem censurar. Dizer a verdade, revelar um segredo tão grande... Dava medo. Medo de não ser compreendido, de não ser aceito. Mas eles aceitaram. Porque nada poderia separar os Marotos. Ou será que o novo segredo que os dois compartilhavam poderia? Mas Sirius não se importava em descobrir. Não naquele momento. Porque não era James quem ele queria. E o cara que ele queria havia entendido. Havia aceitado. E, melhor ainda, tinha correspondido.
E tudo o que o Black queria era que continuasse a corresponder.
Desligou o chuveiro e pegou uma das toalhas impecavelmente brancas que jaziam sobre a madeira escura da bancada. Secou-se e se vestiu, feliz por o dia estar mais quente que o normal.
Sacudiu a cabeça, como um cachorro se secando, enchendo o espelho de gotas d'água. Olhou para seu reflexo, lembrando de como Remus odiava quando ele fazia isso. Se o Lupin soubesse como ficava irresistível quando irritado, pararia de fazer tanto drama.
Abriu a porta e deixou o banheiro, correndo para o salão Principal. Sabia que o outro já estaria esperando por ele.
Sentou-se ao lado do amigo, que estava ocupado passando uma grossa camada de geléia de morango em uma torrada.
- Seu próximo presente de aniversário vai ser um campo de morangos - anunciou, enchendo para si um copo com chá gelado. Remus riu.
- Vai me deixar muito feliz. Eu te dou uma fábrica de chocolates.
- Não precisa, Moony - baixou a voz, antes de continuar, num sussurro desnecessário, visto que o salão estava vazio: - Eu aceito você.
Remus corou violentamente diante da resposta de Sirius, especialmente por causa do sorriso malicioso do Black.
- Nós podemos conversar sobre isso mais tarde - gaguejou, profundamente constrangido.
- Certamente que sim - Sirius pegou a torrada da mão do outro e a mordeu. Remus balançou a cabeça, em sinal de reprovação. - E aí, o que você vai estudar?
Agradecido pela mudança de assunto, Remus pegou outra torrada e recomeçou a enchê-la de geléia. Olhou para o amigo e respondeu:
- Não faço a menor idéia. Talvez eu comece por Defesa Contra as Artes das Trevas. Primeira aula de segunda-feira, sabe como é. E o professor me odeia - Sirius riu. Nenhum professor odiava Remus, o aluno perfeito. Nenhum mesmo. - Por quê?
- Saber se eu vou com você pra estudar ou pra desenhar - abriu um sorriso ordinário, que fez o outro balançar a cabeça novamente.
- Decidiu?
- Vou desenhar - respondeu, prontamente. Numa de suas noites insones da semana anterior, tivera a chance de fazer aquela lição. E isso o fazia se sentir muito bem: eram poucas as chances que ele tinha de não fazer nada enquanto Remus trabalhava arduamente para manter suas notas altas apesar de seu pequeno problema.
Foram para a biblioteca, que ainda estava vazia. Passava pouco das oito da manhã, e o castelo ainda estava acordando. Ocuparam uma mesa num canto mais isolado, onde Remus poderia passar a manhã inteira estudando, sem interrupções.
Uma hora depois, a pilha de pergaminhos descartados por Sirius já atingia dimensões consideráveis, enquanto Remus não tinha conseguido sair da primeira questão ("escreva vinte centímetros sobre a forma correta de se executar um Feitiço de Proteção Não-verbal"). Eles tentavam dizer a si mesmo que não havia nada de anormal, mas ambos sabiam que isso era mentira. O que havia acontecido naquela manhã tinha mexido profundamente com ambos.
O Lupin fechou o livro com violência, suspirando. Sirius levantou os olhos do pergaminho, fazendo a mesma cara que Madame Pince faria se tivesse visto aquilo.
- Algum problema, Moony?
- Não dá pra ficar assim, Padfoot.
- Assim como?
- Nós dois juntos. Não dá, sabe? O que aconteceu lá fora foi totalmente novo pra mim - suspirou novamente, procurando a palavra certa. - Eu não consigo me concentrar sabendo que você está do meu lado... - fez uma pausa, antes de continuar, num sussurro: - Imaginando que você quer que aconteça de novo.
Sirius olhou no fundo daqueles orbes dourados e sussurrou:
- Por quê? Essa idéia te dá tanto nojo assim? - e, dizendo isso, juntou suas coisas e saiu dali a passos largos.
Remus encarou a porta por onde o outro havia passado, chocado com aquela súbita mudança de humor. O Black não costumava ser o sensível do grupo e também não era de fazer tanto escândalo por tão pouca coisa. Tudo o que o Lupin não queria era que o outro se tornasse um daqueles gays afetados e histéricos que ninguém suporta.
Quando concluiu que já era seguro procurar o Black, juntou calmamente suas coisas, guardou-as na mochila e deixou a biblioteca. Na virada do corredor, tirou o Mapa do Maroto do bolso e vasculhou todos os cantos da escola, até encontrá-lo, numa sala vazia do sétimo andar.
Subiu correndo, tomando todos os atalhos possíveis. Escancarou a porta da sala, fazendo-a bater com estrondo contra a parede, mas o outro não se voltou para ele. Sabia quem era. Mas era mais interessante observar o jardim.
- Padfoot, eu não quis dizer aquilo daquele jeito - murmurou, fechando a porta e puxando uma cadeira, para sentar-se perto do outro. Sirius não tirou os olhos do jardim.
- Eu sei que não - respondeu. Não estava a fim de conversas nem disposto a ver Remus se humilhar porque não queria magoar seu amigo. Não lhe agradava essa idéia. Primeiro porque Remus precisava de um pouquinho de orgulho; segundo porque não queria mais ser só um grande amigo. Queria mais do que isso. Muito mais. - Como também não quis fazer nada do que fez.
- Ah, não quis? Por que diabos eu fiz, então?
- Porque eu fiz - Sirius voltou a olhar para o jardim. Nunca havia se arrependido tanto de tomar a iniciativa.
O Black pegou um pergaminho e uma pena e começou a rabiscá-lo, enchendo-o de estrelas, com a perfeição de quem buscava encontrar, nas constelações, sua própria alma despedaçada.
O Lupin, por sua vez, pegou um livro dentro da mochila e começou a lê-lo. Sabia que o outro iria falar em algum momento.
Ficaram ali durante um longo tempo, o silêncio quebrado apenas pelo som da pena arranhando o pergaminho e das páginas sendo viradas. Por fim, Sirius encarou o amigo e perguntou, num tom anormalmente grave:
- Já tentou tocar uma estrela?
Remus ergueu os olhos do livro, se perguntando se o outro ia mesmo chegar a algum lugar com essa pergunta. Fez que não, e o Black prosseguiu:
- Há dois tipos de pessoa: os tolos e os perseverantes. Sabe o que eles têm em comum? O fato de, mesmo sabendo que nunca vão conseguir, continuam tentando.
- Faz sentido. Quem te ensinou isso?
- Era o jeito da Cissy de me chamar de idiota - respondeu, amuado, arrancando do outro uma risada.
- Mas você não é idiota.
- Gostar de você é meio assim.
- Você se acha idiota ou vai continuar tentando me conquistar, mesmo achando impossível?
- Um pouco dos dois - admitiu, num sussurro constrangido. Por que tinha que se apaixonar exatamente por ele?
- Sabe, Padfoot? Você conseguiu tocar a sua estrela - abriu um sorriso doce, que fez Sirius sorrir também. Os orbes dourados do Lupin tinham um brilho terno, que refletia a súplica das íris prateadas do Black.
Remus levou as mãos ao rosto do outro, enroscando seus dedos nos fios negros.
- Eu não sei se vou me arrepender disso - sussurrou, roçando os lábios na curva de seu pescoço, fazendo um arrepio correr a espinha dele. - Mas é o que eu mais quero agora - e o beijou.
Sirius não se lembrava de quando tinha sido a última vez em que vira Remus agir impulsivamente como naquele momento. E, por essa mesma razão, sentir os lábios dele nos seus lhe deu uma desconhecida - e imensa - sensação de poder.
Afastaram-se relutantemente. Não que quisessem se separar. Mas era necessário para evitar que perdessem os limites.
- Padfoot, você sabe que eu não vou deixar você me tratar como aquelas garotas, não sabe?
Sirius riu da pergunta do outro. Conhecia muito bem a personalidade de Remus. O Lupin podia até parecer frágil, mas estava longe de sê-lo.
- Eu não amo nenhuma delas, Moony - respondeu, num sussurro, correndo os dedos pelos fios alourados. - Jamais te machucaria. Juro.
- Que bom pra você que você não pensa em me machucar.
- O que você faria, Moony?
Remus encarou o outro e arqueou uma sobrancelha, com um ar ameaçador quase cômico.
- Quer descobrir?
- Acho melhor não - sorriu, soltando o outro. - Não quero ter que machucar você fisicamente também - levantou da cadeira e se dirigiu à porta.
Deixaram a sala, na intenção de ir ver se os outros marotos já tinham voltado da Casa dos Gritos. Estava começando a ficar tarde para eles saírem de lá em segredo.
- Remie! - os dois se voltaram para a garota que corria em sua direção pelo corredor.
- Bom dia, Camille - o Lupin a cumprimentou com seu melhor sorriso, abraçando-a. - Como foi a noite, querida?
- Fantástica - ela respondeu, com sua excessiva animação, beijando-o na boca.
Os olhares dos dois rapazes se encontraram e Remus notou, nos orbes prateados do outro, um lampejo de algo que só poderia significar ciúmes. O próprio Lupin tinha que reconhecer que Sirius não estava errado: tinham acabado de prometer que não iam fazer isso, não tinham? O sorriso desapareceu dos lábios do Black e este deu meia-volta de seguiu, sozinho, para a Sala Comunal.
- Nós podemos conversar, Camy? Ou você tem alguma coisa pra fazer?
- Não, tudo bem. Eu ia mesmo te procurar pra irmos dar uma volta no jardim - encarou-o. - Tem alguma coisa errada, Remie?
Ele fitou aqueles olhos azul-claros. Ela sabia que tinha algo errado acontecendo. E ele não fazia a menor idéia de como contaria o que era. Não podia simplesmente dizer "olha, eu me apaixonei pelo meu melhor amigo". Mesmo essa sendo a verdade.
- Sabe, Camy? Esse último mês tem sido fantástico - ele começou.
- Deixa eu ver se adivinho... - ela o interrompeu. - O problema é que você cansou de mim, certo?
- Não é bem assim, querida. Você sabe que eu não sou assim.
- Ah, não? Então, qual é o problema?
- Apareceu, sim, uma outra pessoa na minha vida. E eu, durante muito tempo, preferi ignorar isso e tentar fazer as coisas darem certo entre nós dois, porque eu gosto muito de você. Mas não dá mais. Porque eu não tô sendo justo com nenhum de nós três e você sabe que eu sempre me orgulhei do meu conceito de justiça.
Uma lágrima escorreu pelo rosto da garota. Ele a abraçou carinhosamente, beijando sua testa.
- Tudo o que eu não quero é te machucar, você sabe disso. Porque eu realmente me preocupo com você e com o que você sente, Camy. Só que eu sei que você não iria gostar nem um pouco de estar no meio disso tudo, porque eu sei o que tá acontecendo.
Ela o encarou, limpando o rosto manchado pelo lápis de olho. Ele sorriu, terno, e sussurrou:
- Eu realmente sinto muito, querida. Mesmo. Por tudo isso. Você sabe que, se pudesse, eu me apaixonaria por você, não sabe?
Ela assentiu. Sabia que era verdade. Ele nunca escondera tal coisa.
Tomando coragem, ela perguntou algo que vinha perturbando-a desde o começo:
- Você tava com ela ontem de noite?
Ele assentiu, mesmo sabendo que era praticamente mentira. Era melhor para ela que eles se afastassem. Ou pelo menos era o que ele pensava. A garota mordeu o lábio inferior, parecendo magoada.
- Desculpa, Camy. Eu sei que não devia...
- Tudo bem. Eu também tava com outro cara - abriu um meio-sorriso. - É uma pena perder você, sabe? Um cara como poucos... Mas... Não se pode ter tudo. Boa sorte com ela, Remie - beijou a bochecha dele.
- Eu vou precisar - ele respondeu, com um sorriso.
Ela se afastou. Remus ainda ficou ali, tentando descobrir se sentia raiva por ter sido traído ou se sentia alívio por estar livre para Sirius. Por fim, decidiu que era melhor não se preocupar com isso. Conhecendo a própria vida como conhecia, sabia que nada era tão simples.
