Existem diversas, se não milhares, de falar todos os meus objetivos. Sai de Sunyshore com minha cabeça plenamente formada, e pronta para colocar meus gloriosos planos em pratica. Apesar de minha pouca idade (16 anos), posso me considerar um gênio, em vista das débeis e inferiores mentes consideradas como pessoas racionais.
Canavale não era o que poderia se chamar de lar para quem não gosta do mar. Minha fútil moradia localizava-se na periferia da cidade, onde existem os piores seres considerados "humanos". A cada dia que passa, os vejo jogados perante o asfalto ou concreto, estirados como trapos de pano descartáveis. Era meu dever, minha missão, que eu acabasse com isso, a falha humana.
Eu voltava de mais um dia de trabalho duro. Conserto de velhas tecnologias da cidade não era exatamente algo que rendia-me uma quantia rentável, mas era o suficiente para que eu não passa-se por necessidades básicas, o que era aceitável. Eu anotaria isto mais tarde, a precária e imprescritível característica do ser humano de sobreviver, como qualquer outro animal, era um retrocesso genético no qual não foi eliminado perante a evolução da raça humana. Isto precisaria ser corrigido com urgência. Tal capacidade da mais perfeita maquina, o cérebro humano, tem um erro primordial, no qual eu achava de certa forma, irônico.
Naquele dia, por volta das quatro da tarde, resolvi abster-me de minha rotina habitual, e segui rumo à biblioteca de Canavale. Seu grande arsenal era conhecido em todo o mundo, um local para pessoas adquirirem inteligência e conhecimento de maneira simples, já que não nasceram com ela. Observei as prateleiras com olhar afiado, em busca de algo que me interessa-se no meio dos livros empoeirados sobre a estante de carvalho maciço. Me contentei com "A revolução das maquinas", e dei uma rápida examinada em sua capa. Era áspero, com uma cor um tanto acinzentada, com bordas negras. Uma circunferência perfeitamente desenhada em forma de engrenagem branca também se fazia presente. Enquanto dirigia-me a mesa vazia no canto da sala, averiguei, com meu rápido raciocínio e inteligência naturais, o piso, Madeira polida, rangia a cada passo no qual dava paredes escurecidas, que um dia já foram brancas como a neve de Snowpoint, hoje eram apenas cinzas, clamando para serem novamente pintadas. O teto também parecia-me desgastado, com algumas goteiras no canto inferior esquerdo, de maneira no qual o mesmo ficara manchado. Sentei e comecei a ler.
Se passou aproximadamente uma hora, e a biblioteca continuara vazia, salvo raras exceções de pessoas interessadas em buscar respostas para trabalhos escolares, desesperadas pela aprovação de seu professor. Uma porem me chamou atenção. Não era exatamente alguém que eu julgaria como um "aluno". A garota subiu as escadas rumo ao segundo andar, no qual eu estava, e começou a correr por entre as estantes, passando delicadamente sua mão por entre os livros, a fim de sentir cada um, como se sentisse as historias que cada um contaria. Não deveria ter mais do que treze anos eu pensei. Voltei novamente minha atenção ao livro.
Mas vinte minutos depois minha paz fora interrompida. Com o livro como desculpa, observava disfarçadamente por cima das paginas, como a garota esticava-se para pegar um livro marrom, em uma prateleira mais alta do que ela. Só agora observei seu cabelo preso, duas presilhas negras destacavam-se entre a cabeleira loira, que atingia o meio de suas costas. Ela encolheu-se, frustrada por não alcançar o material desejado. Notei como seus olhos procuravam pela sala toda em busca de algum recurso que a ajudaria em seu simples objetivo de adquirir o livro. Seus olhos fixaram-se em mim.
Não tardou e ela traçou seu caminho, passos rápidos e curtos em minha direção. Ela chegou ao meu lado, cutucou-me no ombro e começou a falar.
"Com licença moço, você é alto, poderia pegar um livro para mim? Eu não o alcanço." Ela olhava-me diretamente nos olhos. Sem dizer nada, levantei-me e deixei que ela guia-se o caminho até estante e prateleira desejada.
"Aquele ali!" A garota apontou para um grosso livro marrom. Estiquei meu braço e peguei, sentindo sua textura. Parecia-me com algo de couro, bordado em linhas douradas, e seu titulo, "Os Mitos que Criaram e moldaram o mundo", me deixou um pouco intrigado. Virei-me e coloquei o livro em suas mãos, e retornei a minha posição anterior, sentado a mesa com A revolução das maquinas em minha posse.
Quando acabei o livro, por volta de uma hora e meia após obtê-lo, fui retorna-lo a sua posição original. Após certificar-me de que estava em seu lugar, passei rapidamente por trás da mesa onde a garota estava. Ainda lendo o livro sobre mitologia, com grande interesse. Apesar de haver me esforçado para chegar às escadas do térreo com o mínimo de barulho possível, a garota ouviu alguns dos ruídos de autoria do chão de madeira polida. Imediatamente chamou minha atenção com uma pequena frase retorica.
"Você não é de falar muito não é?" Ela virou a cabeça, uma mecha caiu cobrindo seu olho direito. Ela não esperava que eu respondesse e voltou-se novamente para o livro. Por um momento novamente voltei minha atenção à sala, agora a luz do por do sol transbordava através das grandes janelas de vidro, refletindo em uma luminosidade dourada característica do fim de tarde. Sacudi levemente a cabeça tirando-me do devaneio e desci as escadas, notando o ultimo olhar discreto da leitora distante.
O dia seguinte me pareceu adequado para mais uma leitura na biblioteca. Subi as escadas, e desta vez procurei por um livro de historia. "Guerra continental." Um assunto particularmente familiar para mim. Fui ao encontro de meu lugar ao canto da sala, e observei brevemente por entre os espaços das estantes a mesma garota do dia anterior, desta vez com outro livro na mão no qual não consegui ver o nome. Apenas observei a cor do livro, verde ocre.
Não demorou muito quando ela chegou perto de minha mesa, puxou uma cadeira e sentou para uma leitura a dois. Procurei não desviar minha atenção do livro, mas notava seus olhares cheios de curiosidade avida sobre mim. Vez ou outra me perguntava algo sobre o que eu fazia emprego ou Pokémon, Sem êxito de uma resposta minha. Aquilo estava começando a me chatear.
"Nem ao menos seu nome." Ela resmungou sem tirar os olhos do livro. Se aquilo fizesse ela parar de falar então valeria algo.
"Cyrus." Respondi em tom igualmente baixo. Virei a pagina do livro, o pequeno som fazendo-se de intervalo para a rápida conversa.
"Cynthia." Ela respondeu, imitando meu gesto de virar a pagina do livro. Após estas rápidas palavras mais nada foi falado entre nós, apenas nossa leitura na mesma mesa.
Sai um pouco mais tarde desta vez, ao inicio de noite quando as primeiras estrelas já se mostravam sobre o céu. Caminhei e parei em uma pequena lanchonete procurando por um lanche. Aquele lugar era deplorável, com migalhas espalhadas pelo chão sujo, e com um homem desmaiado na cadeira, com uma garrafa vazia em sua mão. Provavelmente bêbado eu julguei. A atendente me chamou no balcão, sua voz ríspida quase me fez elogia-la por tal comportamento. Vasculhei meus bolsos em busca do dinheiro para pagar, e lembrei-me do casaco marrom, no qual havia deixado à quantia necessária, na biblioteca. Por esta hora já estaria fechada. Mentalmente, me amaldiçoei pela falha.
Eu estava sem muitas opções. Desviei meu olhar para noite adentro, quando notei uma figura familiar. Aquela garota da biblioteca, Cynthia se não me falha a memoria, vinha em direção a lanchonete. Seu casaco negro como a noite realçava algo marrom em seu braço. Aquilo seria o que eu estaria supondo? A rua disfarçava-lhe bem, porem seu cabelo revelava sua identidade. Novamente chegando perto de mim, não entrou na lanchonete, mas estendeu seu braço esquerdo, me entregando o pesado casaco marrom.
"Você esqueceu na cadeira da biblioteca, então achei que seria correto devolve-lo...Até amanhã Cyrus!" Ela sorriu enquanto retornava seu caminho rumo a escuridão da rua deserta. Verifiquei meus bolsos novamente, e lá estavam, as notas do pagamento. Retirei e entregue a atendente, que retribuiu dando o meu lanche.
Cai na cama, olhando para o teto de meu apartamento. Pensei em como faria meu plano funcionar. Mas nada vinha a minha mente. Olhava para minha escrivaninha, papeis de todas as cores e tipos adornavam toda a sua extensão. Então prestei atenção a mus pés, eu ainda estava de sapatos! Esforcei o que restava de força em meu corpo e retirei-os, deixando ao lado da cama. Então formei o inicio de uma linha de raciocínio. Como pode um gênio como eu estar em condições tão precárias? Minha consciência desvaneceu-se com esta frase.
Eu tinha um dia de folga por semana, e por alguma razão, perguntei-me se a garota estaria por lá. Mais uma falha minha. Se importar com as pessoas é algo totalmente inapropriado. Tentei me distrair. Perto da grande ponte de madeira que separava o lado oeste do leste da cidade, havia uma velha praça, onde mães e suas crianças se reuniam para aulas ao ar livre. Enquanto cruzava o labirinto de ruas que Canavale era, prestava atenção as pessoas apressadas, movimentando-se em seus ternos ou vestidos. Carros de diversas cores e formas derrapando sobre o chão de asfalto, todos deixando sua marca por cada semáforo no qual passavam. Mais uma falha humana, a pressa. A perfeição é uma garantia de que tudo irá estar em seu devido lugar, a pressa é rápida e falha.
Finalmente cheguei a praça. A grama crescia livre com apenas o vento a abalançar-lhe, e havia alguns brinquedos desgastados com o tempo, como balanças e gangorras. Mães conversavam, filhos brincavam, e eu, mergulhado em meu casaco marrom, estava sentado com apoio de um velho tronco de arvore, olhando o mar. Novamente aquela frase invadiu minha mente inquieta. " como pode um gênio como eu estar em condições tão precárias?"
Deixei que a brisa do mar levasse os pensamentos que atordoavam minha mente. Então, segui o mesmo caminho esburacado para a biblioteca. Empurrei as pesadas portas de madeira, produzindo seu som característico. Mostrei meu cartão a bibliotecária, e tornei a subir as escadas. Ou seriam as tabuas envelhecidas rangendo ou seriam meus sapatos, pois era possível ouvir-me subindo cada degrau, cada passo seria algum barulho diferente. Porem quanto mais avançava, uma melodia foi tomando-me meu ouvido, envolvendo-o em uma doce canção. Terminando as escadas, olhei de um lado para o outro em busca do som. Apesar de ainda ser um mero adolescente com capacidades intelectuais, ainda tinha a chamada curiosidade. Este é um sentimento tão bom quanto ruim ao mesmo tempo. Por isso não me decido se tiro ele ou não.
A dona da voz eu já conhecia, mas de certa forma, isso foi relaxante, com um efeito melhor do que o descanso na praça menos de uma hora antes. Fechei meus olhos para concentrar-me na música. Suave, mas havia algo a mais, Oh céus, o que está acontecendo comigo? Chacoalhei minha cabeça, meu devaneio ficando apenas nos resquícios de minha mente.
As semanas seguintes seguiram exatamente a mesma rotina. Após o fim de meu trabalho, passava o resto da tarde na biblioteca, onde a garota Cynthia havia adquirido o costume de sentar-se junto a minha mesa. As vezes, durante o intervalo onde trocava de livro na prateleira, ela pisava sobre uma taboa solta do chão lustrado da biblioteca, produzindo um leve ruído. Eu inconscientemente levantava minha cabeça para a origem do barulho, e ela ficava sem graça com minha observação silenciosa. Tentaria em vão virar a cabeça, disfarçando o leve rubor em suas bochechas rosadas.
Em mais um dia, após o trabalho. Os primeiros sinais do por do sol já surgiam sobre o o horizonte, deixando o céu levemente alaranjado. As nuvens já se dissolviam e estrelas começavam a aparecer. Eu estava pensativo naquele dia, deveria compartilhar minha ideia de um mundo perfeito com Cynthia? Será que deveria dizer a ela o meu passado de gênio incompreendido? O que ela acharia disso? Fugiria? Mais um item deprimente na lista de emoções humanas, a indecisão! Eu trataria de anotar esta decisão e marcar para prioridade.
Estávamos em nossas posições habituais na mesa. Eu pensara bastante, e reuni minha coragem com um folego demorado, apreensivo. Finalmente, soltei uma única pergunta:
"O que você acha de um mundo perfeito?" Perguntei hesitante. Ela levantou a cabeça de seu livro surpresa tanto pela pergunta tanto por eu ter falado alguma coisa. Eu encontrava seu olhar, e percebi seus olhos cor âmbar procurando alguma resposta coerente. Após alguns segundos inquietantes de silencio súbito, ela respondeu.
"Acho que seria muito monótono. Quero dizer, é a imperfeição é o que faz as pessoas serem elas mesmas." Cynthia pareceu um tanto curiosa com a pergunta, mas comentou somente isso.
"Mas não acha que um mundo sem imperfeições seria algo melhor? não teríamos acidentes nem nada do tipo." Respondi, tentando saber a fundo suas opiniões e argumentos, de forma discreta para não assustar, claro.
"Seria bom, mas tudo tem seus prós e contras, mas isso depende, de que tipo de perfeição você está tratando?"
"Digo, as emoções, se elas diminuíssem ou mesmo sumissem o ser humano não faria varias das coisas que faz agora, como depressão, suicídio ou a ideia imaginaria de ser sempre superior."
"De qualquer maneira, se retirassem essas que você fala, seria retirado as emoções boas também, não acha?" Ela havia fechado o livro, concentrando-se no pequeno Debate entre os dois.
"Isso seria uma consequência." Eu disse, dando rápido fim ao debate. Então ela achava a perfeição monótona? Interessante, mas de certa forma incompleto. Voltamos a ler nossos livros com apenas a companhia do por do sol.
Nos próximos dias vinha a me intrigar com algo que nunca achei que me importaria. Chegava habitualmente as quatro como de costume, mas não notei a presença de Cynthia na biblioteca. Olhei através da janela, e pelo vidro de meu relógio. Mas por que eu me importo?! Diferente de outras emoções, esta eu não identificava. Por mais que eu soubesse de tudo o que há nos humanos, este em particular era um que eu não conseguia explicar. Para aqueles que ainda não conseguem entender: eu sentia uma pequena dor no peito como a aflição, misto com a preocupação e tristeza. Só mais tarde fui descobrir que o nome era saudade.
Mais ou menos uma semana depois, sentei-me em uma mesa ao lado de uma das gigantescas janelas. Caia uma chuva forte naquele dia, de maneira a obrigar-me a carregar meu guarda chuva negro comigo. De vez em quando observava através do vidro embaçado, com alguma esperança da garota chegar ou passar em frente a biblioteca. Desta vez minha capacidade de dedução estava correta, pois ela passou, vinda da floresta com um Gabite ao lado. Parecia toda enlameada e com alguns arranhões espalhados pelos braços, mas nada de grave, ou ao menos, nada aparente. Gabite parecia um pouco nervoso, olhando suas garras e barbatanas a toda hora. De qualquer jeito voltei a ler.
Eu perdi meses da minha vida lendo junto a garota, em silencio. Aos poucos, um começava a falar da vida para o outro. Descobri que ela era de Celestic, e que fugira de lá para virar campeã da liga regional. Me senti praticamente obrigado a contar meus motivos de sair de sunyshore também. Mas eu não consegui parar de falar quando comecei. Falei sobre a incompreensão de minha família, das outras pessoas de Sunyshore. O descontentamento das outras crianças em mim, ou minha vontade de ficar mais com maquinas do que humanos e pokemon. No inicio, ela me pareceu um tanto em choque pela quantidade de coisas que falei, mas rapidamente sorriu e falou sobre a vida dela também. Isso de certa forma me foi reconfortante. A maneira no qual ela me olhava não era debochada ou com medo, eu eram um semelhante, um igual.
