Eu sou Pan Gu.
Um entre muitos deuses que existiam antes de tudo. Se você me perguntar de onde eu vim, eu diria que eu sempre existi. Mas para mim o tempo é uma medida muito duvidosa, então não estou certo disso. A única coisa que sei é que houve um episódio que mudou a minha existência completamente.
Eu existia no vazio, estático e petrificado a contemplar o meu poder. Junto a mim, muitos outros deuses ocupavam o nada com sua arrogância e egocentrismo. Porém um dia, um ponto de luz surgiu na escuridão. Primeiro, ele era apenas um círculo de luz. Alguns deuses se acercaram da aparição, imaginando o que poderia ser aquilo. Outros estavam tão inebriados e absortos em seu próprio ser que sequer notaram o fenômeno.
Em um determinado momento, o ponto de luz partiu-se em dois e assumiu duas formas triangulares com bordas arredondadas.
E assim permaneceu.
Os deuses que se dedicavam a observavam à observar o fenômeno aos poucos perderam o interesse, e voltaram a ficar absortos em si mesmos.
O único que permaneceu observando a estranha aparição... fui eu.
Não, eu não poderei dizer quanto tempo esperei. Afinal o tempo ainda não existia. A única coisa que sei é que os triângulos, em um instante súbito, começaram a oscilar freneticamente. E ao fazer isso, a luz se movimentou pelo vazio.
Os triângulos se direcionaram para os outros deuses, rodeando-os. Mas nenhum deles percebia a presença deles. A luz flutuou entre todas as entidades ali, sendo eu a última delas. Quando ela se aproximou, me afastei instintivamente a princípio. Os triângulos, por sua vez, permaneceram oscilando onde estavam. Então, aos poucos, me reaproximei da aparição luminosa. Estendi a parte superior de meu corpo em sua direção e tentei tocá-la.
Assim que o fiz, algo completamente novo aconteceu. A parte que eu estendera pulsou em luz e tomou forma, algo que eu nunca tivera capacidade e sequer vontade de fazer. Os triângulos esvoaçaram e pousaram na parte central da extremidade do meu novo corpo. Um som soou no vazio.
"Mão".
Eu não sabia o que aquilo significava, mas ao ouvir aquilo, senti algo estranho tomando conta de mim. Uma sensação desconfortável que eu queria que parasse imediatamente.
Aquilo que tomou conta de mim eu chamaria posteriormente de "solidão", e a sensação desconfortável eu chamaria de "dor".
Mais um som ecoou no nada.
"Criar".
Aquilo pareceu fazer tudo vibrar, e a vibração tomou conta de mim. Subitamente, senti a sensação desconfortável se intensificando.
Eu entrava em agonia.
Desesperado, eu não sabia o que fazer para me livrar daquilo. Busquei em volta algo que me desse a resposta ou uma pista. Nada. E então fiz a única coisa que sabia fazer naquela imensidão inexistente.
Brandi o símbolo que me fazia uma entidade: o meu machado.
E ao fazer isso, um barulho ensurdecedor tomou conta de todo o vazio, e uma luz branca inundou a inexistência.
A realidade se partira.
Mesmo que o espaço existisse agora, não havia nada.
Eu continuava me sentindo sozinho,
Criar, a palavra soou novamente em minha mente.
O que eu poderia criar ali, naquele espaço vazio? De que ponto eu partiria?
Frush , frush, frush.
Um barulho me chamou a atenção.
Os triângulos haviam passado para a realidade que eu criara e continuavam oscilando. Aproximei-me deles e, instintivamente, soprei.
Senti como se tudo se preenchesse de algo invisível e extremamente leve que começou a roçar-me o corpo e rodopiar a minha volta.
Foi soprando que criei o vento.
Fiquei algum tempo sentindo a presença daquilo que acabara de criar. Tudo ficou extremamente silencioso. Continuei sentindo e observando os movimentos dos dois triângulos.
Dois...
Brandi meu machado novamente. Com um único golpe na horizontal, parti novamente o espaço. Separando-se em dois, eles se expandiram tomando forma e cor.
A metade de cima chamei de "céu", e a metade debaixo chamei de "terra".
Decidi que o vento habitaria todo o espaço existente entre o céu e a terra, e que ele alimentaria tudo o que eu criasse ali.
Então, deitei-me na terra e deixei que meu corpo se alastrasse. Assim, da minha carne, eu formei as montanhas. Pegando o machado, fiz um corte profundo em meu peito. O meu sangue jorrou sobre meu corpo, formando linhas líquidas sobre as montanhas.
Assim surgiram os rios.
Meu corpo começava a se fundir com a metade inferior do espaço. Então, novamente usando a lâmina do machado, separei minha cabeça do resto do corpo e lancei-a ao céu. Meus olhos agora contemplavam toda a minha criação.
Foi então que percebi que ela precisava de luz.
Arrancando meus olhos, lancei-os em órbita ao redor da criação. Ao meu olho direito chamei "lua", ao olho esquerdo, "sol". Os meus dois olhos dividiriam a vigília sobre o mundo. O período cujo responsável era o meu olho esquerdo nomeei "dia", e o período cujo responsável era o direito, nomeei "noite". Os meus olhos então lançariam a luz necessária para que a criação florescesse.
O tempo passou.
A minha pele também se expandiu e germinou, dando origem a seres imóveis, aos quais chamei de "plantas". Por baixo da minha pele, os meus ossos também se fragmentaram e deram origem aos minerais.
Meus olhos giravam vigiando a criação, e foi assim que percebi que o olho direito brilhava com menos intensidade que o olho esquerdo. Para ajudá-lo, lancei os fios de minha barba ao céu, que se esparramaram.
Assim dei origem às estrelas.
Enquanto tudo crescia e brotava, percebi que aquilo que eu havia feito era bom.
Enchendo-me de felicidade, dei um urro que fez ribombarem céu e terra, e do sol e da lua brotaram minhas lágrimas, que se precipitaram sobre as montanhas, os rios e a vegetação.
Da minha felicidade surgiram o trovão e a chuva.
Por um dia inteiro e uma noite inteira contemplei a minha criação.
Sim.
Tudo era bom.
Mesmo satisfeito, ainda sentia que algo faltava. Por isso, chorei.
Chorei por vinte e cinco mil quinhentos e cinqüenta dias sobre a terra. Ao término da chuva, seres brotaram da minha carne.
As criaturas, ao se verem em terra, água e ar, encheram a criação de movimento e sons.
Sim, aquilo também era bom.
Não.
Mais do que bom.
Perfeito.
Por três mil anos me dediquei a nomear cada uma das criaturas que haviam brotado de meu corpo.
Porém, ao acompanhá-las durante esse tempo, percebi que a forma como se comportável não era boa. Causavam desestabilidade, destruíam uns aos outros.
Eram incivilizados.
Ponderei por mais alguns séculos o que fazer. Por fim, não tive escolha.
Teria de dar um fim à todos aqueles seres e recriar a vida em mim.
Permiti então que o desgosto tomasse conta de mim e chorei por quarenta anos ininterruptos gerando um dilúvio. Esse dilúvio varreu todas as criaturas da terra, da água e do céu.
Quando finalmente parei de chorar, decidi que tudo o que eu criaria dali para frente deveria ser bom.
Não.
Mais do que bom.
Perfeito.
Eu sou Pan Gu. Senhor e Guardião dessa Criação.
Tudo existirá por minha causa, e de tudo saberei.
Assim, comecei a recriar o Mundo Perfeito de Pan Gu.
Por vários milênios trabalhei meticulosamente nos novos seres que habitariam a criação. Assim poderia me tornar finalmente Onisciente, Onipresente e Onipotente.
De tão absorto em meu projeto, esqueci-me completamente do passado. Iludi-me achando que sabia de tudo.
Talvez eu realmente soubesse de tudo... Exceto de uma única coisa.
A única coisa que eu ignorava como o deus Pan Gu era que o dilúvio havia sido o meu único e mais grave erro.
