Surrectio
Capítulo I
Isabelle estava de mau humor. Mas, pensando bem, não havia porque ser diferente. Seu dia tinha começado muito bom, Marize estava passando um tempo no Instituto com ela e seus irmãos, de modo que o café da manhã estava ótimo. Depois de comer e discutir um pouco com Jace (ele disse que a comida que ela preparava todos os dias, de tão boa vontade, parecia cimento. Seco!), Isabelle foi para a sala de treinamento. Já tinha muito tempo que não gastava suas horas ali, sendo aquele território de caçadores de sombras ainda não treinados, hoje em dia quase sempre ocupado por Clary. Mas ela não estava ali, ia passar o dia com Simon, que, por sinal, era namorado de Isabelle. Mais um motivo para que ela estivesse indo treinar: embora sempre negasse, até para si mesma, sabia do antigo amor que Simon havia nutrido por Clary e não gostava do modo como eles ainda eram tão próximos. A verdade é que, mesmo que tivesse um relacionamento ótimo com o rapaz, não achava que ele olhava para ela como tinha, uma vez, olhado para Clary. Como Jace agora olhava.
Ela passeou pela sala, perdida em seus pensamentos, decidindo o que treinar. Claro que sua arma usual e preferida era seu chicote, mas já estava tão acostumada a usá-lo que praticar com ele lhe traria muita pouca vantagem. Então escolheu uma espada e dirigiu-se para o manequim no canto da sala. Afinal de contas, o uso do chicote era efetivo para inimigos que estavam a uma certa distância, mas pouco ajudava no combate corpo a corpo. Não que Isabelle tivesse preocupações neste sentido, pois os demônios jamais chegavam perto o suficiente para oferecer perigo real. De qualquer forma, seria uma distração...
Neste momento, seu irmão, Alec, irrompeu pela porta. Atrás dele, Isabelle viu Magnus, o mago que há muito havia roubado o coração do rapaz. Eles eram, de um modo muito estranho, perfeitos um para o outro. Enquanto Magnus tinha uma experiência de vida que balanceava a inocência de Alec e uma ousadia que fazia seu irmão se abrir para o mundo, a calma de Alec parecia ser exatamente o que Magnus precisava. Por vezes, Isabelle presenciava uma ligação entre os dois, que fazia com que seus rostos se iluminassem e seus olhos brilhassem. Mas agora, enquanto ela olhava para seu irmão, os olhos do rapaz de iluminavam de um modo distinto. Não havia sequer necessidade de perguntar, ela sabia o que isto significava. Batalha.
"Izzy, está tendo um ataque perto da rua 36. Vamos!" – disse Alec, a animação da luta já antecipada em sua voz.
"Um ataque? Você se importaria de ser um pouco mais específico? Quem está atacando?" – respondeu Isabelle.
"Magnus acabou de chegar com notícias de um ataque demoníaco em Chinatown. Mamãe disse que não parece nada muito grave, mas pediu para você ir junto com a gente, só para garantir. Vamos logo!" – definitivamente, seus olhos estavam brilhando. É verdade que seu irmão teve um ano difícil, e fazia algum tempo desde que tinha tido oportunidade de matar um demônio. Então Izzy só assentiu.
"Está bem. Só me dê uns minutos para me arrumar."
"Se arrumar? Não é como se o demônio fosse reparar nos seus sapatos..."
"Eu já vou descer Alec! Vocês dois, me esperem na entrada do Instituto!" – É sério, algumas vezes é preciso ter muita paciência com os irmãos..
"Ok. Mas não demore. Nós queremos ir hoje, ainda" – e com isto Alec saiu da sala, sem dar a Isabelle oportunidade de responder.
Por isto, agora Izzy estava, juntamente com Alec e Magnu, em uma batalha contra um demônio. Mas o problema é que não era uma questão tão simples quanto Marize havia previsto. Eles já deveriam ter matado o demônio, mas ao contrario do que parecia, não se tratava de um demônio comum, mas um demônio maior. Demônios maiores já tinham sido anjos, antes de sucumbirem às trevas, de modo que eram muito mais poderosos e difíceis de matar.
Izzy observou enquanto Alec atirava uma flecha no demônio. Sua pontaria era precisa, e a flecha atravessou um dos olhos do monstro, deixando-o parcialmente cego. No entanto, pouca diferença fez, pois o demônio continuou investindo contra ele. Alec largou o arco e rapidamente apanhou sua lâmina serafim, sussurrando o nome do anjo. Se esquivou do golpe do demônio e preparou-se para apunhalar...
PLOF
O demônio usou sua calda para acertar Alec, que caiu no chão, lâmina a alguns centímetros da mão, o suficiente para que não pudesse alcança-la antes de ser atingido. Magnus tentou impedir, mas acabou arremessado longe. Neste momento, Isabelle entrou em ação. Deu um salto e, com seu chicote, enlaçou o pescoço do demônio. Sabia que não podia derrubá-lo, mas por hora somente atrasá-lo já seria bom o suficiente. Izzy escalou as costas do monstro e, ainda segurando firmemente o chicote, sacou de seu cinto uma faca marcada com as runas sagradas. Tentou atingir o demônio, mas este se levantou e sacudiu, tentando e conseguindo derrubá-la. Izzy caiu agachada, usando seu treinamento para evitar se machucar.
Alec já estava em pé, atacando novamente a besta. Neste momento, Magnus apareceu. Ao olhar para ele, Isabelle teve uma ideia. Era evidente que eles não iam ganhar esta batalha, somente os três. O demônio era forte demais. Mas, se não pode com ele, mande-o para outro lugar! Ou algo assim..
Izzy correu, confiando em seu irmão para segurar o demônio por alguns momentos sozinho, e parou na frente de Magnus.
"Magnus, você precisa conjurar um Portal! Nós temos que mandar este demônio para longe daqui ou vamos todos acabar mortos!" – disse Isabelle
Magnus pareceu atordoado por um momento, mas logo respondeu. "Sabe, mágica não funciona como vocês, Caçadores de Sombras, pensam. Não posso fazer um Portal assim, do nada. Isto leva tempo. Tentar criar um Portal sem preparação prévia pode criar todos os tipos de problema, ida para locais indesejados. E meus poderes vão ficar esgotados por um tempo..."
"Quem se importa para onde o Portal vai? É o demônio que vai passar por ele, não nós."
"Como pode ser tão obtusa? Seu trabalho não é proteger o mundo? Parece para mim que você só quer proteger a si mesma.."
O som do grito de Alec ecoou alto quando o demônio o atingiu, fazendo um grande corte em seu braço e tingindo suas vestes de vermelho. Izzy lançou um olhar afiado para Magnus antes de correr em socorro do irmão.
"Eu sei bem quais são minhas obrigações como Caçadora de Sombras. Mas eu já perdi um irmão. Não vou perder outro. Eu me recuso, Magnus!"
Com isto ela correu para ajudar o irmão. Magnus o contrário, ficou petrificado no lugar em que estava. Ele conhecia aquele demônio, já o tinha visto antes. Sabia que aquele arranhão era venenoso, fatal para Alec caso não fosse curado rapidamente. De repente, ele entendeu o ponto de vista de Isabelle e começou a criar um portal, rezando para todas as divindades de que já ouvira falar para que tudo desse certo.
Passados alguns minutos, lá estava ele: um Portal improvisado, sabe-se lá levando para onde. Magnus gritou para os dois irmãos "Está pronto! Agora o conduzam para dentro. Rápido! Não vou conseguir segurar o Portal por muito tempo."
Imediatamente, os dois começaram a correr em direção ao Portal, o demônio em seu encalço. No entanto, demônios não são seres desprovidos de inteligência: não seria tão fácil assim fazê-lo andar para dentro do Portal. Então Izzy bolou um plano, simples, mas eficaz. Correu até estar a alguns passos da abertura do Portal, então parou. O demônio estava perto, mas com um movimento rápido de seu pulso Isabelle lançou seu chicote ao redor das pernas do monstro. Sabia que não teria forças para arremessá-lo no Portal, por isto sua ideia era fazer o demônio tropeçar, com os pés atados em meio a sua corrida.
Como esperado, o demônio caiu, dando um salto para tentar manter-se em pé. Sua trajetória formava um arco que cairia diretamente no interior do Portal que Magnus, com esforço, mantinha aberto. Com tudo parecendo certo, Isabelle liberou o aperto no chicote, pronta para recolhê-lo. Contudo, as coisas deram errado.
As mãos do demônio se enrolaram em volta do chicote, dando um forte puxão que desequilibrou Isabelle, cujos punhos se enrolavam em volta deste. O demônio riu, um riso grotesco e estranho. Arrastou Isabelle consigo, mergulhando para dentro do Portal. A última coisa que ela viu foi o rosto de Alec, dividido entre choque e terror, ao lado de Magnus que, exausto, caía ao chão, desmaiado.
O chão era duro e frio. Na verdade, todo o lugar era frio, simplesmente incompatível com as roupas que Izzy usava. Ela levantou a cabeça vagarosamente, muito confusa. Não reconheceu o lugar em que estava. Lembrava vagamente Londres, onde estivera com sua família uma vez, visitando o Instituto local. Mas, do mesmo modo, não tinha nada da modernidade e vitalidade de Londres...
Estes pensamentos foram afastados de sua cabeça com a aparição do demônio que atravessou o Portal com ela. Ele estava coberto de icor, e se aproximava dela lentamente, seu olho amarelado brilhando com sede de morte. Bom, ela era treinada para não se desesperar por pouco, mas a situação poderia ser melhor. Com Alec e Magnus a seu lado, já não parecia que a luta terminaria bem para ela. Sozinha, suas chances eram ínfimas.
Tentando afastar estas ideias, Izzy ergueu a cabeça, usou sua melhor expressão ameaçadora e agitou o chicote em frente a si. Se fosse seu momento de morrer, faria lutando e sendo corajosa, como uma Caçadora de Sombras deve ser. A visão pareceu divertir o monstro, que investiu contra ela. Mas então, inesperadamente, foi interceptado por uma lâmina serafim arremessada contra ele. O tiro foi certeiro, atingindo o torso da besta. Não foi suficiente para reduzi-lo a cinzas, mas foi suficiente para fazê-lo parar. Atordoada, Isabelle virou a cabeça, procurando a fonte de sua salvação.
Correndo em sua direção estavam dois rapazes, aparentemente da mesma idade que ela. Sobre suas mãos e pescoço Izzy podia ver marcas – visão noturna, força, agilidade. Caçadores de Sombras, sem dúvidas. Suas vestes eram estranhas. Muito estranhas. Usavam grandes casacos sobre camisas e paletós. Embora parecessem bem mais aquecidos que ela, Isabelle não pôde deixar de pensar que aquelas roupas eram extremamente fora de moda, e pensou talvez pudesse oferecer uma dica àqueles estranhos depois. Se eles sobrevivessem, é claro.
Sem sequer um segundo olhar para Isabelle, os dois se lançaram à luta. Embora já tivesse visto muitos Caçadores de Sombras em ação, ela não pôde deixar de admirar o modo como eles se moviam e pareciam estar em total sincronia. Parabatai, provavelmente. Havia algo neles que a fazia lembrar Alec e Jace.
Mesmo na escuridão da noite, amenizada somente em parte pelo brilho da lua, era possível ver que o primeiro rapaz, que tinha acabado de lançar a lâmina, tinha curiosos cabelos prateados. Ele estava à frente do demônio, atingindo-o com uma espada, enquanto o outro rapaz corria por trás, agilmente cercando a besta de modo que em alguns momentos esta estava encurralada entre as paredes dos prédios da cidade e os dois Caçadores. Com um som de desprezo, o demônio falou, pela primeira vez.
"Caçadores de Sombras! Nunca aprendem a não se meter naquilo que não lhes interessa! Posso dizer que, em breve, pagarão por este erro!" – e com isto, desapareceu, fugindo para outra dimensão.
O segundo rapaz bufou, de modo quase cômico, afastando seus cabelos negros do rosto e disse, mesmo sabendo que o demônio já não podia ouvi-lo. "Nossos negócios são acabar com demônios nojentos e burros como você!"
"Vamos, Will, seja gentil. Ele não era tão burro assim..." – sorriu o primeiro.
"Deixe-me dizer uma coisa, meu caro James..." – mas Will se interrompeu, seus olhos finalmente se fixando sobre Isabelle, que ainda os observava. Gradativamente, seu olhar desviou do rosto da garota, recaído sobre as marcas que cobriam sua pele desprotegida contra o frio.
"Ora, ora... uma Caçadora de Sombras? Não foi de muita ajuda, não é mesmo?"
Isabelle estava chocada, sem muita certeza do que estava acontecendo ali. Sentia frio, estava cansada e o suor da batalha anterior secava em sua pele, dando-lhe um aspecto e sensação terríveis. No entanto, não havia homem no mundo que pudesse falar com ela daquele modo. Mesmo que ele e seu amigo tivessem ajudado a salvar sua vida.
"Engraçado você mencionar. Quem você acha que cegou o demônio e o deixou no estado em que estava, pingando icor? Certamente não foram vocês, que nem ao menos puderam matá-lo. Caso não tenha reparado, ele fugiu!"
O rapaz abriu a boca para responder, mas foi interrompido pelo outro – James? – que sorria levemente.
"Não creio que nos conhecemos. Pensava que conhecia todos os Caçadores de Londres... qual o seu nome?"
Londres? Aquilo estava ficando um pouco estranho... para onde o Portal de Magnus a tinha mandado? A mente de Isabelle estava confusa e, sem pensar, respondeu.
"De onde eu venho a convenção é que a pessoa se apresente antes de pedir que o outro o faça"
O garoto riu abertamente agora, embora o outro parecesse amplamente ofendido pela resposta.
"Muito bem, senhorita. Meu nome é James Cartairs, mas pode me chamar de Jem, e meu amigo é William Herondale..."
"E você pode me chamar de Sr. Herondale. E já pode se considerar grata"
Jem continuou, ignorando a interrupção de William. "somos Caçadores de Sombras do Instituto de Londres, sob o comando de Charlotte Brandwell. Não sabíamos que iríamos ter convidados de fora, em geral estes casos são avisados."
"Meu nome é Isabelle Lightwood, ou Izzy. Vim do Instituto de Nova Iorque, por um Portal, lutando com o demônio."
"Lightwood? Você está com Benedict?"
"Benedict?"
"Benedict Lightwood. Pensava que ele era o último dos Lightwoods, na verdade, não sabia que ele ainda tinha parente em Idris.."
"Idris?"
"Pelo Anjo, Jem. Acho que esta garota tem algum problema de congnição..."
Isabelle nem se perturbou em responder. Achava que estava começando a entender o que tinha acontecido. Olhou em volta, percebendo os postes iluminados por lampiões, as pedras que compunham os prédios baixos que a cercavam. Londres, James tinha dito... A Londres de que ela lembrava não era assim. Se estivesse certa, ela estava com sérios problemas. Muito mais sérios do que pensava.
"Me diga, em que ano estamos?"
William riu uma risada desagradável, como se a pergunta confirmasse sua tese. James, ao contrário, pareceu impassível. Educadamente, disse "1877. Algum problema, senhorita?"
Ah, droga!
