– Amanhã é Dia de Finados, vai fazer o quê?

– Afinando os que estão lá embaixo?

– Não precisa trabalhar, amanhã é feriado.

– Mas eu gosto. É legal.

– Escuta uma coisa... Você é um daqueles quarentões que fingem que são garotões e que se vestem de preto o tempo todo, usam maquiagem pesada e ouve música de gente gritando que nem se fosse matando um porco?

– Preto é um estilo de vida, maquiagem não obrigada e sim até que gosto de carne de porco.

– Graças ao papai, não somos de recusar comida.

– Papai te devoraria se recusássemos comida.

– Quer parar de encarar o pobre coitado...?

– Parece praticável...

– Praticável? Só por que esse cara aqui que está todo torto, ele parece praticável? Da onde você tirou essa palavra afinal?

– Sei lá. Alguma técnica especial para resolução do problema?

– Eu tenho um martelo grande, uma serra caseira e... Você sabe costurar?

A minha vida é bem simples se você está de fora. Eu acordo todos os dias às 4 da manhã em um quarto que parece um pandemônio de tantas coisas enfurnadas. O ritual do dia é ajudar meu pai ranzinza a se levantar de seu sono astronomicamente pesado, fazemos os exercícios diários que o médico mandou – e que ele sempre desiste no meio do processo por achar médicos ridículos e hipócritas. Quando ele não acorda e solta palavrões por todo canto e maldizendo qualquer coisa que ele esteja com vontade (Incrível como o alvo favorito dele seja sempre meu irmão mais novo e sua carreira promissora de todo-poderoso chefão advogado dos justos e dos injustos). Descemos as escadas para pegar o jornal, jogá-lo no lixo e deixar o carro esquentando para irmos aonde sempre vamos de segunda a segunda. Eu nunca dirijo, ele que sabe como fazer esse monte de lata sair do lugar. Ele parece uma múmia navegando o seu sarcófago dentro desse carro.

– Você sabe... Tenho que economizar nas passagens...

– Pai você nem paga passagem mais!

– Então é você que tem que economizar...

– Seu mão de vaca...

– Respeito comigo... Você que tem que aprender a dirigir, porque sem esse carro aqui, nós nem saímos de casa...

– Poderíamos mudar a cor pelo menos?

– Carro de funerária tem que ser preto, meu filho...

– Poderia ser branco e a gente colocava as letras em preto...

– E desde quando carro de funerária...?

– Pai, olha o sinal aí...

– Tudo bem, rapaz... Eu dirijo muito bem... Nunca sofri um acidente em meus 60 anos dirigindo nessas estradas da vida...

– Eu dispenso os anos de direção. Prefiro dirigir uma carroça, é mais fácil...

– Hehehehe esse meu menino... Sua cabeça é muito antiquada sabia?

– Sim, eu sei...

Nesse intervalo de ir até a Funerária de meu Pai há sempre o desconforto de uma rádio de música tão velha quanto o carro, a voz grossa da múmia ao meu lado dizendo o quanto eu devo valorizar as coisas do passado, mas mesmo assim querer fazer algo de meu futuro e a incerteza se chegaremos antes da Inspeção da Vigilância Sanitária marcada para hoje. Isso porque acordamos às 4 da madrugada! Imagina se não fossemos assim!

– Tem que fazer alguma coisa da vida... Teu irmão disse que te ajuda se você quiser, mas esse teu maldito orgulho que te prende sabe?

– Pai, eu tou novo ainda... Tou decidindo as coisas, arrumando um dinheiro...

– Você parece uma minhoca dentro da terra... Enfiado dentro do quarto com aqueles livros, parece invisível quando quer. Qual foi a última vez que você saiu com seus amigos?

– Em dezembro. E não faço questão de ter amigos.

– Isso mesmo que eu falo... Teu irmão te ajuda se você quiser, mas...

– Você vive falando que ele é irresponsável, idiota e que tá tramando pegar seu trono algum dia... Eu lá deveria confiar nele?

– Tem que confiar, vocês são irmãos...!

– Os teus irmãos estão trancafiados naquele asilo lá... E você nunca deu à mínima.

– Não desvia o assunto! P****, essa visita desse povo tá me deixando desconfiado... Acho que foi teu irmão que arrumou essa porcariada toda...

– Ele não seria tão filho da mãe assim...

– Não tome o nome de sua mãezinha em vão, moleque... Que ela esteja em paz...

– Essa é a lição do dia? Não irei confiar no meu irmão, ponto final?

– Vocês dois me lembram o teu tio mais velho, aquele safado...

– O safado que te sustentava e levava o mundo nas costas?

– Ele nunca me sustentou! Da onde você tirou isso?

– Alguém me disse que...

– Deve ter sido aquelas harpias das tuas tias! Um bando de desocupada!

A vaga lembrança que tenho do dia em que minha mãe foi embora foi o simples fato de que ela escondeu do meu pai que meu irmão mais novo ainda estava vivo. O filho da mãe ficou esse tempo todo em algum país vizinho, crescendo com o bom e o melhor enquanto eu e meu irmão do meio penávamos com esse velhote temperamental e tempestuoso.

– Como é que esse cara foi ficar desse jeito?

– Eu sei lá... Liga pro mano, ele faz Direito sacas...? – disse o irmão do meio limpando os dentes.

– Ele não entende de nada disso... Só de Forense... Tá dando ocupado... Caramba... Acidente de carro faz isso, faz?

– Eu sei lá... Mano que sabe...

– É, eu sei...

– Sortudo ele né?

– O cara ou nosso irmão?

– Claro que é o mano poxa... Ele é advogado e tudo... Mó sortudo ele... Deve catar mulher o tempo todo, ir a festas e tudo mais...

– É isso que você pensa dos estudantes de Direito?

– Sei lá... Só sei que ele se deu mais bem do que a gente...

– Olha, se "se dar bem" se mede pela quantidade de garotas que se consegue...

– Oceanógrafo! 5 anos desperdiçados pesquisando golfinhos e baleias! Duas namoradas até agora, nenhuma ficante, nenhuma estepe! Dá um tempo, cara! Eu não fico com uma mina desde muito tempo... Tou criando calo na mão...

– Essa é uma informação que eu não precisava saber...

– E você? Essa porcaria de Medicina não te deu muita mulher na cama sacas? Ou é por causa da profissão ou porque você que é maricas... Deve ser os dois... Vive andando de preto e com essas correntes aí... Tem vergonha na cara não? Tem ruga na testa e...

– Preto é um estilo de vida...

– Coisa de maricas! Parece esses motoqueiros boiolas daí...

– Eu não gosto de motocicletas, muito obrigado... Prefiro aproveitar o mundo de um jeito mais simples...

– Oh sim, trancafiado no quarto e com a cabeça escondida em um buraco na terra, lendo livrinhos, sendo invisível pros vivos? Tá indo bem, seu maricas...

– Se você acredita piamente nesse seu mundinho líquido patético, eu que não vou mudar sua opinião...

– Vai usando tua retórica, vai... Papai devia te internar, seu maluco... – silêncio – Vai responder não?

– Tenta levantar a perna do cara...

– Eu não! Você sabe quem ele era e tá duro esse negócio!

– Tá com medo é?

– E-eu não! É que o cara tá morto e... e...

– Deixa que eu faço isso...

– Você não tem medo disso não?

– Tão acostumado quanto conversar com os vivos...