Normalmente, uma história começa do começo. Mas não esta história.
Com certeza, todos já tiveram uma vez a sensação de olhar para uma pessoa e ter a sensação de que já a conhece. Foi o que aconteceu comigo. E foi esse sentimento que norteou "esta" minha vida. Não, eu não estou louca - você logo entenderá do que falo.
Minha vida começou no ano de 1581, em uma aldeia muito longe de Edo, não me recordo muito bem onde. As primeiras lembranças de minha vida são muito vagas. É engraçado pensar agora como elas são muito mais vagas do que minhas "outras" lembranças, que depois daquele dia, se reavivaram cada vez mais em minha mente com o passar dos anos.
Eu tinha 9 anos quando aconteceu.
- CHIHARU!!
Eu já tinha me acostumado com ele gritando meu nome. Ele não era meu pai, tampouco marido de minha mãe. Era apenas um encostado que fazia minha mãe pensar que precisava dele, depois que meu pai de verdade morreu. Eu não o conheci, e sinceramente espero que ele não fosse como aquele homem, de quem mal me recordo o nome agora.
Obedientemente fui até ele até parar de pé em sua frente, sem nada dizer, de cabeça baixa. Já sabia o que viria, e veio. Um safanão me fez cair no chão.
- ONDE ESTÁ A VADIA DA SUA MÃE??
Agora era assim quase todo dia. Antigamente ele fazia isso apenas quando bebia e queria descontar a raiva de minha mãe que eu sequer entendia, e evitava fazer isso na frente dela. Agora era sempre, e se ela tentasse pará-lo, apanhava também.
Não pense que eu era uma menina acomodada. Eu queria fugir, mas não poderia ir sem minha mãe. Ela era tudo o que eu tinha, e eu nunca a deixaria. Quando me deitava à noite, pensava em mil formas de escapar daquilo, ate de matá-lo. Mas sempre que falava sobre isso com minha mãe, nos momentos em que ele não estava por perto, ela apenas me sorria tristemente. Eu nunca poderia ter entendido na época.
Mas naquele dia, foi tudo muito pior. Eu realmente não sabia onde minha mãe ia quando sumia assim. Achava que ela devia se cansar dele e querer ficar sozinha. Às vezes ficava com medo de ela ter fugido sem mim, mas ela sempre voltava. Aquele dia, ela só voltou muito tarde, e eu estava dormindo. Acordei com o terrível som de gritos e coisas quebrando.
- ...EU SEI MUITO BEM ONDE ESTEVE, SUA PROSTITUTA...!
Ouvi um grito de minha mãe. Assustada, saí da cama e corri para o outro cômodo, e a vi sangrando da pancada. Ela olhou para mim assustadíssima, e ele se virou, me olhando com fúria nos olhos, quando fiz menção de ir até ela.
- NÃO VENHA, CHIHARU!!
- Ah, aí está a pestezinha! Em pensar que quando o traste do seu marido morreu, fui EU quem sustentou vocês duas! - E ele bateu de novo nela, fazendo sua boca sangrar.
- SUSTENTAR? - Ela levantou o tom, o que raramente fazia, com a mão no rosto e lágrimas nos olhos. - Sou eu quem tem que sustentar você, que bebe às minhas custas!
- CALADA! - E ele bateu nela de novo, fazendo-a soltar um gritinho. Eu chorava, não aguentava mais ver aquilo.
- MÃE! - E corri até ela, mas o homem facilmente me pegou com uma mão e me jogou violentamente de volta. Bati com a cabeça na parede oposta e escorreguei até o chão.
- Ah, mas eu vou ensiná-la a ser uma boa esposa...
Tonta no chão, tive a estranha sensação de já ter ouvido aquilo antes. Será que eu tinha batido a cabeça com muita força?
Vi ele arrastar minha mãe pelos cabelos, saindo pela porta da casa. Eu simplesmente senti que tinha que salvá-la. Eu sentia que ele iria fazer algo de muito ruim com ela.
Mas perdi a consciência no meio do pensamento.
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- Por favor senhor, por favor... Meu filho...
Eu olhava para o corpo inanimado no chão, minha visão era turva por causa das lágrimas. Eu sentia como se tivessem retirado minha alma rasgando meu corpo. Era uma dor terrível.
- Seu filho é um bastardo - Uma voz assustadora soou perto de mim. Tinha um tom de ódio dissimulado, quase insano. - Filho de outro bastardo! Você me foi dada para ser uma boa esposa... Ah, mas eu vou ensiná-la a ser uma boa esposa...
Senti mais dor conforme ele me chutava. Segurava minha barriga inchada de grávida, e chorava compulsivamente. Ele estava morto, e agora meu filho era a única coisa que eu tinha...
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Acordei de repente, sem entender o estranho e real sonho. Naquela idade, eu não entendia muito bem aquelas sensações, mas o desespero e a dor eram inconfundíveis. Pois era o que eu começava a sentir naquele momento; lembrei do que tinha acontecido e voltei a entrar em pânico. Por quanto tempo estivera inconsciente?
Eu precisava salvar minha mãe. Corri para a cozinha e vi a faca para cortar peixe, a maior que eu já tinha visto até então. Na hora, não pensei exatamente no que faria com ela, apesar de parecer bem óbvio. No pânico, não pensamos direito nas coisas.
Ouvi um grito de triunfo lá fora, e corri. Ele estava sobre o corpo da minha mãe, com as mãos no pescoço dela, e um ruído de quebra de ossos veio em seguida. O barulho me fez correr com toda a velocidade que tinha pra cima dele.
- HAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAH!!
Enfiei fundo a faca de cortar peixe embaixo das costelas daquele homem. Depositei todo meu ódio e rancor naquele golpe. Enfiei a faca até o cabo. E o homem que eu odiava virou-se para mim vomitando sangue. Ele nada disse, apenas me olhou com olhos já sem vida. E caiu no chão com um baque surdo.
Embaixo dele, minha mãe, com o quimono sujo e meio rasgado, levantado quase até os quadris. Ela estava coberta de sangue. Quando me debrucei sobre ela, não ouvi seu coração. Uma enorme sensação de vazio se apoderou de mim. Minha mãe estava morta.
"Mãe..."
Minha voz não saiu. E por algum tempo, ela não sairia mais.
Foi a primeira vez que matei um homem.
A chuva começou a cair, se misturando com minhas lágrimas. Eu estava cada vez mais suja de lama conforme cavava uma cova para minha mãe. Pelo menos isso eu queria fazer por ela.
Consegui uma pedra grande e coloquei sobre a terra recém escavada, depois de enterrá-la. Aquele seria o único marco de seu túmulo. Terminado o trabalho, sentei do lado da estrada e apenas fiquei lá parada sentindo a chuva sobre mim, olhando o amanhecer. Eu sentia que seria sozinha pra sempre. Queria morrer junto com minha mãe.
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Porém, junto com aquele amanhecer, veio o meu destino.
- Ora ora... O que uma menina como você faz à beira de uma estrada escura dessas?
Escura? Eu olhei para o céu. Já tinha escurecido. Eu nem tinha percebido quanto tempo tinha ficado ali parada, nem o frio, nem a fome. A voz gentil soou novamente.
- Está perdida?
Não respondi. O homem suspirou.
- Se não quer falar, tudo bem. Mas não irei deixá-la aí para os lobos comerem. Suba na carroça.
Talvez eu estivesse acostumada demais à cumprir o que me era dito ou eu simplesmente não tinha pensado em nenhuma outra coisa melhor para fazer, pois subi rapidamente na carroça do homem. Dei uma última olhada para a lápide de minha mãe, e então olhei para a lua no céu. Nunca sua beleza havia me parecido tão vazia e triste.
